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"O importante é semear a dúvida." A estratégia russa de criar cavalos de Tróia no Parlamento Europeu

Investigação judicial recente revela estratégia do Kremlin de promover desinformação e aliciar eurodeputados. Em plena campanha para as eleições europeias, a Rússia estará a duplicar os esforços.

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“Quero que isto seja o Breitbart da Europa.” Estávamos em 2018 e uma investidora anónima do novo media Voice of Europe (A Voz da Europa) invocava o site da extrema-direita americana de Stephen Bannon como inspiração para o novo órgão que estava a surgir numa entrevista ao jornal neerlandês De Groene Amsterdammer. A publicação, porém, notava uma diferença: “O Voice of Europe mantém a sua equipa editorial escondida, enquanto que os agitadores americanos publicam artigos assinados. A investidora também não quer dizer nada sobre isto. “É um projeto secreto.”

Seis anos depois, compreende-se finalmente a discrição. No final de março, os primeiros-ministros da República Checa, Petr Fiala, e da Bélgica, Alexander De Croo, anunciaram uma investigação judicial conjunta dos dois países que tem o Voice of Europe no seu centro. O site, dizem os investigadores, seria afinal não um órgão de comunicação social independente, mas um projeto dirigido pelo Kremlin para tentar influenciar a política europeia.

“Segundos os nossos serviços de informações, os objetivos de Moscovo são claros: ajudar a eleger mais candidatos pró-russos para o Parlamento Europeu e reforçar a narrativa pró-russa dentro da instituição”, disse o chefe de governo belga. Através do Voice of Europe, assegurou, “a Rússia abordou” membros desse mesmo Parlamento e pagou-lhes “para promoverem a sua propaganda”.

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O primeiro-ministro belga, Alexandre De Croo, confirmou que a investigação suspeita que eurodeputados possam ter sido comprados pela Rússia

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Apesar de o anúncio ser feito a poucos meses das eleições europeias para escolher a composição do novo Parlamento Europeu (PE) a 9 de junho, passou despercebido. Até que, no final deste mês de maio, a investigação deu novos passos, que caíram com estrondo: a polícia belga fez buscas dentro do próprio Parlamento Europeu relacionadas com o caso. “Há indicações de que um funcionário do PE teve um papel significativo nisto”, confirmou o porta-voz da procuradoria do país, Eric Van Duyse. A imprensa fez também o seu papel e não tardou a que se descobrisse a identidade do funcionário, bem como a de um candidato a eurodeputado que também estará a ser investigado — mas já lá vamos.

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Antes de explicar os detalhes da investigação e o grau de influência da Rússia dentro do PE, é importante notar como esta eleição se reveste de particular importância para o Kremlin por serem as primeiras eleições europeias desde a invasão de larga escala da Ucrânia, em 2022. “Temos razões para acreditar que a Rússia não só vai tentar interferir com estas eleições, como vai fazê-lo com ainda mais vigor”, diz ao Observador Stefano Braghiroli, investigador especialista nas instituições europeias da Universidade de Tartu.

[Já saiu o quarto episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio e aqui o terceiro episódio]

“O Parlamento Europeu é relevante”, acrescenta o analista italiano, que destaca “a voz” que a instituição tem tido no apoio à Ucrânia. Dominika Hajdu, diretora do Centro para a Democracia e Resiliência do think tank GLOBSEC, concorda e dá exemplos práticos: “Apesar de as sanções, por exemplo, serem decididas a nível do Conselho, o Parlamento está envolvido em iniciativas legislativas que podem servir para reforçar a resiliência no setor dos media ou formar comités especiais para observar a interferência estrangeira”. Em entrevista ao Observador, diz não ter dúvidas de que a Rússia quer muito “usar qualquer pequena brecha que se abra para fazer entrar a sua influência entrar na Europa”. “E, por isso, é definitivamente vantajoso ter os seus interesses representados no Parlamento Europeu.”

