[Negócios do Estado é um novo espaço de investigação do Observador, onde são escrutinados contratos públicos.]
Um ajuste direto de quase 75 mil euros feito pelo município da Trofa à Meo em setembro de 2020. Objetivo? “Reforço da votação e promoção dos santeiros de S. Mamede do Coronado, candidatos às 7 Maravilhas da Cultura Popular”. De acordo com um contrato publicado no portal Base, um dos vencedores deste ano da iniciativa das 7 Maravilhas investiu, só em chamadas para o número de valor acrescentando 760 207 810, quase 75 mil euros. “Batota”, gritou a oposição (PS e BE). Mas nas 9 edições da iniciativa em Portugal os dinheiros públicos envolvidos em torno do ‘negócio 7 Maravilhas’ são muito superiores.
A empresa, criada por Luís Segadães, o homem por trás da máquina bem oleada das 7 Maravilhas já recebeu em ajustes diretos mais de 3 milhões e 699 mil euros de entidades públicas. Isto em apenas 62 contratos. Seja para promover a candidatura de determinado município a uma das nove edições que já tiveram lugar, seja para realizar as galas das semi-finais e finais. As autarquias argumentam com o benefício para a promoção local, mas será mesmo assim?
Ao Observador, fonte de uma das autarquias que já participou na iniciativa explica que “basta definir o valor do ajuste” que o resto é tratado pela “máquina montada por Luís Segadães“. Máquina essa que todos os anos consegue milhares de euros só com a empresa EIPWU. A empresa responde ao Observador que os seus eventos trazem retorno para os municípios, embora destaque que “é variável de acordo com o tema e com o ano“. A EIPWU, nas mesmas respostas enviadas ao Observador, remete para um estudo da Cision que, garante, “reflete o mediatismo alcançado”. “E podemos dar vários exemplos de sucesso de marketing territorial“, acrescentam.
Sobre o facto de este negócio assentar em dinheiros públicos, a EIPWU destaca que se trata de um “mix onde entram também grandes marcas como patrocinadoras”. E dá exemplos: “Este ano a Sical patrocinou, a Altice, os Ovos Matinados e a Adega de Favaios, quase todos repetentes, tendo em conta o sucesso e a repercussão para essas marcas”.
É inegável, no entanto, que a base do negócio da EIPWU tem sido feita por via de contratos públicos volumosos ao longo dos últimos anos. Os contratos variam de acordo com o valor. A empresa Seven Wonders — também de Luís Segadães — recebeu, só em 2010, mais de 1,5 milhões da Associação Turismo dos Açores para a “prestação de serviços de organização e promoção da realização do evento ‘As 7 Maravilhas Naturais de Portugal’ no Arquipélago dos Açores”.
Gala nos Açores, vitória para a Madeira. Nesse mesmo ano, acabaria por vencer a Floresta Laurissilva, da Região Autónoma da Madeira, com a gala final a ser transmitida a 11 de setembro de Ponta Delgada. Mas não foi apenas um contrato de 1,5 milhões que Segadães fechou através da New Seven Wonders. Para promover o destino Açores no mercado nacional, “alavancada no evento ‘As 7 Maravilhas Naturais de Portugal'”, a New Seven Wonders recebeu ainda da Associação Turismo dos Açores 86 mil euros.
Além destes quase dois milhões de euros para “divulgar na comunicação social a declaração Oficial das 7 maravilhas naturais de Portugal”, a empresa EIPWU — também de Luís Segadães — cobrou mais 50 mil euros. Mas há mais ajustes diretos a somar aos custos que a Associação Turismo dos Açores teve para realizar a gala final da iniciativa de 2010.
Há depois vários outros gastos indiretos para as entidades públicas. Para a “realização do cocktail dînattoire e after party” no dia da gala, que aconteceu em simultâneo com a transmissão do evento, a Associação Turismo dos Açores pagou à empresa GRASS – Produção e Consultoria Artística mais 76.350 euros e 78.039,30 euros à Associação Açoriana de Formação Turística e Hoteleira. Mais de 154 mil euros a somar às despesas com o evento. Feitas as contas, às quais ainda falta a parte técnica e de infraestruturas, por exemplo, a Associação Turismo dos Açores gastou em 2010 pelo menos 1.840.389,30 euros com a edição das 7 Maravilhas Naturais de Portugal.
No ano seguinte, com a gastronomia como mote, o grande cliente da empresa EIPWU para a gala onde foram anunciadas as ‘7 Maravilhas da Gastronomia’, na cidade de Santarém, foi o Turismo de Lisboa e Vale do Tejo. A gala custou à entidade mais de 487 mil euros, só no contrato com a empresa do mentor da iniciativa das 7 Maravilhas. Excluindo custos adicionais, o Turismo de Lisboa e Vale do Tejo pagou 487.500 euros para “a organização, promoção e gestão da realização do evento As 7 Maravilhas da Gastronomia, na cidade de Santarém”.
