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O ator Paulo Pires, fotografado abundantemente numa das salas de estar do estúdio antes de ser entrevistado pelos jornalistas presentes
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O ator Paulo Pires, fotografado abundantemente numa das salas de estar do estúdio antes de ser entrevistado pelos jornalistas presentes

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O ator Paulo Pires, fotografado abundantemente numa das salas de estar do estúdio antes de ser entrevistado pelos jornalistas presentes

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O anti-glamour de uma manhã nos bastidores de uma telenovela

"Cacau" é a nova novela da TVI e o que se vê atrás das câmaras não está assim tão distante da vida real: em poucas horas falamos de showbiz, contabilidade e "marmelada de meia noite".

Se bem me lembro, ao longo da vida, acompanhei quatro telenovelas: Roseira Brava (1996), Terra Nostra (1999), Anjo Selvagem (2001) e a primeira temporada dos Morangos com Açúcar (2003), isto além dos episódios dispersos a que a minha avó assistia e que eu ia acompanhando distraidamente durante as férias de Verão, e que se confundem agora na minha memória com outras histórias desse tempo que não me deixavam dormir, como a do Luís Miguel Militão a enterrar portugueses em cimento, a da onda gigante que prometia destruir o Algarve e a do homem dentro de um quadro que o meu tio jurava sair da moldura todas as noites.

Ainda assim, a caminho dos estúdios da Plural, aqui o Foster Wallace dos pobres convence-se de que está prestes a compreender o que é uma telenovela (ou, nas imortais palavras proferidas por José Eduardo Moniz duas horas mais tarde, uma “produção continuada de ficção”) e por que motivo tem este formato tantos espectadores, a pretexto da estreia de Cacau, a nova produção continuada de ficção da TVI.

Não contava, no entanto, que chovesse, sendo precisamente à precipitação que atribuo o insucesso dos meus nobres esforços. Chego à entrada dos estúdios pontualmente às onze da manhã, onde a esta hora se acumulam debaixo de um pequeno toldo junto à cancela mais de uma dezena de jornalistas e fotojornalistas da imprensa cor-de-rosa. Um deles, que rapidamente se tornaria o meu favorito, protesta com a TVI por o deixarem ali à espera naquelas condições, reproduzindo a sua amargura palavra por palavra perante a produtora que dois minutos depois ali chega, garantindo que consigo, como já todos sabem, nada fica por dizer. Depois, pergunta se vamos à fazenda, não parecendo disposto a aceitar um não como resposta.

Em dia de rodagem houve tempo para discursos (e brinde) com José Eduardo Moniz e Cristina Ferreira

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Somos então levados para um novo toldo, onde Salvador Nery (Tó Mané), de gabardina e calças creme, cabelo e barba impecáveis e voz colocadíssima, nos dá a primeira entrevista do dia. Salvador fala da sua personagem que, garante, vai dar que falar, por ser um polvo que entra onde não é chamado, servindo de ponto de apoio da história. Depois, faz um parêntesis para elogiar Cacau, um novelão à antiga com uma qualidade de imagem estrondosa, como nunca se viu por cá. Regressando a Tó Mané, ficamos a saber que é irmão de Lalá (Inês Castel-Branco) e um homem de grandes paixões, uma personagem feita à sua medida, em cuja ambição se revê, mas não nos comportamentos com que Tó Mané a sacia. Também a vida amorosa dos dois é diferente, uma vez que Tó Mané terá vários pares românticos ao longo da produção continuada de ficção, ao passo que Salvador é casado com a sua alma gémea há dez anos, com quem já teve um casalinho.

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O meu jornalista favorito vê então uma oportunidade e atira-se de cabeça: “É mesmo a sua alma gémea?”. Salvador confirma, e fala de como os actores se tornam mais magnéticos quando não falam muito da vida pessoal, ao que o meu jornalista favorito sacode vigorosamente a cabeça e sorri, revelando uma discordância profunda. Serenados os ânimos, o meu jornalista favorito volta a insistir, talvez na esperança de alguma revelação bombástica: “Alma gémea é uma palavra forte, Salvador”. Salvador volta a confirmar que ama Maria e encaminha-se para uma sessão fotográfica junto ao bosque da Plural.