“Portal Kombat”, “Doppelgänger”, “Voice of Europe”. Como a Rússia “semeia” a desinformação no espaço online

A recente investigação do Washington Post sobre o caso do Voice of Europe revela que o site foi criado inicialmente em janeiro de 2023 como instrumento de propaganda russa, idealizado por Sergei Kiriyenko — um homem que formalmente é apenas vice-chefe de gabinete de Vladimir Putin, mas que tem conquistado relevância crescente dentro do Kremlin. O objetivo seria usar o site para promover o ucraniano Viktor Medvedchuk (acusado de traição pela Ucrânia e extraditado entretanto para a Rússia), de forma a que, no futuro, este pudesse vir a surgir como uma alternativa a Volodymyr Zelensky para o cargo de Presidente em caso de negociações.

Através da divulgação de artigos com informação falsa, o Voice of Europe era um dos mecanismos de desinformação que também alimentava a máquina de fake news destas europeias. Que, alerta o especialista Paul Bouchaud, investigador em auditoria algorítmica na francesa Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais, estava em crescendo: “Desde o início da guerra na Ucrânia em 2022 que temos assistido a um aumento significativo da manipulação da informação online”, explica ao Observador. “Com as eleições europeias, o incentivo para este tipo de interferência é ainda maior, considerando o impacto que estas eleições podem ter no apoio à Ucrânia.”

E foi exatamente isso que a sua equipa detetou. O governo francês já tinha denunciado a criação de uma rede online de desinformação russa intitulada “Portal Kombat”. Em agosto de 2023, o EU DisinfoLab detetou outra: a operação “Doppelgänger” que, nota Bouchard, reagia sempre “sincronizada com os eventos geopolíticos, como a discussão dos pacotes de ajuda [europeus]”.

Um dos exemplos fornecidos pelo investigador ao Observador é de uma publicação em alemão onde se diz que os ucranianos estão a fugir para a Alemanha a fim de evitar o recrutamento — “Por que devem os europeus lutar pelos ucranianos se eles próprios não estão dispostos a isso?”, questiona o texto. Outro, em polaco, afirma que a chefe de um dos ramos da Cruz Vermelha na Ucrânia “foi apanhada a roubar” ajuda humanitária “que as boas pessoas na Polónia e no resto da Europa enviaram”. 

Mas agora, diz o investigador, há mais desinformação a circular. “Nas últimas semanas, assistimos a um aumento no alcance dos anúncios de propaganda distribuídos pela Meta [dona do Facebook e Instagram] aos cidadãos da União Europeia, com mais de 3 milhões de contas a serem expostas a estes anúncios desde o dia 1 de maio de 2024”, anuncia. “Os propagandistas exploram todo o tipo de temas nacionais”.

Um dos exemplos fornecidos pelo investigador ao Observador é de uma publicação em alemão onde se diz que os ucranianos estão a fugir para a Alemanha a fim de evitar o recrutamento — “Por que devem os europeus lutar pelos ucranianos se eles próprios não estão dispostos a isso?”, questiona o texto. Outro, em polaco, afirma que a chefe de um dos ramos da Cruz Vermelha na Ucrânia “foi apanhada a roubar” ajuda humanitária “que as boas pessoas na Polónia e no resto da Europa enviaram” — “Depois deste caso, devíamos mesmo deixar de ajudar os ucranianos”, conclui o utilizador. Ambas as publicações, que são apenas dois exemplos em dezenas de posts, alcançaram milhares de contas de Facebook.

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O número de posts de desinformação no Facebook disparou ao longo do último mês, dizem analistas

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“Para além de França e Alemanha, agora em véspera de eleições vemos mais atividade na Itália e na Polónia”, avisa Bouchaud. O almirante Giuseppe Cavo Dragone, chefe do Estado-Maior de Itália, confirma a situação do seu país ao Financial Times, falando numa “intensificação” de campanhas de desinformação russas.

Nada que surpreenda o investigador Braghiroli: “A Rússia reforçou os seus esforços para, uma vez mais, criar terreno fértil para desafiar as narrativas ‘do sistema’”, afirma. “O importante é semear a dúvida, semear a falta de harmonia dentro da sociedade. E isso pode ser um veneno para a democracia liberal.”