Novo ano, novas maravilhas a concurso. Num país com uma extensa costa, 2012 foi ano para eleger as ‘7 Maravilhas Praias de Portugal’. A gala final foi transmitida da península de Tróia, com um custo associado. Para a gala final, a empresa EIPWU fechou mais um contrato com o Turismo do Alentejo no valor de 772.357,72 euros. Mas, de acordo com o portal Base, o mesmo evento haveria de render ainda mais cerca de 24 mil euros à empresa. A 8 de setembro de 2018 fechou mais um contrato com a Infratróia – Infraestruturas de Tróia de 24.390,30 euros para a “prestação de serviços de Promoção da área de desenvolvimento Turístico de Tróia nos eventos das 7 Maravilhas – Praias de Portugal”.
De maravilha em maravilha, autarquias gastam milhares
Ao longo destes vários anos de iniciativas com a marca “7 maravilhas” são centenas os contratos com as autarquias. Segundo um comunicado divulgado pela marca, só na última edição foram 504 as candidaturas vindas “de todos os distritos e regiões autónomas de Portugal”. Mas na edição de 2019 foram 907 candidaturas. De acordo com os regulamentos disponíveis, pelo menos desde 2017 é cobrada uma “taxa administrativa no valor de 140 euros + IVA (23%) por 1 candidatura singular e de 280 euros + IVA (23%) por uma candidatura múltipla (que inclui a opção de 2 a 7 patrimónios)”. Feitas as contas, mesmo que todas as candidaturas tenham sido múltiplas (com 7 patrimónios), em 2019 só com as candidaturas a empresa de Segadães arrecadou, no mínimo, mais de 36 mil euros (valores sem IVA).
Ao Observador a empresa EIPWU lembra que “o concurso é aberto a todas as entidades públicas ou privadas que podem candidatar a Maravilha de Portugal, qualquer património que julguem de interesse, de acordo com o tema do ano em questão”. E o público só entra para a escolha “quando o concurso chega à televisão”. Até lá, segundo a empresa que é parceira da New7Wonders Foundation, as candidaturas passam “por um processo de seleção, que envolve um Conselho Científico, convidado pela Organização, e um Painel de Especialistas, indicado pelos membros do Conselho Científico que faz uma pré-seleção, por critérios de qualidade, em duas rondas de votação”.
E em relação às galas? A empresa esclarece que “não há qualquer obrigatoriedade” das autarquias em serem palco para os eventos, mas a EIPWU é incontornável, uma vez que tem “exclusividade para Portugal e outros países” do conceito das ‘7 Maravilhas’ — logo, mesmo que pudessem fazer o mesmo espetáculo com outra empresa por um valor inferior, os direitos sobre o conceito estão na posse da EIPWU.
E são os municípios que continuam a ser anualmente os melhores clientes da empresa EIPWU. Lutando pelo reconhecimento, seja de uma receita, do artesanato, de uma aldeia ou das praias, as autarquias desdobram-se em esforços para levar para casa o galardão anual. A autarquia da Batalha, por exemplo, participou em quatro das nove iniciativas. Logo na primeira edição, em 2007, quando o Mosteiro da Batalha foi eleito como uma das ‘Sete Maravilhas de Portugal’, dez anos depois na edição das ‘Aldeias Históricas’ — onde participou em duas categorias —, no ano seguinte com as ‘7 Maravilhas à Mesa’. Em 2018, para adjudicar a realização de uma gala semi-final da edição das 7 Maravilhas à Mesa, a autarquia da Batalha pagou à empresa Everything is Possible With Us (EIPWU, Lda) 65.050 euros. Isto sem contar com os custos de deslocação, alimentação ou alojamento das equipas envolvidas na transmissão televisiva. Já este ano a Batalha foi a vila escolhida para a gala onde ficaram apuradas as finalistas do distrito de Leiria das ‘7 Maravilhas da Cultura Popular’.
Ao Observador, a câmara municipal da Batalha esclarece que além de um contrato de 19.950 euros com a produtora EIPWU, gastou ainda mais 13.754,20 euros em “cinco unidades hoteleiras da vila” e 5,736,50 euros em “seis estabelecimentos de restauração”, num total de cerca de 40 mil euros. Segundo a autarquia a edição deste ano “foi cofinanciada pela Entidade regional do Turismo do Centro de Portugal ao nível das despesas de contratação à produtora EIPWU, Lda, correspondendo a 50% do total das despesas”.
Já sobre o outro contrato de 65.050 euros celebrado com a EIPWU, a autarquia não incluiu na resposta às questões enviadas pelo Observador. Questionada com essa omissão, a autarquia argumentou que se encontrava inserida no total de 75 mil euros gastos até à data, mas o total somado pelo Observador ultrapassa os 100 mil euros já gastos nas iniciativas das ‘7 Maravilhas’.
