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No espaço de uma escola canina há animais formados numa espécie de ensino superior e há orgulhosos donos e professores
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No espaço de uma escola canina há animais formados numa espécie de ensino superior e há orgulhosos donos e professores

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

No espaço de uma escola canina há animais formados numa espécie de ensino superior e há orgulhosos donos e professores

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O cão Beltrão, o cavalo de pestanas cor-de-rosa e uma manhã no Pet Festival

Escolas caninas, cabeleireiros para pelo cuidado, burros, lamas e cabras-miniatura. Na FIL, em Lisboa, o Pet Festival é um desfile de animais domésticos — para curiosos, apaixonados e fieis devotos.

Ainda nem são dez e meia de sexta-feira quando entro na FIL, para visitar o Pet Festival, o maior festival português dedicado exclusivamente a animais de estimação. A esta hora, os pavilhões onde se acumulam centenas de animais em exposição ainda se encontram praticamente desertos, apesar de a proprietária de um café nas imediações do recinto me ter garantido que já por lá passara a equipa de reportagem da SIC.

Percorro os corredores e vejo bancas a prepararem-se para vender aspiradores, coleiras, rações e vestiário canino a festivaleiros em busca do produto certo para os seus amigos de quatro patas (nem todos, na verdade). Mesmo ali ao lado, um stand a comercializar peixes e t-shirts divertidas (uma com a frase “I like fish and maybe three people”, outra com o desenho de um peixe-balão, que diz “I want to fart so hard”) tem como estrela da companhia o flowerhorn, um peixe roseado que revela espantosas semelhanças com Elvis Presley. Mais perto da entrada, há um veterinário de animais exóticos e uma banca com cobras, aranhas, camaleões e alguns bichos mais pequenos que são apresentados já não como animais, mas antes como alimento vivo para répteis.

Junto da escola canina onde mais tarde decorrerão gincanas e aulas, encontro a tenda do departamento cinotécnico do Regimento de Sapadores de Bombeiros, ativado, como me explicam os bombeiros ali presentes, apenas duas a três vezes por ano, normalmente em resposta a derrocadas de prédios. Por raras que sejam essas ocasiões, os bombeiros têm sempre quatro a cinco cães prontos a sair do quartel para ajudar humanos soterrados em escombros. Explicam-me que o treino de um cão-bombeiro consiste em convencê-los de que tragédias destas são um mero jogo de escondidas e garantem que estes brincalhões são mais eficientes do que qualquer tecnologia de ponta.

Pelos corredores vejo bancas a prepararem-se para vender aspiradores, coleiras, rações e vestiário canino a festivaleiros em busca do produto certo para os seus amigos de quatro patas (nem todos)

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Sigo rumo à banca do Centro de Recolha Oficial da Amadora, onde cães abandonados se revezam em turnos à espera de uma alma caridosa que os adote. É aí que conheço o Beltrão, um cão branco e castanho com um ar patusco indiciado pelo cruel homicídio de um par de ovelhas. Beltrão não se pronuncia sobre a veracidade das acusações, mas o responsável da banca, no tom de uma mãe chamada a testemunhar em defesa da pureza do coração do seu filho, jura que acha improvável o doce Beltrão ter algum dia aumentado as estatísticas da criminalidade violenta em Portugal, sugerindo que as tropelias de uma raposa foram instrumentalizadas para acicatar uma briga de vizinhos.

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Desejo o melhor ao Centro e ao pobre réu e sigo para o pavilhão seguinte, onde me deparo com um burro muito castiço e um cavalo branco com a crina, o rabo e as pestanas pintadas de cor-de-rosa. Junto à primeira secção dedicada aos animais da quinta, um cão preto com um pelo incrível serve de publicidade a um stand de grooming — atividade que tem tanto de higiene e limpeza como de caracterização e embelezamento dos animais, algo que também conhecido como “cabeleireiro dos cães”.

Ali a dez metros, uma outra secção dedicada aos animais da quinta expõe cavalos miniatura americanos, cabras miniatura, alpacas, pastores alemães de linhagem antiga, suricatas e lamas. É aí que conheço o senhor Vítor, utente de um lar de idosos que visitou o Pet Festival para passar tempo com estes animais. O senhor Vítor tem 98 anos, mas insiste em ficar de pé durante a nossa conversa, em que me fala das memórias da Segunda Grande Guerra, do seu tempo como Oficial Superior da Marinha e dos muitos países que visitou. Diz-me que nunca pensou ver animais destes por cá e, quando lhe pergunto se está a gostar, responde-me, com um olhar doce e ternurento: “Oh se estou, meu amigo. Oh se estou”. Dois minutos depois, a propósito dos lamas que alimenta e a que dá festinhas, acrescenta: “Mas sabe que o que a mim me custa é ouvir as pessoas dizerem mal do doutor Salazar, que foi um patriota como houve poucos”. Eu finjo-me desentendido e mudo de assunto, enquanto um outro idoso com ar traquinas anuncia a intenção de roubar um borrego.