Os planos desenhados por Sergei Kiriyenko dentro do Kremlin para a AfD e a União Nacional de Le Pen

Mas não é o trabalho do Voice of Europe como disseminador de fake news que motivou uma investigação transfronteiriça da envergadura desta que decorre atualmente. O fator novo que está a preocupar as autoridades europeias é a suspeita de que o órgão terá pago diretamente a pessoas ligadas ao Parlamento Europeu para ter acesso a eurodeputados.

Segundo uma análise do Politico, pelo menos 16 eurodeputados terão dado entrevistas a um órgão que, nota o site, tinha apenas 60 mil visualizações desde o verão e menos de 400 subscritores no YouTube. Todos eram de partidos ligados à direita radical ou à extrema-direita e a maioria de países de centro e leste da Europa. A maioria negou ao Politico ter sido pago pelas entrevistas; três não responderam à pergunta.

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A investigação "Voice of Europe" incluiu investigações dentro do Parlamento Europeu

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Mas os detalhes que vão surgindo mostram uma teia que pode ter envolvido de facto pagamentos a figuras ligadas sobretudo a dois partidos: a Alternativa para a Alemanha (AfD na sigla original) e a União Nacional francesa (antiga Frente Nacional, de Marine Le Pen). Para além de serem partidos em ascensão nos seus respetivos países, têm algumas das delegações de maior peso dentro da família mais à direita do PE, o Identidade e Democracia (ID).

Uma análise do jornal russo Novaya Gazeta nota como os eurodeputados destes dois países são dos que votaram de forma mais alinhada com os interesses russos em votações como a condenação da agressão russa, a definição da Rússia como Estado promotor de terrorismo e a criação de um tribunal para investigar possíveis crimes de guerra russos. Muitas vezes, em vez de votarem contra abstêm-se ou não vão ao plenário nessa altura.

Dois trabalhos divulgados por media internacionais ainda antes das recentes buscas dentro do Parlamento Europeu já indiciavam contactos diretos entre o Kremlin e a AfD e a UN. Cujo mentor seria, nada mais nada menos, do que Sergei Kiriyenko, o mesmo homem que esteve por trás da criação do Voice of Europe.

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Sergei Kiriyenko é atualmente uma das figuras mais próximas de Vladimir Putin

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A 1 de maio, a revista alemã Der Spiegel publicou um artigo onde fontes de serviços secretos ocidentais confirmavam a realização de reuniões dentro do Kremlin para criar uma linha de propaganda pró-russa adaptada à realidade alemã que pudesse vir a ser usada pela AfD. Meses antes, em dezembro do ano passado, o Washington Post teve acesso a documentos, através de fontes dos serviços secretos, que mostravam o plano semelhante de Kiriyenko para França. Em ambos os artigos faltava provar, contudo, a ligação definitiva: ou seja, que AfD e UN teriam sabido sequer desses planos e aceitado pô-los em prática.

Os detalhes que surgem agora relacionados com a Voice of Europe mostram que, contudo, talvez essa peça do puzzle esteja a começar a surgir. Em abril, o jornal checo Denik N divulgou que um dos suspeitos visados pela investigação é Petr Bystron, o atual número dois da lista da AfD às eleições europeias, que teria recebido pelo menos 20 mil euros diretamente da Rússia.

De seguida, a Der Spiegel divulga que haveria vídeos que mostrariam Bystron a receber “encomendas”. Na resposta à revista, o eurodeputado denunciou “a campanha” de difamação de que disse estar a ser alvo por motivos eleitorais e confirmou que, tendo em conta isso, “é de esperar que os vídeos sejam publicados”. Lá dentro, garante, não ia dinheiro.

