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epa10938338 United Nations Secretary-General Antonio Guterres arrives to deliver a statement in response to the Israel’s government decision to  ban United Nations representatives from visiting the country at United Nations headquarters in New York, New York, USA, 25 October 2023. Israel’s announcement came following remarks made by Guterres on Tuesday at a Security Council meeting about the growing conflict between Israel and Hamas in which he referenced the “suffocating occupation” experienced by the Palestinian people.  EPA/JUSTIN LANE
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Guterres está longe de ser o primeiro secretário-geral da ONU a criticar Israel

JUSTIN LANE/EPA

Guterres está longe de ser o primeiro secretário-geral da ONU a criticar Israel

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Os outros além de Guterres. Secretários-gerais, Nações Unidas e Israel: a história de uma relação difícil

Comentários de António Guterres foram a mais recente polémica que colocou em lados opostos as Nações Unidas e o Estado de Israel — um fenómeno quase tão antigo como a própria ONU.

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As críticas de responsáveis máximos das Nações Unidas (ONU) a Israel não são um fenómeno recente. Apesar da tensão a que se tem assistido nos últimos dias, motivadas pela asserção de António Guterres de que “os ataques do Hamas não aconteceram do nada”, e que já motivaram manifestações de apoio ao português — bem como pedidos de demissão por parte de Israel e dos seus apoiantes —, a dança diplomática do organismo sediado em Nova Iorque quanto ao conflito israelo-palestiniano não é nova. E agora, depois do ataque do Hamas que matou mais de mil israelitas a 7 de outubro e dos ataques aéreos israelitas à Faixa de Gaza, surgiu um novo diferendo entre um secretário-geral da ONU e o Estado de Israel.

Guterres, como outros antes dele, já se veio defender. “Estou chocado pelas interpretações das minhas declarações de ontem, como se estivesse a justificar atos de terror pelo Hamas. É falso, foi o oposto”, disse. Para uns, a posição manifestada pelo responsável máximo do organismo surge como uma posição equilibrada num conflito onde não há heróis. Para outros, é mais um exemplo da desconfiança histórica da ONU para com Israel, um Estado que ajudou a criar — mas com quem manteve uma relação que, ao longo das décadas, tem oscilado entre aproximações e recuos.

Guterres: ataques do Hamas “não aconteceram do nada”. Povo palestiniano “foi sujeito a 56 anos de ocupação sufocante”

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Com efeito, a história das Nações Unidas, e dos seus secretário-gerais, está repleta de episódios, polémicas e focos de tensão, umas vezes mais próximos de Israel, outras dos interesses palestinianos. Desde o apoio fervoroso do primeiro líder da ONU à criação de um Estado de Israel, ao anti-semitismo velado de um secretário-geral com ligações nazis, passando pelo ténue equilíbrio diplomático procurado por líderes mais recentes.

Exemplos ao longo dos últimos 78 anos não faltam. Recordemos alguns.

Trygve Lie: primeiro secretário-geral e aliado de Israel

A fundação do Estado de Israel está intimamente ligada à história da fundação da ONU, estabelecida no pós-II Guerra Mundial como garante de estabilidade diplomática depois do conflito que vitimou mais de 70 milhões de pessoas. A questão judaica foi uma das principais preocupações herdadas pela nova organização, na sequência do Holocausto nazi que matou seis milhões de judeus. Mas a disputa territorial no Médio Oriente já remontava ao final da I Guerra Mundial, tendo sido discutida pela antecessora da ONU, a Liga das Nações — que colocou a Palestina sob controlo britânico com o objetivo de se tornar “o lar do povo judeu”.

Após a criação do novo organismo, foi adotada uma resolução que situava o problema israelo-palestiniano no topo da agenda internacional. Em 1947, foi aprovado o Mapa da ONU para a Repartição da Palestina, que previa a criação de um Estado israelita no território.

Entre os principais apoiantes desta solução estava o primeiro secretário-geral da ONU, Trygve Lie. O político e diplomata norueguês era um fervoroso apoiante da posição do povo israelita sobre o assunto, tendo intervindo de forma decisiva em vários momentos para salvaguardar os seus interesses e tentar garantir a paz na região.

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Trygve Lie foi o primeiro secretário-geral da organização, e um fervoroso apoiante de Israel

Getty Images

Em 1948, no decurso da Primeira Guerra Israelo-Árabe, Lie endereçou uma carta aos chefes da diplomacia das principais potências mundiais, na qual instava a ONU a marcar uma posição, tendo ele próprio enviado um contingente de 50 militares para a região numa missão de manutenção de paz.