Já dentro dos estúdios, cruzo-me com Paulo Pires e Isabel Figueira, que o meu jornalista favorito diz estar muito bonita, depois de ter atravessado um período de magreza excessiva. Dou dois passos para entrevistar uma rapariga que me parece ter ar de actriz, mas, ao aproximar-me, percebo tratar-se da responsável pelo guarda-roupa. Em conversa com os jornalistas, o responsável pela comunicação da produção continuada de ficção confidencia que uma das personagens morre, mas, por a hesitação anteriormente referida me ter distraído, não percebi qual, desculpem. Só sei que é um homem de meia-idade. Se mais soubesse, acreditem, mais vos diria, amigos leitores.

Paulo Pires fala de papéis antigos, em que fez de padre, plantador de canábis e de pretenso camionista, e enquanto enumera estas personagens, o meu jornalista favorito vai abanando a cabeça e murmurando os nomes das respectivas novelas. Depois, pede-lhe que comente as declarações recentes de Diogo Amaral, que o considerara o homem mais bonito de Portugal.

Entretanto, vejo num monitor dividido em quatro uma cena do episódio 95, que está agora a ser gravada, onde uma rapariga loura de caracóis, sentada num sofá a conversar com os pais (imagino eu), eleva as mãos em posição de prece à altura do nariz. Parece transtornada, mas serena. Ao ver a mesma cena, o meu jornalista favorito rejubila: “Ao menos o Justino ainda está vivo. Assim ainda conhece a filha, coitado”. Louvado seja Cristo por Suas obras e graças.

Seguimos então para o estúdio, onde assistiremos ao ensaio da cena em que Salomão (Paulo Pires), Justino (António Capelo) e um rapaz e uma rapariga brasileiros conversam sobre o trágico desaparecimento de Cacau, acusada, tanto quanto percebi, de homicídio. A rapariga traz uma mala ao ombro e o rapaz está de camisa havaiana e chinelos de praia, ambos de pé, revelando claramente não pertencerem àquela mansão.

Mal saímos do estúdio para permitir a filmagem da cena, o meu jornalista favorito narra às colegas o dia em que, ao sair da casa de banho da Plural, se deparou com dois actores aos linguadões (voltei a não ouvir quais, raios partam o azar), recebendo assim de bandeja uma notícia chocante, que terá, como é sua obrigação, noticiado prontamente, uma vez que o beijo não fora dado em off.

Entrevistamos agora Nuno Pardal, que encarna Rui, marido de Sal (Carolina Amaral) e que, segundo o meu jornalista favorito, anda metido com a sogra (Alexandra Lencastre). Nuno Pardal não comenta, mas não deixa de acrescentar que “maravilha, maravilha, é andar com a mãe e andar com a filha”. O jornalista pergunta então se podemos esperar marmelada de meia-noite nesta produção continuada de ficção e Nuno Pardal confirma. A seguir, o actor fala-nos da conta que mantém no site OnlyFans, mas nega que se trate de uma plataforma exclusivamente de filmes para adultos. O meu jornalista favorito pergunta-lhe então se a mãe aprova as fotografias que lá anda a partilhar e Nuno Pardal garante que sim, mas, claro, o meu jornalista favorito não seria o meu jornalista favorito se a seguir não perguntasse: “E a cara-metade aprova?”.

Em "Cacau" há uma filha secreta, uma enxurrada de ciúmes, paixões inevitáveis: é uma ""produção continuada de ficção", nas palavras de José Eduardo Moniz

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Segue-se Paulo Pires, fotografado abundantemente numa das salas de estar do estúdio antes de ser entrevistado pelos jornalistas presentes. Fala-nos de Salomão, um advogado sem escrúpulos, irónico, sarcástico e machista, mas, ainda assim, sério. É casado com Júlia (Fernanda Serrano), que trai a torto e a direito com Lalá. No entanto, porque o amor é um lugar estranho, parece haver esperança na reconciliação. Fala de papéis antigos, em que fez de padre, plantador de canábis e de pretenso camionista, e enquanto enumera estas personagens, o meu jornalista favorito vai abanando a cabeça e murmurando os nomes das respectivas novelas. Depois, pede-lhe que comente as declarações recentes de Diogo Amaral, que o considerara o homem mais bonito de Portugal.