Os rumores não eram de agora: “Ele não era alguém que recebia passivamente dinheiro. Organizava coisas”, confirmara meses antes um elemento dos serviços de informação de um país europeu ao Washington Post. E há muito que a imprensa alemã investiga possíveis laços da AfD ao Kremlin, sendo conhecidas as visitas passadas dos antigos líderes Alexander Gauland e Frauke Petry a Moscovo e São Petersburgo e os encontros com figuras como o ideólogo Alexander Dugin e o deputado Vladimir Zhirinovsky. Em 2020, o à altura líder do partido Tino Chrupalla foi recebido num jantar dado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergei Lavrov.

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Petr Bystron, segundo na lista da AfD, é um dos principais suspeitos da investigação; o cabeça-de-lista Maximilian Krah também tem laços à Rússia no passado

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Agora, no presente, há ainda o caso de Maximilian Krah, o cabeça-de-lista a estas europeias (entretanto demitido da liderança do partido por um comentário relacionado com as SS). Na sua página de Facebook, nota o Die Zeit, é possível ver uma fotografia de 2021 em que aparece com Bystron e Viktor Medvedchuk — o homem que terá motivado a criação do Voice of Europe. Desde abril que Krah, atualmente eurodeputado, está a ser investigado pela procuradoria de Dresden por suspeita de ter recebido pagamentos russos; tem também outra investigação em aberto por pagamentos vindos da China. E em dezembro de 2023, quando foi aos Estados Unidos participar num evento onde Donald Trump também esteve presente, foi interrogado pelo FBI a propósito de uma mensagem que recebeu de um ativista pró-russo onde se falava de “despesas técnicas” que já estariam pagas.

Se as suspeitas que recaem sobre o candidato a eurodeputado Petr Bystron levantaram o véu sobre as ligações da AfD ao Kremlin, Guillaume Pradoura é o homem que pode vir alargá-las a outros, como a União Nacional de Marine Le Pen. Foi ele o funcionário cujo gabinete e apartamento foram investigados no final de maio no âmbito da investigação do Voice of Europe.

Pradoura, atualmente assistente do eurodeputado neerlandês Marcel de Graaff, foi no passado assistente de Maximilian Krah da AfD. E, antes disso, foi membro da Frente Nacional (de onde acabou expulso), onde, segundo fontes dos serviços de informação garantiram ao Le Monde, levantou suspeitas de ligações ao Kremlin em conjunto com Jean-Luc Schaffhauser, que foi eurodeputado pelo partido de Le Pen entre 2014 e 2019.

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Também no partido de Marine Le Pen há figuras com suspeitas de manterem laços com o Kremlin

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Schaffhauser, garante o mesmo jornal, está precisamente a ser investigado judicialmente em França. Para além de ser conhecido o seu papel na facilitação de um empréstimo à Frente Nacional através de um banco com ligação a Moscovo, há outro tipo de suspeitas. Os investigadores têm analisado a sua proximidade a figuras como Valery Levitsky (cônsul russo em Estrasburgo expulso em 2018 por suspeitas de ser espião), Ilya Subbotin (membro russo do Conselho da Europa antes de a Rússia ser expulsa do organismo) e até o próprio chefe dos serviços secretos externos russos, Sergei Naryshkin — segundo o Le Monde, ambos conhecem-se pessoalmente desde a década de 1990. A investigação francesa acredita que o eurodeputado Schaffhauser foi proposto a Sergei Kiriyenko como o intermediário ideal para por em prática o plano desenhado no Kremlin para França.

Schaffhauser e Le Pen afastaram-se na sequência de um escândalo financeiro interno e o antigo eurodeputado nem voltou a concorrer às eleições de 2019 — e muito menos a estas de 2024. Mas não é a única figura dentro do partido com tendências russófilas claras.

Tal como Schaffhauser chegou a ser observador num referendo não reconhecido internacionalmente em Donetsk em 2014, o eurodeputado Thierry Mariani fez o mesmo no referendo da Crimeia. E Mariani — que numa entrevista à agência russa TASS, em dezembro de 2023, acusou Zelensky de ser um “mafioso” que elimina os adversários — está na lista da UN a estas eleições num nono lugar perfeitamente elegível. Afinal, o partido de Le Pen já tem 18 deputados no PE e pode vir a aumentar o grupo parlamentar depois destas eleições (segue em primeiro nas sondagens).