Em 1954, no livro No Interesse da Paz, relato autobiográfico dos sete anos que passou à frente da organização, Lie caracterizou a invasão do auto-declarado Estado de Israel pelos Estados árabes como a “primeira agressão armada a que o mundo assistiu desde o final da II Guerra Mundial”; no seu entender, “as Nações Unidas não podiam permitir que qualquer agressão fosse bem sucedida e, ao mesmo tempo, sobreviver como um poder influente na resolução pacífica de conflitos, na segurança coletiva ou na lei internacional”.

Um ano antes, Lie – um apoiante tal de Israel que chegou mesmo a passar ao país informações militares e diplomáticas confidenciais – já tinha criticado a postura dos países árabes que, disse, “têm de reconhecer Israel como um membro de pleno direito das Nações Unidas e sentarem-se à mesa para encetar negociações de paz construtivas”.

O papel de U Thant e a Guerra dos Seis Dias

Se Lie foi um dos principais apoiantes de Israel nos primeiros anos das Nações Unidas, a reputação de um dos seus sucessores é ligeiramente diferente. U Thant, diplomata birmanês, foi secretário-geral (o terceiro) entre 1961 e 1971, liderando a organização durante a Guerra dos Seis Dias entre Israel e os seus vários vizinhos árabes, que culminou na expansão israelita na direção da Síria, Cisjordânia e Faixa de Gaza.

O conflito israelo-palestiniano ano a ano. Guerras, intifadas e (poucos) acordos

Em junho de 1967, pouco antes do início deste conflito, Thant aceitou o pedido do Presidente do Egipto à época, Gamal Abdel Nasser, para retirar da região do Sinai as tropas da Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF), no local desde 1957 para assegurar a paz na fronteira com Israel. Na altura, os israelitas recusaram receber no seu território as forças da UNEF que, por esta razão, se encontravam apenas do lado egípcio da fronteira.

A decisão de Thant foi criticada por Israel e pelos EUA. Telavive, em particular, atacou o então secretário-geral pelo que entendeu como uma decisão unilateral que violava o compromisso da ONU para com Israel. Na verdade, o responsável da organização não teve escolha, e tentou até demover o presidente egípcio de seguir em frente com o pedido: Nasser tinha, aquando da chegada dos militares da UNEF, acordado com o antecessor de Thant, o sueco Dag Hammarskjöld, que podia, a qualquer momento, requisitar a saída do contingente do Egipto.

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Soldados israelitas aguardam ordens durante a Guerra dos Seis Dias

Corbis via Getty Images

“Uma vez que Israel recusou aceitar a UNEF no seu território, esta teve de ser colocada apenas do lado egípcio da fronteira, pelo que o seu funcionamento estava inteiramente dependente do consentimento do Egipto, enquanto país anfitrião”, explicou na altura o responsável. A decisão de retirar a UNEF do território contribuiu para o escalar nas tensões que culminou num ataque de Israel e no eclodir da guerra dos Seis Dias.

As alegadas simpatias nazis de Kurt Waldheim

O austríaco Kurt Waldheim presidia ao secretariado-geral da ONU aquando de um dos mais terríveis ataques terroristas da segunda metade do século XX: o massacre de Munique, no qual 12 atletas israelitas que competiam nos Jogos Olímpicos de 1972, realizados na cidade alemã, foram mortos pela organização radical palestiniana Setembro Negro, depois de um prolongado período em que vários foram feitos reféns.

A tragédia abalou o mundo do desporto e representou mais um foco na tensão entre Israel e Palestina. Apesar disso, Waldheim não se pronunciou sobre o caso — uma decisão que levantou polémica, sobretudo quando foi tornado público um telegrama que lhe enviou o ditador do Uganda, Idi Amin, elogiando o atentado:

A Alemanha foi o local mais apropriado para [o massacre], porque foi lá que Hitler matou mais de seis milhões de judeus (…). Hitler e o povo alemão sabiam que os israelitas não são um povo que beneficie a Humanidade, razão pela qual os queimaram vivos e os mataram com gás”.

O caráter marcadamente antissemita deste telegrama não foi repudiado por Waldheim. Nas únicas declarações públicas que fez acerca do sucedido, o austríaco respondeu aos protestos da comunidade internacional dizendo apenas que “não é prática do secretário-geral comentar telegramas que lhe são endereçados por chefes de governo”.

