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Um administrador de um dos mais importantes bancos portugueses, “reuniões secretas” com membros do governo da Guiné-Bissau, cerca de 500 mil euros em transferências e sucessivos depósitos feitos em dinheiro vivo no Novo Banco e noutras instituições financeiras nacionais. Estes são os ingredientes que levaram, nesta terça-feira, à destituição de Carlos Brandão da administração do Novo Banco, onde tinha o importante pelouro do risco, e à sua constituição como arguido num inquérito criminal.
Carlos Brandão e a sua mulher, que também foi constituída arguida no inquérito do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, são suspeitos de terem alegadamente branqueado cerca de 500 mil euros com origem ainda por determinar. Os dois foram constituídos arguidos por suspeitas de fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e falsificação, em negócios que também envolverão compras e vendas de imóveis.
O ex-administrador, que foi denunciado ao Ministério Público pelo Novo Banco e destituído de funções, terá ordenado ao seu motorista, que lhe foi atribuído pelo Novo Banco, inúmeros depósitos em dinheiro vivo em contas abertas em nome próprio na instituição para a qual trabalhavam mas, também, em outros bancos portugueses.
Novo Banco denunciou e colaborou com o MP e a PJ
Este é um caso que não seria conhecido de forma tão rápida se não fosse a ação do Novo Banco, cuja administração é liderada pelo irlandês Mark Bourke. Foi o departamento de compliance da instituição financeira que detetou as “operações financeiras suspeitas” que terão sido ordenadas por Carlos Brandão e que foram confirmadas oficialmente pelo Novo Banco. Diversas fontes colocam igualmente a hipótese de ter existido uma denúncia interna contra Carlos Brandão que ajudou o banco a reunir as peças do puzzle construído pelo agora ex-administrador.
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Através do sistema de combate ao branqueamento de capitais, que todos os bancos nacionais são obrigados a ter, o Novo Banco começou por detetar depósitos em numerário feitos pelo motorista de Carlos Brandão em contas da instituição para a qual trabalhava. Tendo acesso ao salário do motorista, que não era coerente com aqueles valores depositados em numerário, o sistema deu um alerta e obrigou o departamento de compliance a uma investigação.
Seguindo as regras da zona euro, os bancos portugueses são obrigados a questionar os seus clientes sobre a origem dos fundos são depositados — um dever de diligência que é reforçado quando se fala em depósitos em numerário. Isto porque a lógica do sistema de combate ao branqueamento de capitais é identificar a origem de todos os fundos que entram no sistema financeiro.
O relatório de atividades do MP de 2023 evidencia que foram recebidas 18.096 comunicações do sistema financeiro nacional que deram origem à suspensão de 1.203 operações bancárias avaliadas em 167 milhões de euros. E foi assim que o Novo Banco detetou inúmeros depósitos em numerário feitos pelo motorista de Carlos Brandão.
Ao que o Observador apurou, terá sido um montante total em redor dos 500 mil euros em dinheiro vivo.
Através da colaboração do motorista, o departamento de compliance do Novo Banco detetou que tais depósitos seriam feitos às ordens de Carlos Brandão. Recebendo instruções do então administrador com o pelouro do risco na instituição que sucedeu ao BES, o motorista não as terá questionado (alegando ignorar a alegada origem ilícita de tais fundos) e terá aceitado depositar sacos de notas em bancos portugueses.
Ao que o Observador apurou, boa parte das contas bancárias que receberam os fundos depositados pelo motorista pertencerão ao próprio Carlos Brandão.
PJ monitoriza Carlos Brandão em “reuniões secretas” com governantes da Guiné-Bissau
Ao que o Observador apurou, a denúncia do Novo Banco terá chegado ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) durante o verão de 2024.
É verdade que o DCIAP seria sempre informado dos movimentos financeiros porque todos os bancos estão obrigados a comunicar qualquer movimento financeiro suspeito acima dos 10 mil euros, sendo que movimentos suspeitos e recorrentes de valores mais baixos (como cinco mil euros) também podem ser reportados à Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária e ao DCIAP.
A denúncia do Novo Banco era bastante mais completa e indicava já a colaboração do motorista de Carlos Brandão — que, por via desta colaboração, não foi despedido da instituição financeira. O Novo Banco também terá denunciado outros negócios envolvendo Carlos Brandão e a sua mulher, nomeadamente operações imobiliárias.
Fontes do setor financeiro que chegaram a interagir com Carlos Brandão, profissionalmente, descrevem-no como um gestor “especialmente cuidadoso, severo na aplicação de regras e a alertar para riscos” – daí a “surpresa completa” manifestada por estas fontes relativamente a estas alegações.
Novo Banco demite administrador e denuncia “operações suspeitas” ao Ministério Público
Certo é que a investigação levada a cabo pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ confirmou os dados enviados pelo Novo Banco e permitiu chegar a prova indiciária que liga Carlos Brandão a um membro do Governo da Guiné-Bissau. Ao que o Observador apurou, a PJ monitorizou várias “reuniões secretas” (como são descritas pela investigação) entre o administrador do Novo Banco e esse governante guineense.
Brandão terá tido igualmente relações com investidores de outras geografias, nomeadamente de Angola, que também são considerados suspeitos.