“Podemos ter outro caso em que um eurodeputado se presta a lidar, de forma consciente, com a Federação Russa com o objetivo de minar as democracias liberais. É aí que a questão deixa de ser política e se passa a tornar jurídica.(...) Sabemos como os seres humanos são sensíveis aos incentivos monetários. Se as investigações forem feitas a fundo, desconfio que vão surgir outros casos novos.”
Steffano Bragharoli, professor de Instituições Europeias na Universidade de Tartu

Mariani também estará a ser investigado pelas autoridades francesas, em concreto o Gabinete Central de Combate à Corrupção e Ofensas Financeiras e Aduaneiras, por suspeitas de influência financeira por parte do Kremlin. Mariani foi mesmo interrogado em julho de 2023, garante o Le Monde. Mas uma fonte jurídica reconheceu ao jornal que “estas pessoas são conhecidos lobistas e admitem-no, é difícil descobrir se e quando violaram a lei”.

É precisamente esse o ponto que torna tão difícil esta investigação da Voice of Europe, nota o professor Steffano Bragharoli: “Imaginemos um eurodeputado da extrema-direita ou da esquerda radical que é tradicionalmente hostil à Ucrânia e defende prioridades próximas da Rússia. Diria que é uma questão política e um problema que tem de ser tratado através da competição política e das ferramentas políticas”, ilustra.

Mas e se a defesa do país não for apenas por uma questão de convicção ideológica? “Podemos ter outro caso em que um eurodeputado se presta a lidar, de forma consciente, com a Federação Russa com o objetivo de minar as democracias liberais. É aí que a questão deixa de ser política e se passa a tornar jurídica.”

Qual a prova que pode fazer a diferença e demonstrar que há esse tipo de compromisso? Aquilo que faz o mundo girar, é claro: o dinheiro. Tudo isto, relembra o professor, é “difícil de provar”. “Mas sabemos como os seres humanos são sensíveis aos incentivos monetários. Se as investigações forem feitas a fundo, desconfio que vão surgir outros casos novos.”

Proximidade regional, admiração por valores cristãos e autoritarismo. O que aproxima a extrema-direita de Putin

Mas, independentemente dos casos de polícia, não há dúvidas de que o Parlamento Europeu tem vários exemplos — inclusivamente fora da AfD e da UN — de deputados e partidos cujo discurso alinha frequentemente com os interesses russos, muitas vezes por questões ideológicas ou de resposta a posições do eleitorado.

Vejamos o caso das direitas. A família do ID está cheia de exemplos de partidos destes. O Fidesz, partido de Viktor Orbán que foi expulso do PPE, irá agora entrar numa nova família — e membros dos Conservadores e Reformistas apontaram a sua posição pró-Rússia como razão para barrar essa entrada. Todo o espectro da direita radical e extrema-direita estão em revolução, com a possibilidade de trocas de partidos, pedidos de união e outros tipos de reformulação, como tem ilustrado o cabeça-de-lista do Chega, António Tânger-Corrêa, nas declarações que tem feito nesta matéria. E a Rússia é o maior tema de discórdia entre os dois grupos.

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Manifestações do Fidesz (Hungria) e do Renascimento (Bulgária) com ligações à questão russa

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O Fidesz é um caso claro de um partido com um discurso muito crítico do apoio à Ucrânia — veja-se o mais recente anúncio de campanha que terá custado uns extraordinários 60 mil euros, de acordo com a Euronews, onde se afirma que “a guerra é terrível, a guerra traz morte, destrói a nossa pátria”. É essa a opinião de uma larga franja do eleitorado da Hungria, que, como notou o analista Zoltán Ádám, “internalizou a ansiedade promovida pelo governo em relação à guerra e prefere ver a Hungria como neutra e distante do conflito”. Não por acaso, num estudo recente do Conselho para as Relações Externas Europeias, os húngaros surgem destacados como os cidadãos da UE que mais desejam que a Ucrânia seja pressionada a chegar a acordo com a Rússia (curiosamente, Portugal encontra-se praticamente no extremo oposto).