Austrian Federal President Kurt Waldheim Is Pictured At The Recording Of A Television Statement On His Barring From The United States Of America As A Private Citizen. Hofburg. Vienna 1. May 1987. Photograph.

Secretário-geral entre 1971 e 1981, o austríaco Kurt Waldheim participou em crimes de guerra nazis durante a 2ª Guerra Mundial

Getty Images

A posição de Waldheim, apesar de tudo, não surpreendeu os que, já na altura da sua eleição, em 1971, tinham chamado a atenção para o seu passado enquanto agente dos serviços de informação nazis durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1986, depois de abandonar o cargo e quando concorria às eleições presidenciais austríacas (que viria a ganhar), os serviços de informação dos EUA revelaram que Waldheim tinha participado em crimes de guerra e na perseguição de judeus na Grécia e na antiga Jugoslávia, facto que manchou ainda mais a sua reputação (ainda que o próprio nunca o tivesse admitido) e sublinhou a ideia de que o antissemitismo não tinha ainda desaparecido dos cargos de poder.

Boutros Boutros-Ghali contra a deportação de palestinianos

O final dos anos de 1990 assistiu a uma nova quezília entre Israel e a liderança das Nações Unidas, a propósito da decisão do governo de Telavive que previa a deportação de mais de 400 palestinianos para o Líbano. Em resposta, o Conselho de Segurança das Nações Unidas deu entrada com uma resolução a condenar a decisão e a exigir que os cidadãos deportados fossem readmitidos.

Um dos principais rostos desta denúncia foi, precisamente, Boutros Boutros-Ghali, à época secretário-geral. Em virtude da sua nacionalidade, o egípcio manteve uma relação de convivência e aproximação (nem sempre fácil) com os líderes israelitas. Em 1978, quando ainda era ministro dos Negócios Estrangeiros de Anwar Sadat, negociou os acordos de Camp David, que puseram fim ao conflito armado entre o Egipto e Israel.

Morreu Boutros-Ghali, antigo secretário-geral da ONU

Eleito para um mandato de secretário-geral entre 1992 e 1996, aquando da polémica das deportações, o responsável da ONU deixou clara a sua posição, exigindo que Israel fosse sancionado caso avançasse com as deportações: “Estaria a faltar aos meus deveres se não recomendasse ao Conselho de Segurança tomar todas as medidas necessárias para garantir que a sua decisão unânime é respeitada”.

As altas instâncias da justiça israelita acabariam por confirmar a legalidade da decisão do governo, abrindo caminho à adoção de sanções por parte da ONU. No entanto, os EUA acabaram por interceder a favor de Israel, fazendo uso do seu poder de veto para bloquear quaisquer castigos a Israel, numa decisão que foi vista por muita da comunidade internacional como um exemplo dos “dois pesos e duas medidas” de Washington no que à proteção dos seus aliados dizia respeito.

A relação de “amor-ódio” de Kofi Annan

O sétimo secretário-geral da ONU alternou, em diversos momentos, entre a condenação e o apoio a Israel. Kofi Annan manteve um equilíbrio diplomático que sempre reconheceu o direito do país a existir e a defender-se sem, contudo, deixar de apontar os excessos cometidos pelos militares israelitas (facto que muitas vezes levou a um endurecer do discurso por parte de Israel).

Em 1999, num discurso nos EUA, o ganês apelou de forma clara a um “melhor tratamento” de Israel por parte das Nações Unidas. “Sei que, para muitos de vocês, e para a comunidade judaica no geral, às vezes parece que a ONU serve todos os povos do mundo menos um, os judeus”, afirmou num evento do Comité Judaico dos EUA. “A questão não é se a ONU e a comunidade judaica devem estreitar laços (…) mas sim como é que podemos trabalhar para lá chegar”.

Se as palavras de Annan deixavam claro o seu apoio a Israel, as ações do secretário-geral (entre 1997 e 2006) foram, por vezes, mal recebidas pelos israelitas. Desde descrever as operações da Força de Defesa de Israel (IDF) como “um massacre” devido à morte de civis, a alegações de que teria tentado esconder do governo israelita um relatório da ONU que culpava o Hezbollah por um ataque a um veículo militar na fronteira com o Líbano em 2000, Annan não foi poupado às críticas.

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Kofi Annan enfureceu israelitas ao homenagear Yasser Arafat, aquando da morte do líder palestiniano

AFP via Getty Images

Um dos maiores pontos de tensão aconteceu em 2004, por ocasião da morte do líder palestiniano Yasser Arafat. Descrevendo o primeiro presidente da Autoridade Palestiniana como alguém que “deixaria saudades” e decretando um dia de luto institucional, Annan aproveitou ainda para visitar a campa de Arafat a meio de uma visita a Israel, numa série de demonstrações que exaltaram a sociedade israelita.

