Estiveram horas em direto nas televisões no último ano, na comissão parlamentar de inquérito à TAP e “no olho do furacão” de vários dos episódios que provocaram a maior crise política que a maioria de António Costa viveu. Agora, Hugo Mendes e Frederico Pinheiro escreveram um livro que pretende passar “por dentro da viagem mais turbulenta da TAP” — embora sem referências a um dos episódios mais polémicos, o que Pinheiro protagonizou no Ministério das Infraestruturas. No livro é nítida a defesa do antigo chefe, Pedro Nuno Santos. “Se ainda fosse ministro não estaríamos a assistir a uma privatização da TAP mas a um cauteloso processo de abertura do capital”. Sugerem até que a sua saída “ajudou a desbloquear” o processo de privatização da companhia nos moldes que Costa agora quer.
Na faixa promocional que rodeia o livro “Patos desalinhados não voam”, da editora Zigurate, os autores são apresentados como duas figuras que “muitos tentaram liquidar publicamente” durante o último ano. No livro, as críticas mais diretas que fazem são à governação de António Costa e às suas posições políticas sobre a TAP. As mais significativas surgem quando falam da posição “ziguezagueante” de Costa na privatização, na falta de apoio socialista na comissão de inquérito ou ainda quando referem o controlo das Finanças sobre a atividade das empresas públicas — e aqui também para responder ao primeiro-ministro e com um tema que foi central num dos comentários televisivos de Pedro Nuno Santos.
Hugo Mendes foi o secretário de Estado que se demitiu na altura da indemnização de 500 mil euros de Alexandra Reis (antes mesmo do ministro Pedro Nuno Santos) e Frederico Pinheiro é o adjunto do ex.ministro que saiu já no tempo em que as Infraestruturas estavam com João Galamba, depois de desacatos no Ministério que chegaram a envolver as secretas. Ambos aparecem agora a tentar “desmontar equívocos e atropelos” daquele tempo, com TAP e Pedro Nuno Santos como peças centrais.
Ingerência? Só se for a “oculta e silenciosa do Ministério das Finanças”
Uma das espinhas atravessada é a acusação de “ingerência” que foi feita durante os trabalhos da comissão de inquérito ao Ministério liderado por Pedro Nuno Santos. A relação entre a tutela e as empresas tuteladas foi mesmo alvo de críticas (anda que indiretas) por parte do primeiro-ministro. Agora, no livro, os autores alegam que “nem o PS nem a esquerda fizeram algo para disputar o significado com que a direita preencheu o significante ‘ingerência’” durante a comissão parlamentar de inquérito, sugerindo que os socialistas deixaram o Ministério de Pedro Nuno arder. “Na comissão parlamentar de inquérito mandou a direita“, acusam; a posição do PS foi ficar “deitado à sombra de Joseph Jubert: em política é preciso deixar sempre um osso para a oposição roer”.
Hugo Mendes e Frederico Pinheiro aproveitam estas mesmas críticas ao relacionamento que o Ministério tinha com as empresas que tutelava para dizer que não podia ser de outra maneira e que o modelo “um-telefonema-por-ano”, que acusam Costa de defender como norma para esta relação, era (e é) insuficiente. E isto por culpa do poder do Ministério das Finanças.
Para Hugo Mendes e Frederico Pinheiro, aliás, a relação próxima das áreas setoriais com as empresas públicas é resultado da “ingerência oculta e silenciosa do Ministério das Finanças” e do seu “poder de não decidir” sobre os projetos que as empresas públicas apresentam. Os dois fazem mesmo contas ao que estava encalhado em agosto, entre os planos de Atividades e Orçamento enviados à Unidade de Monitorização do Sector Público Empresarial e os que tinham sido avalizados pelas Finanças.
“Em oito meses metade das empresas públicas estão em condições de funcionar com efetiva autonomia de gestão”, continuam. Das 133 propostas recebidas das empresas “tinham sido analisadas 104 e emitidos 74 despachos”. Ora, “no Ministério das Finanças foram aprovados apenas 59 planos“, afirmam. Os dois estão em linha coincidente com uma das críticas mais vincadas de Pedro Nuno Santos no seu segundo comentário televisivo na SIC-Notícias, quando analisava o próximo Orçamento do Estado e previa o que pode vir da sua execução — apontando problemas ao travão colocado pelo Decreto de Execução Orçamental.
Daqui a fazerem a relação com a necessidade de uma relação próxima entre a tutela e as empresas pública é um pequeno salto: “Perante a realidade não se pode esperar que os membros do Governo trabalhem com base num-telefonema-por-dia”, “o modelo preferido pelo primeiro-ministro” para a relação entre ministérios e as empresas públicas tuteladas, ironizam os dois autores no livro. É preciso uma relação diária, para a tutela ir conhecendo os travões e ir pressionando as Finanças, alegam. E este “acompanhamento colaborativo não regia apenas a relação com a TAP, mas o trabalho com todas as outras empresas tuteladas” pelo Ministério, sublinham.