Outros países do leste europeu são terreno fértil para este tipo de posições, mesmo que não sejam as maioritárias. Na Bulgária, para além do Partido Socialista que mantém laços históricos à Rússia, surgiu um novo ator político, o partido Renascimento. Defende a ofensiva russa sobre a Ucrânia, quer que a Bulgária saia da NATO e vários dos seus membros visitaram recentemente Moscovo para se encontrar com Putin. Segundo as sondagens, o partido criado em 2021 pode agora ser o segundo mais votado nestas europeias e chegar mesmo a eleger quatro dos 17 deputados búlgaros.

Na Roménia, o cenário é semelhante. Para além da Aliança para a União dos Romenos, cuja postura em relação à Rússia é mais tímida, surgiu em 2021 o SOS Roménia, fundado por uma dissidente da Aliança que afirma que Putin é “o homem de que a Rússia precisa” e pediu formalmente que o país se declarasse neutral no conflito com a Ucrânia. Juntos, os dois partidos podem chegar a quase 25% dos votos nas europeias, segundo as sondagens.

“No leste da Europa, há uma maior concentração de países onde as narrativas russas ganham tração. Historicamente, assistimos ali a uma tendência maior para acreditar em desinformação e propaganda. Mas também há fatores específicos de cada país, geralmente uma combinação de fatores políticos e históricos, que explicam [esta proximidade]”.
Dominika Hajdu, diretora do Centro para a Democracia e Resiliência do think tank GLOBSEC

Os exemplos no leste sucedem-se. A hegemonia à direita do PiS na Polónia é posta em risco pelo partido Confederação, que desafia a linha de apoio à Ucrânia e que irá testar a sua mensagem, que se tem tornado mais popular à medida que o cansaço com a guerra se instala no país, nestas europeias. Na República Checa, o SPD é outro exemplo claro à direita de crítica à Ucrânia e a adesão à narrativa russa que tem vindo constantemente a crescer.

“No leste da Europa, há uma maior concentração de países onde as narrativas russas ganham tração”, nota Dominika Hajdu. “Historicamente, assistimos ali a uma tendência maior para acreditar em desinformação e propaganda. Mas também há fatores específicos de cada país, geralmente uma combinação de fatores políticos e históricos, que explicam [esta proximidade]”.

Braghiroli concorda e destaca outra tendência regional, nos países bálticos, onde há uma minoria de população de origem russa que é alvo da propaganda russa, com esperança de “usar essa população como cavalos de Tróia dentro dessas sociedades”. Os resultados políticos, porém, são menos eficazes do que no leste. Na Estónia, por exemplo, há um candidato, Aivo Peterson, atualmente detido e acusado do crime de traição (por ações alegadamente feitas na Rússia) que está a concorrer ao Parlamento Europeu — mas as sondagens mostram a sua eleição como totalmente improvável. Na Letónia, um novo partido fundado em 2021 para representar a população de origem russa, o Pela Estabilidade!, veio tornar mais claro o discurso russófilo no país, mas também não deverá conseguir eleger.

Por fim, há a influência russa junto da direita italiana, que não é nova. Se Silvio Berlusconi sempre se deu bem com Vladimir Putin, Matteo Salvini elevou a fasquia ao aparecer no Parlamento Europeu com uma camisola com a cara do líder russo e dizendo que trocaria “dois Mattarella [o à altura Presidente italiano] por meio-Putin”. Mas, com Giorgia Meloni dos Irmãos de Itália a disputar o eleitorado à direita com uma postura diametralmente oposta, apoiando a Ucrânia, a Liga de Salvini tem baixado o tom e alinhado com as políticas de sanções à Rússia, por exemplo. “A guerra alterou completamente as avaliações e os julgamentos das relações políticas com a Rússia”, decretou.

Para além destas tendências, há sempre as cartas fora do baralho na extrema-direita europeia, que apoiam a Rússia por se reverem na imagem de “uma Europa que não se esqueceu dos valores tradicionais e das raízes cristãs”, resume Braghiroli. “Putin representa esta ideia de uma liderança forte, de um líder autoritário que defende o seu país. Estes pontos funcionam bem para este tipo de partido.”

