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Ricardo Salgado olhou para a Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro como uma desesperada boia de salvação para o Grupo Espírito Santo (GES) — que estava em falência técnica desde 2009. E, para tal, contou com a preciosa ajuda de Rafael Ramirez, o poderoso ministro da Energia de Chávez e presidente, entre 2004 e 2014, da Petróleos da Venezuela (PDVSA), que chegou a liderar o Conselho de Segurança das Nações Unidas em 2016, enquanto ali foi embaixador venezuelano. Salgado contou também com o número dois de Ramirez, Nervis Villalobos, ex-vice-ministro da Energia.
Foi através da sociedade offshore Canaima Finance Limited que Salgado terá pago a Ramirez cerca de 47,8 milhões de dólares via saco azul do GES, segundo a acusação do MP, noticiada em primeira mão pelo Observador a 19 de outubro. Dessa forma terá conseguido construir uma espécie de pipeline, não de petróleo ou gás, mas sim de dólares entre, por um lado, a PDVSA e as restantes empresas do setor energético venezuelano e, por outro lado, o BES e as várias holdings do GES. Só a PDVSA geria ativos superiores a 100 mil milhões de euros.
Para tal terá sido necessário corromper mais 19 altos responsáveis venezuelanos. Daí que Ricardo Salgado, e os membros da alegada associação criminosa, tenham sido acusados da alegada prática de 20 crimes de corrupção ativa com prejuízo no comércio internacional.
Com um ‘investimento’ de mais de 214 milhões de dólares entre fevereiro de 2009 e junho de 2014, Ricardo Salgado terá conseguido ‘convencer’ o Grupo PDVSA, e até órgãos públicos venezuelanos (como o Banco del Tesoro ou o organismo que pagava os salários dos diplomatas em todo o mundo), a abrir contas no BES e a investir em dívida do GES. No total, terão sido investidos por ano várias dezenas de milhares de milhões de euros no banco e nas empresas da família Espírito Santo, com um pico de 8,2 mil milhões em 2009.
Ironicamente, uma parte dos fundos das alegadas ‘luvas’ pagas aos venezuelanos foram investidos em dívida do GES e perderam-se na hecatombe de falências que se verificaram no verão de 2014. Já outra parte foi apreendida pelo MP e deverá ser declarada perdida a favor do Estado. São mais de 11 milhões de euros.
Esta é a segunda acusação de associação criminosa alegadamente liderada por Ricardo Espírito Santo Silva Salgado — e a última do Ministério Público no processo Universo Espírito Santo.
A primeira assentava num despacho de acusação com mais de quatro mil páginas que descrevia um alegado esquema de corrupção dos próprios funcionários de Salgado que levou à queda do GES e à resolução do BES, na visão do Ministério Público. Já esta conta parte da história da destruição económica de um país (a Venezuela) através de um novo esquema de corrupção que começava em Caracas, tinha um centro de decisão na Av. da Liberdade em Lisboa, operacionais na Madeira e na Suíça e acabava no Dubai.
A acusação. Anatomia de uma associação criminosa que destruiu o Grupo Espírito Santo
Como uma viagem de Estado de Sócrates levou à relação entre Salgado e o “Alemão”
Entre os políticos e gestores públicos que terão sido corrompidos por Ricardo Salgado há um nome que se destaca claramente: Rafael Darío Ramirez Carreño, conhecido por ‘Rafa’ Ramirez.
Foi nomeado ministro da Energia e Minas em 2002 por Hugo Chávez, tendo passado a ministro da Energia e do Petróleo em 2005. Entre novembro de 2004 e setembro de 2014 desempenhou as funções de presidente da Petróleos da Venezuela em estreita ligação com Chávez. Eram uma espécie de dupla política e empresarial e a parceria perfeita do que veio a ser a transformação da PDVSA no fundo soberano da Venezuela mas, acima de tudo, na estatização da economia venezuelana — uma das mais dinâmicas da América Latina nas décadas de 80 e 90 devido ao seu setor privado.
Sempre houve a suspeita de que ‘Rafa’ Ramirez estivesse por detrás de uma parte importante dos alegados subornos que são imputados pelo MP a Ricardo Salgado, tal como Observador noticiou desde 2018 sobre a ligação da Venezuela ao caso Universo Espírito Santo (ver aqui, aqui e aqui). E foi isso que, de acordo com a acusação deduzia no passado mês de setembro, a equipa de investigação agora liderada pela procuradora-geral ajunta Olga Barata terá conseguido provar.