Percebo então que a descrição genérica das personagens, resumidas a traços vagos de personalidade e peripécias trágico-amorosas, corresponde à maneira como se espera que os protagonistas falem de si mesmos. Talvez seja isso que atrai os espectadores. Talvez as novelas sejam uma forma de anti-arte, em que, se a arte procura, entre mil outras coisas, ver a vida como um bicho peculiar que não pára de se expandir à medida que nos aproximamos dela, as produções continuadas de ficção fazem o exacto contrário: expandem-se infinitamente sem dar um passo em frente, mostrando-nos que a vida é, afinal, um mero acumular de peripécias que acompanhamos sonolentamente, saltando episódios sem que nada mude. O que se perde em subtileza e inquietação ganha-se em conforto, numa transacção que não consigo deixar de ver como bastante agradável. Onde Shakespeare via uma sombra ambulante e uma história contada por um imbecil, repleta de som e fúria, sem nada significar, os autores de Cacau vêem apenas um conjunto de rapazes e raparigas envoltos em problemas e infidelidades, à procura de uma cara-metade com quem ter filhos.

Cristina Ferreira remata com uma frase que se fosse mais ferreiriana rebentava, ao garantir que os espectadores logo à noite dirão: "'O que é isto? Que novela é esta?' É a nossa e chama-se Cacau!".

Dirigimo-nos então à tão aguardada fazenda, que a chuva, vedando os espaços exteriores, torna pequena demais para comportar tanta gente. Lá dentro, Isabel Figueira faz uma story para as redes sociais e uma jornalista da TVI entrevista Carolina Amaral, enquanto não param de chegar carrinhas com actores, produtores e, claro, com Cristina Ferreira, José Eduardo Moniz e Piet-Hein Bakker. A densidade populacional da fazenda torna toda aquela gente numa massa uniforme, impedindo-me de falar isoladamente com quem quer que seja. Ainda assim, arranjo maneira de conversar uns minutos sobre a diferença entre arte e entretenimento com Pedro Giestas, que conhecia por ter feito de Zeca em Anjo Selvagem. Uma sineta muda parece ter sido tocada entretanto, uma vez que de repente todos se calam e caminham ordeiramente para a sala, onde José Eduardo Moniz discursará sobre a vontade de vender esta produção continuada de ficção ao mundo lusófono. A seguir, Cristina Ferreira remata com uma frase que se fosse mais ferreiriana rebentava, ao garantir que os espectadores logo à noite dirão: “‘O que é isto? Que novela é esta?’ É a nossa e chama-se Cacau!”

Regresso a casa.

À noite, ligo a TVI e vejo o primeiro episódio. Logo no genérico, percebo que Cacau era afinal Matilde Reymão, a rapariga de caracóis que vira conversar com os pais nos monitores. Ao contrário do que imaginava, as primeiras cenas acumulam revelações bombásticas e tudo avança extraordinariamente depressa: Cacau não é filha dos administradores da fazenda mas de uma relação extraconjugal entre Justino e Chiquinha (Bruna Alvim), tendo a mãe sido atacada com ácido sulfúrico por Simone (Alexandra Lencastre); Sal e Rui querem vender a fazenda à revelia de Justino; Simone quer matar Justino; Salomão está de relações cortadas com o filho, Tiago (José Condessa), cujo irmão morreu; Tiago prepara-se para viajar para o Brasil, onde evidentemente conhecerá Cacau, sua parceira romântica; Anita (Catarina Nifo) tem ciúmes da irmã, Cacau, e Regina (Christine Fernandes) quer tornar-se enfermeira de Justino com intenções obscuras.

Tudo isto em cinco minutos ou menos, como se Cacau fosse um jogo de xadrez em que as peças são dispostas no tabuleiro antes ainda de a acção arrancar, para depois andarem para trás e para diante sem nunca saírem do lugar, tranquilizando-nos com a garantia de que, por mais estranho que o mundo nos pareça, podemos calmamente reclinar a cabeça na almofada na companhia da nossa cara-metade, certos de que amanhã tudo voltará ao normal nesta produção continuada de ficção a que chamamos vida.

Passeio das Virtudes é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vidas.

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