“Em tempo de guerra, os médicos militares não tiram férias nem folgas.” A rotina de Maksym Parubets, chefe do departamento de Ortopedia e Traumatologia do Hospital Central do Serviço de Fronteiras da Ucrânia, é quase a mesma desde o dia 24 de fevereiro de 2022. Dorme pouco (às vezes no hospital), acorda cedo, passa horas no bloco operatório, avalia doentes e recebe outros que chegam quase todos os dias, por volta das 17h30, da linha da frente dentro de um comboio de evacuação. “Houve um dos militares que chegou sem perna da linha da frente e me disse ‘doutor, isto é o que acontece na guerra’.”
Todos os feridos de guerra mais críticos, desde aqueles que estiveram na fábrica siderúrgica de Azovstal até aos que atualmente chegam de localidades como Bahkmut ou Soledar, foram e são tratados no centro hospitalar de Kiev em que Maksym Parubets trabalha. A urgência com que têm de ser feitas as cirurgias obriga a que os profissionais de saúde vivam num estado de alerta permanente.
“Por vezes, o meu dia acaba às 5 da manhã”, contou o médico militar ao Observador esta quinta-feira em Lisboa, à margem de uma conferência na Universidade Lusíada em que participou. Ainda assim, deixa bem claro que não se queixa da duração da jornada de trabalho, já que sente que é assim que mais contribui para a vitória da Ucrânia.
Os dias complicados com doentes de Azovstal: “Não havia cheiro a medicação, era a sangue”
Ao longo deste ano de conflito, Maksym Parubets recorda um dos períodos que mais o marcou desde 24 de fevereiro: a chegada de feridos de Azovstal, a fábrica siderúrgica que foi palco de intensos combates entre tropas russas e ucranianas em Mariupol. O primeiro comboio de evacuação trazia 12 doentes e, ao longo de três semanas, o hospital recebeu muitos combatentes que acabaram por sucumbir a meses de pressão russa.
Os doentes que chegavam de Azovstal “estavam em estado crítico” com lesões graves e falta de tratamento médico, detalha o médico. Foi por isso preciso agir com rapidez para tentar salvar o máximo de vidas possíveis. Assim, Maksym Parubets lembra que nessa altura “não saía do hospital, dormia no gabinete ou em algum outro espaço”.
“Existia tanto sangue espalhado no bloco operatório. O cheiro era intenso — não havia cheiro a medicação, era a sangue”, afirma Maksym Parubets, explicando que nem havia tempo para “arejar” os espaços. Normalmente, refere, um profissional de saúde como ele — com experiência — já não reage negativamente a imagens de sangue, mas naquele caso era diferente: “Não era normal. Os limites foram todos ultrapassados”.
Um desses militares de Azovstal que chegou ao hospital pesava somente “30 quilos”. Este doente tinha ainda “deformações nos órgãos e uma fratura gigante no ombro”, resultante dos combates, da falta de cuidados médicos e ainda de uma alimentação deficiente. Apesar da situação crítica que apresentava quando chegou a Kiev, o militar conseguiu “sobreviver”, após ter sido sujeito a uma cirurgia que durou mais de 16 horas e ter estado internado seis meses.
Adicionalmente, os combatentes de Azovstal narravam a Maksym Parubets, em primeira mão, as condições deploráveis em que eram tratados, logo depois de os russos conseguirem controlar a fábrica, confirmando a falta de cuidados médicos. Havia igualmente falta de medicamentos; a medicação que ainda ia aparecendo era levada por uma “menina de cinco anos”, filha de uma militar ucraniana que acabou por se tornar prisioneira de guerra.
O “enxerto ósseo” a um rapaz de 21 anos
Enquanto responsável pelo serviço de traumatologia, Maksym Parubets sinaliza que os hospitais e médicos ucranianos não estavam prontos para a complexidade de lesões que acabaram por receber após o dia 24 de fevereiro de 2022. “Não eram estudadas pelos departamentos médicos”, diz.
Um desses casos mais complicados em termos médicos aconteceu com um jovem de 21 anos. O prognóstico não era nada favorável: o combatente tinha perdido cinco centímetros de um osso da perna e não tinha capacidade para andar — nem se esperava que isso acontecesse no futuro. No entanto, após colaboração com centros hospitalares estrangeiros e um “plano sofisticado”, Maksym Parubets detalha que foi possível realizar um “enxerto ósseo”. O resultado? “O jovem já anda há quatro meses”.
“Lutamos pela vida dos nossos rapazes no bloco operatório”, garante o médico militar, que aproveitou para agradecer a Portugal, principalmente pelo envio de ajuda humanitária. “Estamos gratos pela vossa ajuda e pela da União Europeia. Sem o vosso apoio, seria impossível.”
A rotina: as operações e o contacto com doentes
O dia de Maksym Parubets deveria começar por volta das 7 da manhã. Mas as horas são, desde há um ano, uma mera formalidade, já que “não existe horário de trabalho”. “Todos os dias, durante 24 horas, temos de estar dispostos a ajudar”, admite o médico militar.
Todos os dias às 7h15 recebe a “informação do estado dos utentes” que está a tratar. “Vou sempre ver os mais críticos para analisá-los pessoalmente e vou ao bloco operatório para ver se está tudo bem”, relata. Essa tarefa demora cerca de 45 minutos, intercalado por um pequeno-almoço.