Tudo terá começado com uma visita oficial do então primeiro-ministro José Sócrates à Venezuela em maio de 2008, a convite do então presidente Hugo Chávez. Sócrates foi acompanhado de uma comitiva com mais de 80 empresários portugueses e tinha um objetivo claro: estabelecer uma ponte económica entre a economia venezuelana (já então fortemente estatizada) e o setor empresarial português.
Um pormenor relevante. Em 2008, a Venezuela já era um dos países mais corruptos do mundo, segundo o índice de perceção de corrupção da ONG Transparência Internacional: em 180 países, estava no 158.º lugar. Hoje está ainda pior: apenas a Somália, a Síria e ao Sudão do Sul estão em pior situação que a Venezuela.
De acordo com a acusação do MP, terá sido após esta visita oficial de Sócrates que Ricardo Salgado terá “estreitado contactos com elementos do poder político venezuelano, designadamente com o então ministro Rafael Ramirez”, que também era o presidente da PDVSA — a empresa pública que, diziam os especialistas em 2008, explorava então as maiores reservas de petróleo e de gás do mundo.
Depois da visita oficial de Sócrates à Venezuela, ‘Rafa’ Ramirez deslocou-se a Lisboa para uma visita oficial, tendo-se reunido com Manuel Pinho, então ministro da Economia e ex-quadro do GES (que recebia em segredo 14.963,94 mensais do saco azul do GES), para assinar um acordo bilateral entre Portugal e a Venezuela. Foi no âmbito dessa visita que Ramirez almoçou com Salgado na sede do BES, na avenida da Liberdade, em Lisboa.
Mais tarde, Salgado encontrou-se pessoalmente com Ramirez várias vezes entre 2010 e 2014. Um desses encontros foi em Caracas, quando o líder do BES visitou a “terra dos chacais” (como era conhecida a Venezuela no seu círculo privado) para inaugurar a sucursal do banco na capital venezuelana a 18 de janeiro de 2012. Além de Ramirez, Salgado falou ainda com o governador do Banco Central da Venezuela e com o ministro da Banca Pública.
Em junho de 2014, pouco tempo antes de ser obrigado a sair da administração do BES, Salgado encontrou-se com ‘Rafa’ Ramirez, e com o seu ajudante Vitor Aular (então vice-presidente da PDVSA), uma última vez numa suite do Hotel Claridge’s, um hotel de luxo em Londres. O encontro terá sido de tal forma urgente que Salgado viajou de jato particular, alugado à Netjets.
Foi desses contactos iniciais entre Salgado e o “Alemão” — a alcunha pela qual Ramirez era conhecido no núcleo duro do líder do BES, devido à sua frieza e eficácia — que nasceu a primeira relação bancária entre o BES e a PDVSA: a 17 de julho de 2008, aquele que era na prática o fundo soberano da Venezuela abriu conta no banco liderado por Ricardo Salgado.
A conta, contudo, não foi aberta na sucursal da Av. da Liberdade, em Lisboa, mas sim na Sucursal Financeira Exterior do BES — ou BES Madeira. Sucursal que era então liderada por João Alexandre Silva, um personagem essencial nesta história e que está entre os acusados pelo MP de pertencer à associação criminosa alegadamente liderada por Salgado: além de 20 crimes de corrupção ativa com prejuízo no comércio internacional, é-lhe apontado também um crime de corrupção passiva no setor privado e 21 crimes de branqueamento de capitais. Alexandre Silva serviria de intermediário entre Salgado e Ramirez.
Tal conta, contudo, ainda não tinha como objetivo investir em títulos de dívida do GES. Foi aberta na sequência da aprovação de linhas de crédito do BES à PDVSA, no âmbito de cartas de crédito que o banco da família Espírito Santo forneceria aos fornecedores da petrolífera venezuelana.
A sociedade offshore de ‘Rafa’ Ramirez e como se enganavam as autoridades do Dubai
Criado em 1962, o Parque Canaima situa-se no estado Bolívar, será o maior parque natural da Venezuela e o sexto maior parque natural do mundo, tem o selo de património da humanidade dado pela UNESCO e uma área um pouco maior do que a Bélgica, segundo a Wikipédia. A beleza natural daquele parque natural terá servido de inspiração para o nome da sociedade offshore alegadamente controlada por ‘Rafa’ Ramirez.