Um valor muito semelhante ao que a autarquia de Bragança pagou, já este ano, para acolher a gala final da edição das ‘7 Maravilhas da Cultura Popular’: 65 mil euros. Questionada pelo Observador a autarquia nega que tenham sido realizados mais ajustes diretos no âmbito da gala final da iniciativa das 7 Maravilhas e aponta um “retorno interessante” para o investimento feito na promotora EIPWU. Sobre os montantes de retorno que espera alcançar, fonte da autarquia diz que “não são quantificáveis a curto prazo“, mas considerando o alcance da audiência da RTP e RTP Internacional acredita que “será um retorno interessante”.
Mas o concurso deste ano haveria de ficar marcado pela denúncia feita pelo Bloco de Esquerda da Trofa sobre os 75 mil euros que a autarquia tinha gastado em chamadas para o número de valor acrescentado que permitia votar nos santeiros de S. Mamede do Coronado. O próprio presidente da autarquia em reunião da Assembleia Municipal de 30 de setembro admitia que a câmara tinha investido em chamadas telefónicas: “A câmara gastou dinheiro com telefonemas? Gastou, sim senhora”. O contrato havia sido publicado dias antes no Portal Base e o valor envolvido deixou a oposição na autarquia incomodada.
Questionada pelo Observador, a autarquia não respondeu às perguntas enviadas. Os municípios de Tomar, Albufeira, Alijó, Reguengos de Monsaraz e Lagoa também não responderam às questões colocadas pelo Observador. Todos eles com contratos assinados com a empresa EIPWU que ascendem às dezenas de milhares de euros. A autarquia de Tomar, por exemplo, para garantir uma gala de semi-finalistas pagou 85 mil euros à EIPWU e cerca de 10 mil euros à Sandokan Unipessoal para garantir os geradores necessários para a gala. Fica por esclarecer se, à semelhança de outras autarquias, teve que assegurar alojamento e refeições para as equipas envolvidas.
Ainda assim um valor bastante inferior ao que Albufeira pagou para receber a final do mesmo ano. Só o contrato com a EIPWU custou à autarquia 150 mil euros. Na mesma gala, o município decidiu aproveitar para concorrer ao livro de recordes do Guinness com a maior cataplana do mundo. Para tal pagou 24.420 euros à empresa Albino Vieira. Em material para assegurar a realização da gala foram mais de 10 mil euros que se somam aos cerca de 10 mil para alojamento da equipa da RTP e mais de sete mil para a comitiva.
Feitas as contas, apenas com os contratos disponíveis no portal Base — já que o município não respondeu às questões colocadas pelo Observador —, com a gala final das ‘7 Maravilhas à Mesa’ a autarquia de Albufeira gastou mais de 201 mil euros.
Mas, antes da gala final em Albufeira, a empresa por trás das ‘7 Maravilhas’ já tinha realizado sete eventos pré-finalistas do programa com o tema “à Mesa”. Os municípios de Reguengos de Monsaraz, Batalha, Viseu, Alijó, Odemira, Tomar e Lagoa foram palco para as galas das semi-finais e, no total, de acordo com os contatatos disponíveis no Portal Base gastaram mais de 460 mil euros.
Uma das autarquias, a de Viseu, esclareceu ao Observador que a candidatura local foi “resultado de uma iniciativa de uma entidade local sem relação com o Município de Viseu”, tendo poupado a autarquia aos custos de inscrição, mas para acolher a gala firmou um contrato com a empresa EIPWU de 50 mil euros (sem IVA).
Já Reguengos de Monsaraz fechou dois contratos com a mesma empresa num total de quase 117 mil euros. No centro, a autarquia da Batalha fez um ajuste direto de 65.050 euros (sendo que teve outros custos adicionais), em Alijó a EIPWU fechou um contrato de 17 mil euros (mas os contratos em torno da gala disponíveis no Base ascendem aos 54 mil euros), em Odemira o contrato foi mais chorudo, de 42.500 euros, mas em Tomar foi mais do dobro: 85 mil euros.
Em Lagoa, o contrato ficou-se pelos 25 mil euros (mas a autarquia teve custos de mais de 10 mil euros ainda com catering para o evento). Feitas as contas e excluindo a choruda gala final realizada em Albufeira, só nesse ano com eventos pré-finalistas a empresa por trás das ‘7 Maravilhas’ amealhou, pelo menos, 401.500 euros (valores sem IVA). E isto, claro, falamos apenas dos contratos fechados diretamente com a empresa que promove a iniciativa, aos quais se somam outros custos adicionais com hotéis e restaurantes (nos dias das galas) para acolher as equipas da RTP que conduzem as emissões.
Já este ano, “por questões de orçamento”, segundo explica ao Observador a empresa EIPWU, foi possível realizar apenas a “gala finalíssima” de Bragança. A empresa justifica a escolha por ser uma cidade que tem “grande afinidade com o conceito da Cultura Popular, sendo um distrito que acolhe algumas das tradições mais emblemáticas de Portugal, muitas delas absolutamente desconhecidas do grande público”.
A EIPWU, LDA., detentora da marca 7 Maravilhas, fez entretanto chegar ao Observador um direito de resposta a este artigo.