Com mais ou menos clareza, Putin pode contar com alguma simpatia vinda de outras forças de dentro do ID. O FPÖ, histórico partido de extrema-direita que já foi diretamente envolvido num escândalo de ligação direta ao Kremlin (que fez cair um governo), será o claro vencedor destas europeias na Áustria, de acordo com as previsões eleitorais. Na Bélgica, o Vlams Belang, que chegou a ter um deputado a visitar a Síria com tropas russas e a acusar “certas forças” da Europa Ocidental de serem responsáveis pela morte de Alexei Navalny (Filip Dewinter), segue destacado nas sondagens. Nos Países Baixos, o PVV de Geert Wilders está numa posição semelhante.

A ebulição à direita provocada pelo tema Rússia pode ter efeitos bem reais, com o apoio à nova Comissão Europeia mais difícil de negociar devido às diferentes posições neste tema. Na sequência do afastamento da AfD do ID dos últimos dias, patrocinado por Marine Le Pen, o partido búlgaro Renascimento já se ofereceu para se aliar aos alemães e formar “um verdadeiro grupo conservador e soberanista”.

Tudo movimentações que, crê o especialista Brigharoli, acabam sempre por ajudar Moscovo: “Quanto mais ineficaz e lenta for a UE, mais difícil será a reagir à ameaça russa.”

Uma questão que não é exclusiva da extrema-direita — e um novo ator político à esquerda que pode mudar tudo

Mas a russofilia não existe apenas nas bancadas mais à direita do PE. Veja-se o caso da Eslováquia, onde o partido de Robert Fico (o líder recentemente atingido a tiro), o SMER, é oficialmente de centro-esquerda e assume cada vez mais posições próximas do Kremlin — aliando-se inclusivamente à extrema-direita no governo nacional, o que lhe valeu a expulsão da família dos socialistas no plano europeu. Independentemente disso, o SMER será provavelmente o vencedor destas europeias na Eslováquia.

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O SMER de Robert Fico é o maior partido à esquerda com tendências russófilas no PE

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E há ainda muitos outros exemplos de dissidências dentro do Grupo da Esquerda Unitária no que toca à questão Ucrânia/Rússia. Clare Daly e Mike Wallace são dois eurodeputados irlandeses independentes que se tornaram virais nas redes sociais — e, em particular, nas televisões russas e chinesas — pelas suas intervenções no Parlamento Europeu e por não votarem como a maioria do seu grupo parlamentar nesta questão. Oito dias antes da invasão de larga escala, ambos protestaram no PE usando uma t-shirt que dizia “Parem de matar as crianças do Donbass”. Consigo, alinhou no protesto a letã Tatjana Ždanoka — que, segundo uma investigação de vários media, manteve contacto direto com os serviços secretos russos ao longo de anos, enquanto estava em Estrasburgo.

Juntam-se a eles neste tipo de posição outros partidos de esquerda radical e extrema-esquerda como o Partido Comunista Português, o Partido Comunista Grego, o Partido dos Trabalhadores da Bélgica e o França Insubmissa de Jéan-Luc Mélenchon, por exemplo. Posições que Braghiroli explica por uma herança “pós-comunista” que mantém uma ligação ideológica à antiga União Soviética — “e, nesse sentido, a Rússia construiu uma narrativa de se assumir como sucessora da União Soviética”.

Ao mesmo tempo, acrescenta o especialista, o eleitorado destes partidos acaba por se identificar com algumas questões semelhantes às do eleitorado da extrema-direita: “São eleitores que se sentem deixados para trás, abandonados pelo sistema, insatisfeitos com a democracia liberal”, diz. Presas fáceis da desinformação, portanto? “São aqueles que mais provavelmente vão questionar e desafiar as narrativas oficiais ou predominantes”, reconhece o analista.