Criada no Panamá pelo escritório de advogados Alcogal — Alemán, Cordero, Galindo & Lee — o mesmo que está na origem dos Pandora Papers —, a sociedade offshore Canaima Finantial Limited foi registada a 19 de maio de 2009 e era detida por um trust, The Canaima Trust, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas que, por sua vez, era detido por outra empresa offshore, a Gertrust Limited Inc.. Mas, na prática, seria ‘Rafa Ramirez’ quem estava no final da linha de todas estas estruturas como beneficiário económico, como as autoridades norte-americanas também já investigavam há largos anos.
Homem de Salgado para a Venezuela prestes a ser extraditado para os Estados Unidos
Durante muito tempo, a equipa liderada pelo procurador José Ranito — que iniciou as investigações ao Universo Espírito Santo, sendo posteriormente substituído por Olga Barata — teve indícios de que o beneficiário económico da Canaima era Nervis Villalobos. Tratava-se do ex-vice-ministro da Energia e colaborador direto de ‘Rafa’ Ramirez, que chegou a estar detido em Espanha em 2018 por suspeitas de corrupção e branqueamento de capitais, já que transferiu cerca de 124 milhões de dólares para um pequeno banco em Andorra.
No entanto, todas as estruturas que permitiram esconder o nome de Ramirez foram criadas por ordens de Paulo Murta — um antigo quadro da GESTAR, empresa do GES que se dedicava à gestão de fortunas e que foi extraditado para os Estados Unidos em 2021 devido aos processos de corrupção na Venezuela que são investigados no estado do Texas e nos quais ‘Rafa’ Ramirez e Nervis Villalobos, entre muitos outros venezuelanos, também são visados, como pode ler aqui.
Assim, enquanto João Alexandre Silva abria as portas e angariava clientes institucionais venezuelanos, Paulo Murta criava as empresas offshore para os venezuelanos e abria as respetivas contas bancárias no Espírito Santo Bankers, o banco do GES no Dubai. Murta acabou por ser acusado exatamente dos mesmos crimes que Alexandre Silva.
O nome de Nervis Villalobos teve, na verdade, de ser igualmente ocultado por ser uma pessoa politicamente exposta. Tal como a União Europeia e os Estados Unidos da América, o Dubai também adotou desde meados da década de 2000 legislação financeira que obrigava os bancos a escrutinarem os seus clientes, sendo obrigados a não aceitar fundos que tivesse uma proveniência ilícita. As pessoas politicamente expostas ficaram obrigadas a um escrutínio especialmente apertado.
Assim, ‘Rafa’ Ramirez terá combinado com João Alexandre e Silva e Paulo Murta que o formulário da abertura de conta da Canaima no Espírito Santo Bankers teria como beneficiário formal Milagros Coromoto Torres Moran, mulher de Nervis Villalobos. A abertura da conta Canaima ocorreu num momento em que Ricardo Salgado terá querido premiar ‘Rafa’ Ramirez por estar a ajudar João Alexandre Silva a ‘abrir as portas’ noutras empresas do setor energético venezuelano — muitas delas subsidiárias da PDVSA —, permitindo ao BES alargar fortemente o seu núcleo de clientes institucionais na Venezuela.
Entre 2009 e 2010, a conta da Canaima no Espírito Santo Bankers no Dubai recebeu um total de cerca de dois milhões de euros transferidos pela conta de outra sociedade offshore com conta no Banque Privée Espírito Santo, a Espírito Santo (ES) Enterprises: mais conhecido como o famoso saco azul do GES.
60 mil milhões por ano. A viragem de 2011 e o GES a ‘competir’ com o JP Morgan e o BNP Paribas
Contudo, o grosso dos fundos recebidos pela Canaima ocorreu entre 2011 e 2014 — período que coincide com o brutal agravamento das dificuldades financeiras do GES que se tinham iniciado em 2008. Foi nesse período que Jean-Luc Schneider, o operacional suíço do saco azul do GES que também foi acusado de pertencer à associação criminosa de Ricardo Salgado, terá recebido ordens do ex-líder do BES para transferir cerca de 45,7 milhões de dólares para a Canaima de ‘Rafa’ Ramirez.