Apesar de tudo, aquando da sua própria morte, em 2018, o diplomata foi lembrado de forma positiva pelo regime de Telavive. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, homenageou Annan, descrevendo-o como “um homem de grandes feitos na arena internacional, e alguém que lutou contra o antissemitismo e a negação do Holocausto”.

Ban Ki-Moon e a “resistência natural” dos povos ocupados

Se Kofi Annan procurou sempre o equilíbrio e a aproximação com o Estado israelita, a relação entre este e o seu sucessor, o sul-coreano Ban Ki-moon, foi menos harmoniosa. Secretário-geral entre 2007 e 2016, Ki-moon não se coibiu de criticar as ocupação militar israelita do território palestiniano — ainda que sempre ressalvando que as críticas não constituíam uma justificação para ataques terroristas na região.

Uma das polémicas ocorreu em 2016. Reagindo a uma série de ataques nos meses anteriores, Ban Ki-Moon condenou a violência, mas acrescentou que esta derivava de um sentimento de “frustração” sentido pelo povo palestiniano. “A força da lei deve recair sobre todos os que cometem crimes, com um sistema de justiça aplicado em igual medida a israelitas e palestinianos”, disse.

O essencial para entender o conflito israelo-palestiniano

A resposta irada de Telavive surgiu através de Benjamin Netanyahu, que acusou Ban Ki-moon de tentar “justificar o terrorismo” e a ONU de não ser “imparcial” na sua mediação do conflito israelo-palestiniano. O então secretário-geral não ignorou as declarações do líder israelita e, num artigo de opinião no New York Times, defendeu-se:

A polarização [na questão Israel-Palestina] manifestou-se nos corredores das Nações Unidas na última semana quando observei uma verdade simples: a história prova que as pessoas resistem sempre às ocupações”.

Sem nunca referir o nome do primeiro-ministro israelita, Ki-Moon comentou, ainda assim, que “alguns” tentaram “distorcer” as suas palavras, “transformando-as numa justificação da violência”. O secretário-geral clarificou que, no seu entender, a violência não era solução. “Nada é desculpa para o terrorismo. Condeno-o categoricamente”.

A “questão Guterres” que já motivou a ira da Palestina

Chegados, por fim, ao presente, torna-se claro que as recentes declarações do secretário-geral são apenas mais um capítulo numa relação complexa e de tensão permanente entre o organismo e o Estado de Israel. De Trygve Lie a António Guterres, a polémica está longe de ser inédita. Numa altura em que Telavive se desdobra em manifestações públicas contra o secretário-geral da ONU, é importante lembrar que a posição de Guterres no que diz respeito ao conflito é, também ela, complexa — e até já tem motivado críticas do outro lado.

Guterres pede "cessar-fogo humanitário definitivo" na Faixa de Gaza

António Guterres foi recentemente visado por Israel, depois de afirmar que os ataques do Hamas "não aconteceram do nada"

JUSTIN LANE/EPA

Recuemos a 2017, altura em que a atuação de Guterres mereceu críticas, não de Israel, mas da Autoridade Palestiniana. Em causa esteve uma polémica em torno do relatório da Comissão Económica e Social para a Ásia e o Pacífico sobre a situação no Médio Oriente (ESCAP). Analisando o contexto de 18 países árabes, o relatório usou pela primeira vez algo uma palavra que provocou polémica.

Israel estabeleceu um regime de apartheid que domina o povo palestiniano como um todo“, podia ler-se no documento. A frase provocou uma cisão interna, com Guterres a intervir junto de Rima Khalaf, a responsável pelo relatório, para que o retirasse para evitar a fúria israelita. A diplomata recusou fazê-lo e acabou por entregar a sua demissão, tendo o relatório acabado por desaparecer da internet.

Os líderes palestinianos deixaram clara a sua posição. “[A Autoridade Palestiniana] manifesta a sua profunda repulsa pelo facto de a secretária-executiva da ESCAP da ONU, Rima Khalaf, ser forçada a renunciar ao cargo depois da pressão para retirar o relatório”, disse em comunicado o o responsável pelas Relações Exteriores da Autoridade Palestiniana, Riad El Malki. Foi mais um episódio numa crise política, diplomática e militar que leva décadas. A julgar pelos desenvolvimentos recentes, está longe de estar resolvida.

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