Neste check-up diário, Maksym Parubets indica que cria laços com alguns feridos de guerra. Houve um caso que lhe ficou cravado na memória, de um doente que chegou em abril de 2022. Era um homem, que trabalhava na área da construção civil, e que chegou com fraturas expostas nos braços. Apesar de legalmente poder sair da Ucrânia, este combatente decidiu ficar e lutar pela pátria. “Criámos uma ligação”, revela Maksym Parubets, que diz que mantiveram contacto após o militar ter tido alta.
Após este contacto com os doentes, onde se criam muitas vezes amizades, o médico militar recebe indicações dos seus superiores hierárquicos, por volta das 8 da manhã. E há depois uma reunião com a equipa, fazendo-se a distribuição e a escala para o dia. “Depois, espalhamo-nos todos pelo que ficou definido”, assinala Maksym Parubets: “operações, realização de exames e análises, a necessidade de fazer ligaduras…” O médico militar frisa nunca ter mãos a medir, mas diz ter sempre a certeza de que vai receber mais doentes nas horas seguintes.
Num dia normal, antes da guerra, saía às 17h. Mas, agora, a essa hora, “não vale a pena ir para casa”. É aí que a equipa do hospital começa a preparar o “material terapêutico” e os antibióticos para a chegada de novos doentes, transportados num comboio de evacuação de locais onde a guerra ainda continua quente — principalmente nos oblasts de Donetsk e Lugansk. Depois da chegada, “seguem-se consultas e operações para aqueles que realmente necessitam…”
Mazelas psicológicas? “Nenhum tinha depressão”, diz médico
Tendo em conta a violência por que passaram os soldados ucranianos, o mais expectável seria que chegassem a Kiev com quadros de ansiedade, depressão ou ansiedade. Embora ressalvando que a sua área de especialidade não é a psiquiatria, Maksym Parubets sinaliza que não é isso que tem encontrado. “Nenhum está ou esteve com um quadro clínico de depressão pelo que percebo”, defende o médico.
“O estado psicológico deles é normalmente bom”, prossegue Maksym Parubets, que enfatiza que existe um profundo sentimento de gratidão e uma vontade dos militares feridos de voltarem para a linha da frente. “Quando voltarem à vida civil, depois da guerra, aí terão problemas psicológicos”, antecipa o médico, que espera que, quando isso acontecer, haja equipas de “psiquiatras prontos para os reabilitar”.
Para demonstrar o estado psicológico de muitos militares ucranianos, o médico contou ao Observador que “nunca viu um militar a chorar, nunca viu lágrimas nos olhos deles”, confessando que muitas vezes é ele quem chora. Está, aliás, consciente da violência psicológica a que está sujeito diariamente. Porém, com o avançar do tempo, vai tentando arranjar estratégias para conseguir retirar peso ao que assiste todos os dias.
Quase todos os dias, Maksym ouve “mísseis a rebentar”, uma vez que os “sistemas de defesa aéreo” localizados em Kiev estão nas proximidades do hospital. “Até quando estou no bloco operatório, ouço os mísseis e as explosões”, conta, indicando que a Rússia já atacou edifícios “perto do hospital”, que acabaram “danificados”.
Quando isso acontece, para tentar não ouvir o barulho no bloco, Maksym Parubets pede para “colocar a música mais alta”, ou então, liga a televisão para ver as notícias. “É para ver se já ganhámos a guerra”, diz entre risos.
O dia que mudou a vida dos médicos e militares ucranianos
Há exatamente um ano, Maksym Parubets lembra-se perfeitamente onde estava. Como a maioria dos ucranianos, “estava em casa” junto da família, a dormir, já que a invasão começou de madrugada. “Ouvi explosões.” Os dias seguintes foram um constante desafio para o médico. As tropas russas aproximavam-se da capital ucraniana e temia-se que Kiev caísse nas mãos de Vladimir Putin em pouco tempo.
A casa deste clínico passou a ser o hospital, onde começaram a acorrer cada vez mais doentes, praticamente todos militares. Quando Kiev ficou cercada pelas tropas russas logo no início da invasão, Maksym Parubets conta que viveu “dentro do hospital” — e aquela era a realidade dele durante 24 horas por dia. Dormia e fazia as refeições lá.
Na conferência desta terça-feira na Universidade Lusíada, Maksym Parubets não foi o único a dar o seu testemunho. Um dos seus superiores hierárquicos, Mykhailo Karnaukh, chefe do departamento médico do Serviço de Fronteiras da Ucrânia, mostrou um vídeo sobre os primeiros dias da invasão. Perante as imagens de bombardeamentos russos em cidades com Kiev, Dnipro, Vinnytsia, Mariupol ou Kramatorsk, o responsável não conteve as lágrimas — e abandonou o auditório onde decorria a sessão.
Por seu turno, Volodymyr Shumeiko, militar ucraniano e veterano de guerra que acabou ferido durante um combate, contou também a sua história durante a conferência. “Fiquei dois meses internado”, lembra, desabafando que mentiu à mãe sobre o seu estado de saúde: “Dizia-lhe que estava no hospital a visitar os meus amigos que estavam internados”.
O veterano de guerra acabou por recuperar, mas ficou com uma lesão no pé que o impede de voltar ao campo de batalha. Contudo, apesar dos riscos, esse é o seu desejo. “Quero voltar a defender o meu país.”