O ano de 2011 acabou por ser um ano de viragem na relação do BES com a Venezuela por duas razões essenciais.
A primeira prende-se com uma maior necessidade de fundos sentida pelo GES. Os problemas financeiros das principais holdings (que, repete-se, estavam em falência técnica desde 2009) agravaram-se substancialmente e havia um perigo crescente de incumprimento.
Mas a própria Venezuela, e essa é a sua segunda razão, também tinha os seus problemas. A PDVSA, por exemplo, tinha a sua tesouraria operacional domiciliada em grandes bancos internacionais como o norte-americano JP Morgan e o francês BNP Paribas.
Negociando com as principais petrolíferas do mundo na venda de petróleo, comprando e vendendo material para a indústria de extração, refinando o petróleo e vendendo para todo o mundo os diferentes combustíveis ou até servindo de fundo soberano em parcerias estratégicas com a China ou países africanos — tudo junto gerava a circulação de dezenas ou até centenas de milhares de milhões de dólares por ano. Ora, com o agravamento do risco da Venezuela — muito ligado ao confronto político do regime de Chávez com os Estados Unidos e a Europa —, a PDVSA começou a enfrentar problemas de liquidez para pagar aos seus fornecedores. Isto apesar do preço do barril do petróleo ter ultrapassado os 100 dólares em 2012 e 2013.
Ricardo Salgado viu nisso uma possibilidade para alargar o seu negócio e ter uma relação global que passava pelas seguintes operações:
- Operações de trade finance — que consistiam na concessão de linhas de crédito, nomeadamente cartas de crédito, utilizadas pelas entidades públicas venezuelanas para adquirir bens e serviços nos mercados internacionais;
- Operações cambiais — câmbio de diferentes moedas;
- Operações de mercado monetário — compra e venda de dólares americanos;
- Operações de depósito à ordem e a prazo;
- E operações sobre valores mobiliários — investimento em títulos de dívida GES.
E foi então que se deu o salto gigante para que a PDVSA, as suas subsidiárias e restantes empresas energéticas venezuelanas se transformassem nos principais clientes do BES e do GES de 2011 até ao último dia das empresas da família Espírito Santo. Na prática, o cliente era só um e chamava-se Venezuela.
Num email enviado a 31 de maio de 2011, João Alexandre Silva informou Ricardo Salgado que a centralização da tesouraria da PDVSA no BES poderia significar fluxos monetários de 60 mil milhões de dólares anuais no negócio bancário da família Espírito Santo — com tudo o que isso poderia significar em lucros com comissões ou taxas, além do investimento em dívida do GES.
Antes, o conselho de administração do BES já tinha aprovado um sistema de cash pooling entre o banco liderado por Ricardo Salgado e a Petróleos da Venezuela, SA, e a PDVSA, SA.
No terceiro trimestre de 2011, o Grupo PDVSA transferiu mesmo a sua tesouraria para o BES, até então domiciliada no JP Morgan e no BNP Paribas.
A partir de dezembro de 2011 iniciou-se o investimento dos venezuelanos em títulos de dívida do GES, sendo necessária a alteração dos dados contabilísticos da Espírito Santo International (ESI) e de outras holdings do GES — então já claramente falidas — para que os mesmos investimentos fossem aprovados pelos departamentos financeiros da PDVSA e das suas subsidiárias.
No final de 2009, a situação real das contas da ESI era a seguinte: capitais próprios negativos de pelo menos 961,9 milhões de euros e resultados negativos de cerca de 1,2 mil milhões de euros — situação que se agravou nos anos seguintes, chegando a um passivo real negativo de 7,2 mil milhões de euros em 2013. tal como o MP já tinha descrito na acusação principal do caso Universo Espírito Santo
Ironicamente, tais títulos de dívida, que nada valiam naquele momento — eram dados como colateral para empréstimos que o BES fazia às entidades venezuelanas.
Só o Grupo PDVSA subscreveu mais de 500 milhões de dólares de obrigações da ESI, aplicações que foram sempre renovadas entre 2011 e 2014.