E um novo ator à esquerda pode vir introduzir o mesmo tipo de incerteza nas famílias europeias desta área política como a que se vive à direita. Sahra Wagenknecht, dissidente do partido da esquerda alemã Die Linke, fundou uma Aliança com o seu próprio nome (BSW na sigla original) que vai já concorrer a estas europeias — e pode bem eleger alguns eurodeputados.

Thomas Geisel, cabeça-de-lista do BSW diz que a invasão russa foi “uma violação do Direito Internacional que não pode ser justificada”, mas “quanto mais armamento fornecermos, mais tempo durará a guerra”. “Porque é que o termo Putin-Versteher tem uma conotação tão negativa?”, chegou mesmo a questionar o candidato, que diz querer propor um acordo a Putin (fim do fornecimento de armas à Ucrânia em troca de um cessar-fogo) que acha passível de ser aceitado por Moscovo.

Para além de destoar da maioria dos partidos da Esquerda Unitária em matérias como a imigração, por exemplo, Wagenknecht tem um historial de defesa da Rússia no espaço público: em 2014, a Der Spiegel chegou a fazer um artigo sobre si intitulado “Die Putin-Versteher, um termo alemão que pode ser traduzido como “Aquela que entende Putin” — e que chegou a ser aplicado em tempos à própria Angela Merkel.

Embora mais recentemente Wagenknecht tenha evitado os pronunciamentos sobre o tema, o seu cabeça-de-lista, Thomas Geisel, tem deixado clara a posição do partido em várias entrevistas: a invasão russa foi “uma violação do Direito Internacional que não pode ser justificada”, mas “quanto mais armamento fornecermos, mais tempo durará a guerra”. “Porque é que o termo Putin-Versteher tem uma conotação tão negativa?”, chegou mesmo a questionar o candidato, que diz querer propor um acordo a Putin (fim do fornecimento de armas à Ucrânia em troca de um cessar-fogo) que acha passível de ser aceitado por Moscovo.

O BSW já sonha com outros voos, longe da família da Esquerda Unitária. Em abril, o partido anunciou ter reunido parceiros suficientes para formar uma nova família europeia no Parlamento, que se diz de esquerda, mas critica “as políticas verdes repressivas”, a “cultura de cancelamento” e as sanções aplicadas à Rússia. Nenhum partido confirmou essas conversações, mas há especulação de que o SMER pode ser um dos possíveis aliados, depois da expulsão do grupo dos socialistas. Outra hipótese é o Movimento 5 Estrelas de Itália, que não tem família neste momento e mantém posições ambíguas em relação à Rússia. A conquista perfeita para Wagenknecht, dizem alguns, seria convencer Mélenchon e atrair a França Insubmissa para este novo grupo.

E a Rússia beneficiaria com esta reorganização também à esquerda? Provavelmente, nem que seja pela questão já referida do caos, da lentidão, da desconfiança perante a democracia liberal que se acentua com estas alterações. Mas pode Wagenknecht ser também outro cavalo de Tróia russo inesperado? Os documentos consultados na investigação do Washington Post do ano passado dizem que o derradeiro plano de Kiriyenko seria o de conseguir uma união ou pelo menos cooperação entre este novo ator político à esquerda e a AfD à direita.

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O partido da alemã Sahra Wagenknecht pode ser o elemento que desestabiliza a esquerda europeia face à Rússia no PE

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O ex-marido de Wagenknecht, Ralph Niemeyer, garante que manteve contactos com o Kremlin e que estes demonstraram o seu “interesse” nesta união, mas que a dissidente do Die Linke não estará interessada. À altura, em abril de 2023, o jornal abordou a AfD para perguntar que visão teria em relação a este tipo de união com a BSW. O responsável do partido que falou lembrou que extrema-direita e extrema-esquerda se uniram no passado contra as restrições impostas pela Covid-19: “Esta coligação já existe. As pessoas estão nas ruas. Já ali estão, ao nosso lado.”

O autor destas palavras foi o candidato a eurodeputado da AfD agora investigado por suspeitas de receber contrapartidas financeiras do Kremlin. O seu nome é Petr Bystron.

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