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Pier Paolo Pasolini
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Pier Paolo Pasolini nasceu em Bolonha a 5 de março de 1922. Foi assassinado em Ostia, Roma, a 2 de novembro de 1975. Tinha 53 anos

Corbis via Getty Images

Pier Paolo Pasolini nasceu em Bolonha a 5 de março de 1922. Foi assassinado em Ostia, Roma, a 2 de novembro de 1975. Tinha 53 anos

Corbis via Getty Images

Pasolini: um homem livre

Escritor, realizador, profeta para muitos, Pier Paolo Pasolini assumiu a ruína de Itália como o combate de uma vida, inconformado, por uma sociedade perdida no tempo. O italiano faria agora cem anos.

Como Antonio Gramsci, que tanto admirava, Pasolini “ficou neste mundo entre os homens livres”. As palavras são suas, escritas em 1954, no poema grande que dedicou ao filósofo e ensaísta marxista e fundador do Partido Comunista Italiano, preso pelo regime fascista e falecido prematuramente. Como Gramsci (1891-1937), que criticou severamente o país caído em desgraça, Pier Paolo Pasolini assumia essa ruína de Itália como o combate da sua vida, pelejando, inconformado, por uma sociedade perdida no tempo, aquela sociedade ancestral, medieva, onde o popular e o inocente, de mãos dadas, protagonizam a capacidade de olhar o mundo de forma pura, genuína, livre e, por isso, absolutamente originada por pulsões tão violentas como o desejo, o sexo, ou a noção do diverso no indivíduo como âncora de um mundo sagrado na sua dimensão clássica.

Essa luta cega pela hegemonia cultural de uma subclasse, mais pura e real, mais individual e diversa, mais próxima da liberdade, descartada da qualidade de igual que a massificação produz, leva o poeta, em primeiro lugar e acima de tudo, o escritor, o cineasta e o pensador italiano “mais importante da segunda metade do século XX”, como o classifica Alberto Moravia, seu amigo de sempre, a percorrer um caminho insólito num meio intelectual onde a reflexão social a partir dos esquecidos, desprotegidos e abandonados não tem tradição histórica. Pasolini defende putas e ladrões com razão e emoção. Eleva chulos, homossexuais e vagabundos a um estatuto que eles nunca tiveram. É nesse mundo mais baixo ainda do que o povo ou pequena burguesia, o subproletariado, que vai criar o seu discurso contra a sociedade de consumo e contra uma Itália resignada ao capitalismo, qual massa amorfa de gente burguesa à procura do supérfluo e do que não interessa, formatando-se numa cultura tábua rasa, na qual as glórias do país se perderam.

Pier Paolo Pasolini at Work

Não é por acaso que os intelectuais o aplaudem desde logo. Não é por acaso que o seu sucesso é incómodo. Não é por acaso que o seu silenciamento foi sempre uma iintenção

Bettmann Archive

Incapaz de dizer sim à palavra vigente, o cineasta e poeta corre um perigo constante na sua incessante demanda pela verdade, que o obriga à denúncia da corrupção, dos negócios de interesses, da desonestidade política da democracia-cristã, da política suja e manipuladora. Senhor de uma ideologia sempre polémica contra esse apagar de uma consciência coletiva e individual que a sociedade adota, e perante uma outra ideologia marcada pela incapacidade de reconhecer o outro e a sua diferença, Pasolini toma em mãos a aniquilação da burguesia, que odeia profundamente, e propõe-se criar o “não digerível” por essa classe massificada e massificadora. O produto do seu trabalho será assim de difícil apreensão pelo comum dos mortais, fazendo apelo a uma “arte inconsumível”.

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Não é por acaso, pois, que o seu trabalho não é entendido pelo grande público. Não é por acaso que os intelectuais o aplaudem desde logo e que o seu nome ultrapassa fronteiras. Não é por acaso que o seu sucesso é incómodo. Não é por acaso que o seu silenciamento foi sempre uma intenção. E o seu assassinato um crime político, mais do que outra coisa qualquer. Ele vai contra a falsa moral instalada, contra a eclesiástica mentira, trava batalhas contra a futilidade, o comodismo e a alienação da sociedade.

Acredita em mitos. Tem fé na erudição. Acusa o poder de pornográfico. Iliba o cristianismo. Provoca o status quo.

Natural de Bolonha, onde nasceu a 5 de março de 1922, Pier Paolo Pasolini cresceu numa família judia. O pai era oficial do exército, a mãe professora primária. Ele fascista e apoiante de Mussolini, ela antifascista e crente. Teve um irmão mais novo, Guido, assassinado aos 19 anos numa emboscada ao partido antifascista de que era militante. Cresceu de um lado para o outro a acompanhar as deambulações que marcavam os destacamentos do pai. Mas foi na terra da mãe, Casarsa, não muito longe de Veneza, que criou raízes. Chegou mesmo a fazer o elogio linguístico do dialeto que ali se falava, escrevendo os primeiros livros em friuliano, em 1942. Nessa altura, já cursara literatura na Universidade de Bolonha, dando largas à sua paixão por Dostoievski e Tolstoi, ou Shakespeare. Para vir a ancorar-se mais tarde em Rimbaud, em Pound, em Nietzsche, em Proust. Professor como a mãe na região de onde ela era natural e onde se refugiara do conflito mundial, filiou-se no Partido Comunista, dois anos depois da II Guerra terminar. Em 1949, porém, o primeiro escândalo sexual da sua vida — viria a ter muitos outros — junta-o a crianças da escola e é afastado da atividade pedagógica. Embora tivesse vindo a ser ilibado, viu-se obrigado a sair de Casarsa, e passa a viver em Roma nos mais pobres subúrbios da cidade.