O “Velho”, o “Barril, o “Peras” e o “Novo”. Mais seis altos responsáveis da PDVSA terão sido corrompidos na “terra dos chacais”
A relação entre o BES e a PDVSA começou com uma linha de crédito de 350 milhões de dólares aprovada pelo banco português em outubro de 2018, sendo que pouco depois a petrolífera venezuelana transferiu cerca de 80 milhões de dólares de uma conta que tinha na Caixa Geral de Depósitos (por via do acordo que tinha sido estabelecido com a Galp para a compra de petróleo) para uma conta do BES.
A Petróleos da Venezuela SA — a empresa-mãe do Grupo PDVSA — chegou a ter 621 contas abertas no BES – Sucursal Financeira Externa Madeira com inúmeros movimentos. E a PDVSA Petróleos SA foi titular de 38 contas de depósito à ordem e dossiers de títulos e de 83 contas a prazo.
Depois ‘Rafa’ Ramirez, Ricardo Salgado e João Alexandre Silva terão, segundo a acusação do MP, alegadamente corrompido mais seis altos responsáveis da PDVSA, como se pode ver no quadro abaixo reproduzido.
Um deles foi Eudomario Carruyo, então chief financial officer da PDVSA e referenciado na folha Excel que descrevia os alegados pagamentos como o “Velho”. Através da sua sociedade offshore Benyor Finance Ltd — criada por Paulo Murta exatamente nas mesmas condições da offshore de ‘Rafa’ Ramirez —, Carruyo terá recebido cerca de 15,1 milhões de dólares na sua conta no Espírito Santo Bankers Dubai.
O outro foi Victor Aular, vice-presidente financeiro da PDVSA, conhecido como o “Novo” (numa comparação com Eudomario Carruyo). Terá recebido cerca de 30 milhões de dólares através da sua sociedade offshore Clippon Ltd. Foi preso na Venezuela em agosto de 2022 por estar ligado a um desfalque de mais de 4 mil milhões de dólares na PDVSA e já foi acusado nos Estados Unidos de idênticos delitos.
O mesmo aconteceu com Rafael Cure Lopez, ex-diretor financeiro das operações internacionais da PDVSA, já identificado em anteriores trabalhos do Observador. Terá recebido cerca de 15,2 milhões de dólares na conta aberta em nome da Golden Captive Investments, Ltd.
Abraham Ortega (diretor das operações internacionais da PDVSA, com a alcunha de “Peras” na lista de pagamentos apreendida aos operacionais de Ricardo Salgado) e Carlos Carruyo Perozo (assessor do conselho de administração da PDVSA) receberam cada um cerca de 11 milhões de dólares. Já Renny Bolivar, que substituiu Ortega e era conhecido pela alcunha “Barril”, terá recebido cerca de 7,1 milhões de dólares.
E até Rafael Reiter, ex-guarda-costas de ‘Rafa’ Ramirez e que era então diretor dos serviços de segurança interna da PDVSA, tinha uma sociedade offshore chamada apropriadamente Safeguard onde terá recebido 500 mil dólares. Reiter tinha a alcunha de “Ravier”.
Todos esses altos funcionários venezuelanos eram da “terra dos chacais” — o nome com que a Venezuela era tratada pelo grupo de Ricardo Salgado.
Banco del Tesoro aplicou mais de 5 mil milhões no BES
Contudo, esta não foi a única entidade venezuelana a ter relações com o BES. Houve pelo menos mais oito entidades públicas a entregarem os seus fundos ao BES e a investir no GES, sendo que houve mais 18 altos responsáveis públicos da Venezuela a serem alegadamente corrompidos pela associação criminosa de que Ricardo Salgado é acusado de liderar, como se pode ver neste quadro elaborado com os dados do MP.
Com a ajuda de ‘Rafa’ Ramirez, João Alexandre Silva terá conseguido contactar essas entidades públicas venezuelanas. Uma delas foi o Banco de Desarrollo Económico e Social (BANDES). Esta entidade geria o FONDEN — um fundo soberano financiado com a liquidez resultante da diferença do preço de venda do barril de petróleo ao preço tabelado pelo Governo de Hugo Chávez e o preço de venda em mercado internacional. E apoiava a construção de infraestruturas ou projetos para os cidadãos mais pobres.
Após abrir uma conta no BES – Sucursal Financeira Externa da Madeira em março de 2009, foram acertadas cartas de crédito subscritas pelo BES no valor de 300 milhões de dólares a favor do BANDES com validade até ao final de 2011. Tudo feito com Maria de Los Angeles Gonzalez de Hernandez, diretora executiva financeira do BANDES entre 2008 e maio de 2013.