A origem dos capitais que terão sido alvo de manobras de branqueamento de capitais por parte de Carlos Brandão ainda não está clarificada. Existem as pistas da Guiné-Bissau e de Angola, mas a investigação ainda está em curso.
Para já, serão analisadas as provas indiciárias recolhidas em quatro buscas domiciliárias executadas às residências de Carlos Brandão e da sua família, ao escritório do ex-administrador no Novo Banco e em mais sete buscas não domiciliárias. As buscas, segundo comunicado o Ministério Público, serviram para a “identificação e apreensão de documentos e outros meios de prova de interesse para a descoberta da verdade”.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre este caso.
Novo Banco manteve administrador em funções vários meses para não perturbar a investigação
No comunicado do Novo Banco salienta-se apenas que os “processos internos do banco” identificaram operações financeiras suspeitas “realizadas na sua esfera pessoal“.
A prioridade do Novo Banco, que está numa fase decisiva da sua história depois de fechar o acordo com o Fundo de Resolução e estar a preparar a venda de parte do capital, foi sublinhar que as operações feitas por Carlos Brandão “não envolvem, de forma alguma, o banco e, como tal, não têm qualquer impacto nos clientes, em contas ou operações de clientes, na posição financeira ou na atividade do banco, nas suas operações comerciais, no sistema de gestão de riscos nem nos seus colaboradores”.
Numa carta enviada pelo próprio Mark Bourke aos colaboradores, nesta terça-feira, o presidente reconhece que esta é uma “situação altamente indesejável” para o banco e que começaram com operações que “causaram enorme preocupação” ao presidente da instituição.
Nesta comunicação aos colaboradores, a gestão do banco sublinha que todas as autoridades foram informadas do que se estava a passar, incluindo o BCE. Ao mesmo tempo, o gestor foi mantido em funções “para não interferir com a investigação do Ministério Público“: “Foi necessário manter a pessoa em causa no seu cargo e garantir a estrita confidencialidade do assunto”.
Ao que o Observador apurou, o pedido do MP ao Novo Banco também teve a ver com um pormenor relevante. Estava previsto que Carlos Brandão ficasse com o pelouro do compliance a partir de dezembro e a investigação não quis que o banco cancelasse esses planos.
“Fit and proper“? Carreira na banca de Carlos Brandão terá terminado
Depois de ser diretor de risco no Santander Totta (entre 2007 e 2008), Carlos Brandão passou para o Barclays e a partir de 2014 tornou-se country manager do banco britânico em Portugal. Quando o espanhol Bankinter comprou as operações de banca comercial do Barclays em Portugal, Brandão continuou no mesmo posto até meados de 2017.
Nessa altura, deixou esse cargo para se juntar ao Novo Banco, primeiro como diretor do departamento de risco reportando ao administrador Rui Fontes (da administração da António Ramalho). A partir de meados de 2022, já com Mark Bourke, passou para a administração executiva do banco (com Rui Fontes a passar para administrador na área do crédito).
Mark Bourke vai, no imediato, assumir a importante função de chief risk officer no banco, de forma interina. Esta é uma função estruturante num banco, já que a direção de risco (e o administrador com esse pelouro) é quem é responsável pela construção dos processos e modelos de decisão de crédito, incluindo a integração dos modelos de risco no preço aplicado às operações de crédito.
A área de risco, num banco, não trata apenas de risco de crédito mas, também, tem a função de avaliar todos os restantes riscos aos quais o banco está exposto, avaliando as imparidades que são feitas à luz dos requisitos de capital que todos os bancos têm de cumprir. Este trabalho era feito por Carlos Brandão e pela equipa de risco.
Este banqueiro foi, também, escolhido como porta-voz do Novo Banco na comissão de inquérito parlamentar, em 2020/2021. Foi ele a pessoa indicada pelo banco para “esclarecer em detalhe quaisquer dúvidas no âmbito da Comissão de Inquérito ao Novo Banco”, que se debruçou sobre as perdas registadas pela instituição (e imputadas ao Fundo de Resolução).
Nessa audição, Carlos Brandão garantiu que as decisões tomadas no banco, por exemplo no sentido de registar imparidades, não eram tomadas “em função daquilo que poderá ser o valor utilizado ou não no CCA”, isto é, o mecanismo recentemente fechado e ao abrigo do qual foram injetados 3,4 mil milhões de euros de dinheiros públicos na instituição financeira.
Brandão salientou, também, que o Novo Banco contava, no momento em que o fundo Lone Star comprou 75% do banco, usar todo o valor das chamadas de capital que estava previsto – isto é, os 3,9 mil milhões que eram o plafond máximo. Questionado pelo deputado Alberto Fonseca, do PSD, sobre se “a expectativa da Comissão Europeia [3,3 mil milhões de euros no cenário base e 3,9 mil milhões no cenário adverso] não era muito diferente da expectativa que o banco tinha face à realidade que conhecia”, Carlos Brandão respondeu “correto”.
O banqueiro, tendo sido demitido, não vai enfrentar nenhum processo de reavaliação de idoneidade por parte do Banco Central Europeu (BCE) ou do supervisor nacional – porque esses processos incidem apenas sobre pessoas que estão em funções. Porém, como explicou fonte próxima do processo, “se ele, por hipótese absurda, vier a ser proposto para outro cargo sujeito à supervisão nacional, não passaria no exame ‘fit and proper’”.