Prolífero, o autor de “Salò, os 120 dias de Sodoma”, o seu último filme, estreado pouco tempo antes de ter sido cruelmente assassinado, a 2 de novembro de 1975, na praia de Ostia, junto a Roma, foi vincando a sua palavra. De resto, o seu cinema é da palavra, o seu teatro das palavras, apontando o dedo à degradação e à vulgaridade da sociedade italiana.

É aí que desenvolve aquela sua paixão pelo subproletariado que vê à sua volta lutar por uma alegria de vida sempre violenta na palavra e na ação. Em homenagem a essa sua gente, escreve Ragazzi di vita e Uma Vida Violenta (1956 e 1959). Os dois livros dão -lhe argumentos para filmar “Accattone” (1961), o seu primeiro filme, e uma das suas obras mais aclamadas. Qual alegoria da condição humana, o filme e os romances mostram a transgressão à cultura dominante, e rasgam preconceitos, apresentando uma realidade amoral, suja e podre. Logo a seguir, “Mamma Roma”, colocaria a tónica no mesmo mundo marginal. O seu cinema ia de encontro aos grandes filmes dos neo-realistas com quem tinha trabalhado, de Fellini a Vancini, depois, de Rossellini a Godard e Gregoretti, no célebre “Ro.Go.Pa.G.”. Mas cedo mudaria esse rumo, passando em “O Evangelho Segundo São Mateus”, em 1964, a filmar outro olhar sobre a realidade que cataloga, sobretudo, a sua visão da fé e as suas crenças pessoais em relação à sociedade atual.

Prolífero, o autor de “Salò, os 120 dias de Sodoma”, o seu último filme, estreado pouco tempo antes de ter sido cruelmente assassinado, a 2 de novembro de 1975, na praia de Ostia, junto a Roma, foi vincando a sua palavra. De resto, o seu cinema é da palavra, o seu teatro das palavras, apontando o dedo à degradação e à vulgaridade da sociedade italiana, exibindo ele próprio os valores da liberdade no caráter inocente de uma sexualidade veículo da emancipação da humanidade. Esse vocabulário simbólico associado à violência bruta inaugura uma linguagem nova sempre postulada na poesia e na sua capacidade de interrogar o sistema de poder e a sua hipocrisia. É assim que surgem “Orgia”, “Pocilga”, “Calderón”, três tragédias do final dos anos 60, mas também a sua Trilogia da Vida do início da década seguinte: “Decámeron”, “Os Contos de Canterbury” e “As mil e uma Noites”. Entre as tragédias e os mitos, sobressaem os formalismos e sobressai aquilo que no conjunto da sua obra se apresenta como uma arma de desobediência poderosa e infinita, naquele desconfiar permanente do mundo, na denúncia e na sua espessura tremendamente intelectual e artística, que o traz o mesmo homem livre até hoje.

1970 Rome. Pierpaolo Pasolini at Libreria Croce 1970 Rome. Pierpaolo Pasolini at Libreria Croce

Há quem lhe chame ainda profeta, antecipando epicamente o fim da cultura (popular) e o domínio apocalítico da burguesia, num desencanto para com a sociedade e as suas transformações mais recentes

Universal Images Group via Getty

Autor de uma obra extensa e de uma densidade agigantada pelo curto tempo de escrita e de vida, Pasolini deixa para trás ainda o ódio aos totalitarismos, do fascismo à cultura de massas, aquela moderna “catástrofe italiana” por ele testemunhada e relatada em livros e artigos jornalísticos como Escritos Corsários, o seu último trabalho, e Petróleo, inacabado à data da sua morte.

No centenário do seu nascimento, Pasolini é lembrado em todo o mundo por uma existência sempre no limite, na franja de uma entidade sem tabus e por isso arriscada de tão livre. Em Portugal, as comemorações dos cem anos do seu nascimento estão a cargo da Festa do Cinema Italiano, a decorrer entre 1 e 10 de abril, e são pontuadas por uma retrospetiva integral do seu legado cinematográfico na Cinemateca Portuguesa, e encenação de “Orgia”, uma das suas tragédias, por Nuno M. Cardoso, na Culturgest, por exemplo. “Um contraponto ao teatro burguês, teatro do efeito e do entretenimento”, a peça mostra como a palavra tem de passar pela linguagem do corpo. E mostra como a palavra, chave-mãe da poesia, é o seu território. “Homem sensível”, como o classifica o encenador, Pasolini “enquanto realizador, dramaturgo, autor ou pintor privilegiou acima de tudo uma relação de sensibilidade com todas as artes, no sentido poético profundo”. Há quem lhe chame ainda profeta, antecipando epicamente o fim da cultura (popular) e o domínio apocalítico da burguesia, num desencanto para com a sociedade e as suas transformações mais recentes, só animado por aquela pulsão violenta que abala qualquer homem chegado à liberdade.

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