Hernandez era titular de uma sociedade offshore, a Santa Cecilia Investments criada por Paulo Murta, e tinha conta no Espírito Santo Bankers. Foi lá que recebeu do saco azul do GES cerca de 3,6 milhões de dólares durante o período em que foi responsável do BANDES. Em maio de 2013, foi detida nos Estados Unidos e mais tarde foi condenada por corrupção.
Outra entidade pública foi o Banco del Tesoro — que resultou da fusão de várias instituições financeiras e geria também uma parte do FONDEN — e outro fundo soberano muito relevante, o “Fondo de Financiamento Conjunto Chino-Venezuelano”. Um fundo dotado com seis mil milhões de dólares que resultou de um acordo bilateral entre a Venezuela e a China para financiar projetos sociais e de infraestruturas no país de Chávez e Maduro.
Através de Arnoldo Cardenas Hernandez, gerente da tesouraria do Banco del Tesoro, que João Alexandre Silva conheceu em outubro de 2008, o BES conseguiu angariar várias contas bancárias daquela instituição financeira, tendo a primeira delas sido aberta a 4 de dezembro de 2008. No total, foram 25 contas de depósito à ordem e dossiers de títulos.
Em abril de 2009, o Banco del Tesoro tinha os seguintes ativos depositados no BES:
- Depósitos a prazo de cerca 2 mil milhões de euros;
- Depósitos à ordem no valor de 2,1 mil milhões de euros;
- E operações em mercado monetário avaliadas em cerca de 1,3 mil milhões de euros.
No total, eram mais de 5 mil milhões de euros aplicados no banco de Ricardo Salgado — valor que veio a descer significativamente nos anos seguintes. Pelo meio, o Banco del Tesoro ainda fez um investimento de mais de 100 milhões de dólares em obrigações da ESFIL – Espírito Santo Financiére, que tinha Jean-Luc Schneider como administrador.
Como alegada contrapartida, Paulo Murta abriu para Cardenas Hernadez uma sociedade offshore, a AC Chacal Limited, que recebeu cerca de 331 mil euros da ES Espírito Santo.
Até os pagamentos da diplomatas venezuelanos passava pelo BES
Outras entidades do setor energético, como a Eletricidad de Caracas (subsidiária da PDVSA) ou a Corpoelec – Corporación Elétrica Nacional (que nasceu da fusão de várias empresas elétricas venezuelanas, entre as quais a Eletricidad de Caracas), também investiram no BES e no GES.
Logo em outubro de 2008, João Alexandre Silva conseguiu convencer Javier Alvarado Ochoa e Nicolas Veracierta, respetivamente presidente e diretor financeiro da Eletricidad de Caracas, a iniciarem uma relação comercial com o BES. O banco liderado por Ricardo Salgado começou por aprovar uma linha de crédito no valor de 50 milhões de dólares, tendo a mesma sido aumentada no final de 2018 para 65 milhões de dólares.
Mais tarde, em fevereiro de 2009, a Elétrica de Caracas aplicou cerca de 164 milhões de euros em depósitos a prazo no BES, sendo que a empresa pública tinha um volume de negócios anual de cerca de 500 milhões de euros.
Já em 2011, Javier Alvarado Ochoa foi nomeado presidente da Bariven — uma entidade que era subsidiária da PDVSA e uma espécie de centro de compras da petrolífera venezuelana. Tornou-se assim responsável pelos contratos com todos os fornecedores da PDVSA.
Salgado e BES envolvidos em esquema de corrupção de 3,5 mil milhões de euros na Venezuela
E foi aí que, aproveitando as dificuldades de liquidez da PDVSA que advinham da baixa do preço do petróleo em 2011/2012, o BES passou a financiar a Bariven nos pagamentos aos fornecedores — sobretudo empresários como Roberto Rincón e Abraham Shiera. Estes venezuelanos operavam a partir dos Estados Unidos, nomeadamente do estado de Texas, com um esquema de corrupção que terá desviado cerca de 3,5 mil milhões de euros da PDVSA, tal como o Observador noticiou aqui.