O Martim tinha medo de cães por ter sido atacado por um há alguns anos, mas agora não quer outra coisa, falando-me do amor incondicional dos nossos amigos de quatro patas, enquanto tenta convencer a Stitch a atravessar um túnel, depois de já ter serpenteado umas varas azuis e amarelas. Antes de nos despedirmos, diz que nenhum casal deveria ponderar ter filhos sem antes adotar um animal.

Entre os pavilhões, um miúdo com ar malandro, de colete e boina, passeia-se com um papagaio ao ombro e duas crianças de três anos montam a cavalo pela primeira vez, com um sorriso ligeiramente receoso.

À medida que as horas passam, a FIL vai-se enchendo de visitantes, maioritariamente mulheres entre os vinte e os trinta anos. Duas amigas, uma do Seixal e a outra de Oeiras, passeiam junto à banca das coleiras e contam-me que se conheceram nos longos passeios de fim-de-semana, a que vão para os animais socializarem. A cinco metros dali, na Miminhos da Luna, a Madalena, engenheira informática de profissão, vende donuts, bolos de aniversário e cinnamon rolls para cães a um público, segundo a própria, composto quase exclusivamente por mulheres como ela, jovens e sem filhos. Diz que no dia em que saiu de casa dos pais cumpriu o sonho de adotar um animal, tendo ido de propósito a Braga para recolher a Luna, uma cadela de olhar infeliz que encontrara numa rede social. Explica-me que a Luna estava infeliz porque ainda não a conhecera. A Madalena diz que faria tudo pela cadela, que trata por “filha”, e dá como exemplo o par de meses e milhares de euros que gastou com a Luna quando esta foi atropelada. O condutor saiu do carro aos gritos, o que levou a que a sua filhota passasse a temer homens e a Madalena se convencesse ainda mais de que, de facto, as pessoas não chegam aos calcanhares dos animais.

Esta tese é reforçada alguns minutos depois na arena de gincanas pela Mariana e o Martim, um casal com talvez vinte anos, pais da Stitch, encontrada pela Mariana no meio de uma estrada em Setúbal. O Martim tinha medo de cães por ter sido atacado por um há alguns anos, mas agora não quer outra coisa, falando-me do amor incondicional dos nossos amigos de quatro patas, enquanto tenta convencer a Stitch a atravessar um túnel, depois de já ter serpenteado umas varas azuis e amarelas. Antes de nos despedirmos, diz que nenhum casal deveria ponderar ter filhos sem antes adotar um animal.

À medida que as horas passam, a FIL vai-se enchendo de visitantes, maioritariamente mulheres entre os vinte e os trinta anos

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

No caminho para o carro, já depois de ter tirado uma fotografia com uma cobra ao pescoço, vou a pensar nessa alegada superioridade dos cães em relação às pessoas (esse vago grupo anónimo que inclui toda a gente menos o enunciador da frase e os sete ou oito indivíduos que este mais ama), mas não consigo deixar de achar que os heróis dessa velha história em que lobos amedrontados trocaram a solidão da noite pelo calor do fogo são, afinal, os homens e mulheres que, primeiro, os abrigaram e depois os usaram como animais de companhia e de pastoreio das ovelhas de que mais tarde se alimentariam. O amor incondicional desses animais selvagens cujos tetranetos acabariam, sem saberem como, por serem vítimas de grooming não resultou de um instinto ternurento e afetivo dos bichos do mato, mas de manipulação genética e de um treino de condicionamento altamente sofisticados, que os fez contrariarem esses mesmos instintos em troca de alimentos e festinhas, uma troca tão eficaz que, salvo raras exceções em que um par de ovelhas se tornou demasiado tentadora, os transformou em animais de bem, sem nunca mais olharem para trás.

Já nós, não. Nós olhamos para trás, uma e outra e outra vez. Nós somos ternurentos e salazaristas. Nós treinamos animais para que deem a pata e salvem pessoas soterradas em escombros. Nós sorrimos no topo de cavalos e temos medo quando nos metem papagaios e serpentes ao ombro. Nós atropelamos e gritamos contra as vítimas desses atropelamentos, porque somos imperfeitos como o raio. O que nos torna tão piores do que os animais é, então, essa insurreição silenciosa ao condicionamento que faz com que erremos por tudo e por nada, muitas vezes contrariando até os nossos superiores interesses.

E, ainda assim, no caminho para o carro, olho para trás e sorrio ao pensar que o mais extraordinário que vi naquela manhã passada no Pet Festival não foi um cavalo branco, mas a sua crina pintada de cor-de-rosa. Não foi um lama, mas o sorriso de um velho oficial da Marinha que o alimentava.

Passeio das Virtudes é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vidas.

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