Na investigação norte-americana, Alvarado Ochoa, juntamente com Nervis Villalobos, Rafael Reiter, Luis de Leon (diretor jurídico da Eletricidad de Caracas e colaborador de Ochona na Bariven) e César Rincon Godoy (então diretor-geral da Bariven), são suspeitos de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
Já em Espanha, onde quase todos foram detidos (tendo Reiter e Leon sido extraditados para os Estados Unidos), são igualmente suspeitos dos mesmos crimes, por terem sido detetadas 37 contas bancárias num pequeno banco de Andorra com mais de 2 mil milhões de euros à ordem de sociedades offshore criadas no Panamá.
No caso da acusação do Universo Espírito Santo, Ochoa é acusado de ter recebido alegadas contrapartidas do saco azul do GES em dois momentos diferentes (2009 e entre 2011 e 2014), relacionados com duas entidades diferentes (a Eletricidad de Caracas e a Bariven) e através de duas sociedades offshore também diferentes (a Astrea Investiments Ltd e a Constellation Ventures Ltd). No total, Ochoa recebeu cerca de 4,2 milhões de dólares por alegadas ordens de Ricardo Salgado.
Além das empresas energéticas, João Alexandre Silva também conseguiu captar outras entidades, como a Oficina Nacional del Tesoro, através de contactos como Jorge Giordani Cordero, então ministro para a Economia e Finanças que tutelava aquela entidade responsável, entre outras tarefas, pelo pagamento dos salários e despesas das representações diplomáticas venezuelanas espalhadas pelo mundo.
Tais salários e despesas foram pagos a partir de julho de 2012 através de contas bancárias abertas na Sucursal Financeira Externa do BES Madeira — após o acordo feito com a Oficina Nacional del Tesoro por via das “boas referências que lhes foram dadas pela PDVSA e pelo Banco Central da Venezuela”, lê-se no despacho de acusação do MP, citando um email de um responsável do BES na Venezuela.
A Oficinal Nacional del Tesoro teve um pico de aplicações de cerca de 704 milhões de dólares feitas na SFE do BES Madeira.
Também o Banco Nacional da Venezuela teve linhas de crédito do BES avaliadas em cerca de 300 milhões de dólares, “cujos termos foram negociados com o ministro da Banca Pública da República Bolivariana da Venezuela”, lê-se na acusação.
Estes investimentos de empresas financeiras, que nada tinham a ver com a PDVSA, indiciam que houve um movimento concertado ao mais alto nível do regime então liderado por Hugo Chávez para investir no GES, deduz a acusação.
Como as ‘luvas’ eram calculadas pela sala de mercados do BES
Segundo o despacho do MP, muitas das alegadas contrapartidas eram previamente negociadas alegadamente por João Alexandre Silva e Paulo Murta em “encontros laterais” que aconteciam essencialmente em quartos de três hotéis de Caracas: o Renaissonce, o Pestana Caracas e o Caracas Palace.
Independentemente dessa negociação, o cálculo das alegadas contrapartidas era feito com quase rigor cientifico e obedecia a fórmulas pré-definidas que foram criadas e eram calculadas por Isabel Almeida, diretora do Departamento Financeiro, Mercados e Estudos do BES. Juntamente com Amílcar Morais Pires, Isabel Almeida foi acusada na acusação do processo principal do Universo Espírito Santo de pertencer à alegada associação criminosa liderada por Ricardo Salgado. Daí que nenhum deles tenham sido acusados neste novo processo relacionado com a Venezuela.
Os cálculos feitos em folha Excel obedeciam a quatro critérios essenciais:
- Os valores da receita venezuelana bruta e líquida;
- O respetivo peso na atividade do BES;
- O volume de investimento venezuelano no GES;
- E o apuramento de saldos globais a transferir trimestralmente para as contas da Espírito Santo Bankers alegadamente abertas em nomes de sociedades offshore dos responsáveis venezuelanos.
Ou seja, depois de ser apurado o lucro do BES e do GES com as operações das empresas públicas da Venezuela, determinava-se o pagamento das alegadas comissões aos angariadores do negócio. “Os negócios e os investimentos” entre o BES e Venezuela “tiveram reflexo direto no montante de pagamentos ocultos a dirigentes das empresas públicas venezuelanas, necessários a que o BES e o GES beneficiassem e mantivessem negócio”, lê-se no despacho de acusação.
Pagos trimestralmente, e tendo por base uma percentagem sobre 50% da receita gerada, terão sido entregues um total de 214 milhões de dólares em alegadas ‘luvas’ a responsáveis venezuelanos entre 2009 e junho de 2014.
Tudo para conseguir aplicações e investimentos que atingiram um pico anual de 8,2 mil milhões de euros, sendo que em dezembro de 2011 esse valor anual tinha baixado para 3,1 mil milhões de euros. Só a PDVSA terá transferido cerca de 7,8 mil milhões de euros para o BES entre 2012 e 2014 — mas esse valor não está registado no sistema central da Autoridade Tributária, devido ao ‘apagão informático’ da Autoridade Tributária sobre as transferências bancárias revelado pelo Jornal Económico.
Dinheiro perdido com investimentos no GES e milhões apreendidos pelo MP
Apesar de muitas aplicações em produtos financeiros do GES terem corrido bem, houve outras que foram mesmo declaradas perdidas após a falência das várias holdings do GES. O BANDES e o FONDEN, por exemplo, estavam expostos a obrigações da ESI avaliadas em cerca de 345 milhões de dólares. Ora, todo esse dinheiro foi declarado pedido por via da falência daquela holding dos Espírito Santo.
O mesmo se diga de vários alegados corrompidos. Sem que os próprios soubessem, João Alexandre e Silva e Paulo Muta terão obedecido a alegadas ordens de Ricardo Salgado e no período de 2013/2014 terão investido os saldos das contas offshore no Espírito Santo Bankers, no Dubai, em produtos de dívida da ESI e de outras sociedades que vieram a ser declaradas falidas no verão de 2014.
Foi o caso de Nervis Villalobos (que, além da sociedade Canaima Finance, detinha outras estruturas offshore) e de Luís de Leon, ex-diretor de serviços jurídicos da Eletrica de Caracas. No caso de Leon, a sua sociedade 0ffshore Andean investiu cerca de 4,6 milhões de euros em ações da Espírito Santo Finantial Group, que detinha a participação no BES. Com a insolvência dessa sociedade, as ações passaram a valer zero. Luis de Leon foi constituído arguido nos autos deste processo e declarou que tinham sido os responsáveis do BES a realizar tal investimento sem o seu conhecimento.
Como complemento, e além dos valores que foram dados como provados que foram pagos pelo saco azul do GES, a procuradora-geral adjunta Olga Barata deduziu ainda com o despacho de acusação uma declaração de perda das vantagens criminosas a favor do Estado no valor total de cerca de 11,1 milhões de euros de saldos bancários depositados em vários bancos portugueses em nome de nove sociedades offshore dos altos dirigentes venezuelanos.
Uma delas é a Canaima Finance, cuja titularidade, diz o MP, é de ‘Rafa’ Ramirez, apesar das contas bancárias terem o nome de Nervis Villalobos como titular da sociedade offshore criada no Panamá. Entre Novo Banco, Millennium BCP, BPI e Banco Carregosa, a Canaima terá ainda em Portugal cerca de 507 mil euros que deverão ser declarados perdidos a favor do Estado por terem origem alegadas atividades criminosas.
O mesmo se diga da Safe Leader Investments de Rafael Reiter, o ex-guarda-costas de ‘Rafa’ Ramirez. Apesar de os fundos transferidos do saco azul do GES para a conta que tinha no Espírito Santo Bankers ascenderem ‘apenas’ a 500 mil dólares americanos, a Safe Leader tinha em bancos portugueses depositados cerca de 732 mil euros e 1,8 milhões de dólares — que o MP quer que revertam para o Estado.
A Clippon Finance, de Vitor Aular (ex-vice-presidente financeiro da PDVSA) tinha em Portugal cerca de três milhões de euros depositados em várias contas do BES que transitaram para o Novo Banco. Correm o risco de ser declarados perdidos a favor do Estado.
Se o MP conseguir que, no final do processo, tais valores venham a reverter para o Estado, é caso para dizer que, nesse caso, o crime não compensou. O problema é que terá compensado durante muitos anos na Venezuela.
Retificada às 18h46 de 2 de novembro de 2023 a informação que liga o escritório de advogados Alcogal aos Panamá Papers. A Alcogal está ligada aos Pandora Papers e foi acrescentada informação sobre a situação real das contas da ESI às 13h17m do dia 3 novembro de 2023.