Neste ponto ainda garantem não querer “alimentar uma visão conspirativa”, embora afirmem que o poder de as Finanças autorizarem planos plurianuais “atrasa contratações e adia investimentos”, tendo “efeito positivo no défice“. Ou seja, concluem, existe “o incentivo objetivo do Ministério das Finanças no sentido de travar ou adiar estas operações”.
A outra acusação mal digerida é sobre a “informalidade” de que a equipa de que fizeram parte foi acusada — nomeadamente pela chefe de gabinete de sucessor de Pedro Nuno Santos, Galamba. Não referem nenhum dos dois, mas a audição de Eugénia Correia vem à memória quando Pinheiro e Mendes argumentam a favor da informalidade e como ela “é apenas resultado da confiança interpessoal que resulta do trabalho intensíssimo a que estão sujeitas pessoas que ocupam funções executivas”.
“É a informalidade que permite que sejam resolvidos problemas a qualquer hora do dia, da noite ou de madrugada, quem não percebe isso não trabalha no século XXI“, escrevem. Recorde-se — e Hugo Mendes admitiu-o no livro — que o ‘ok’ dado à indemnização de 500 mil euros à ex-gestora Alexandra Reis foi dada por Pedro Nuno Santos através de uma mensagem escrita enviada por telemóvel.
“Se Pedro Nuno ainda fosse ministro…” a TAP não seria vendida assim
Mas a defesa do legado de Pedro Nuno nas Infraestruturas não fica pelos formalismos e vai mesmo ao conteúdo político. Quando falam na privatização da TAP citam as várias posições públicas do ex-ministro, para garantirem que “nunca afirmou que a TAP fora resgatada, no verão de 2020, para ficar sempre, a 100%, na posse do Estado português”. Mas ressalvam: “Outra coisa é dizer” que o agora deputado socialista “aceitaria que essa integração da TAP num grupo europeu levasse o Estado a perder o controlo da empresa”.
Pedro Nuno assumiu-o na sua estreia televisiva: é contra a venda da maioria do capital da TAP. Os seus antigos colaboradores diretos defendem agora que “se Pedro Nuno Santos ainda fosse ministro das Infraestruturas, provavelmente não estaríamos a assistir a uma privatização da TAP, mas a um cauteloso e lento processo de abertura de capital, que manteria a empresa sob controlo público”. A afirmação surge a meio do livro, onde prometem voltar a ela na conclusão. E voltam mesmo, para dizer mais: “É provável que a sua saída do Governo tenha ajudado a desbloquear o caminho a seguir”.
Logo depois da sugestão, lembram a posição de Pedro Nuno e acusam Costa de ter recuado já que, “em 2022, parecia comprometido” com a ideia de o Estado manter a maioria do capital da companhia aérea — e citam o debate para as legislativas entre o primeiro-ministro então candidato com o adversário Rui Rio, no mês de janeiro desse ano, quando este disse que “felizmente já há outras companhias interessadas em adquirir 50% do capital” da TAP. “Parece que o compromisso eleitoral não era para levar a sério“, criticam.
Mesmo nas últimas linhas do livro lançam ainda sobre António Costa a suspeita de que a privatização da TAP nos moldes em que agora surge possa ser tática política. E aqui misturam duas frases da antologia política. A primeira é a já famosa tirada do guru da comunicação de Costa, Luís Paixão Martins, que já disse que “para voltar a vencer as eleições, o PS precisa de se libertar da TAP”.
A outra expressão é mais antiga e vem — ironicamente — da fação que António Costa (com ajuda de Pedro Nuno Santos e João Galamba) derrotou no PS, com os autores a virarem para Costa a frase desafiante de um António José Seguro (na altura, já acossado): “Qual é a pressa?”. Isto para concluírem: “Estaríamos a assistir à privatização feita o mais depressa possível da maioria do capital de uma empresas estratégica por motivos puramente táticos“.
Patos desalinhados e o tiro no pato “aliado”
O livro assenta na ideia de um fracasso na gestão política da TAP, apontando várias falhas naquilo que os autores comparam a um voo de “patos desalinhados”, aproveitando a ideia do investigador de política e políticas públicas Dennis Grube sobre os “patos” que é preciso alinhar para uma política pública ter sucesso. O pato número um é o da definição do problema, o outro o da informação empírica, o outro o da narrativa, outro o da medida tomada e há ainda um outro sobre os aliados (e aqui entra o Presidente da República e mais um episódio polémico).
Aplicada à TAP, os autores acreditam que a solução para os problemas da empresa tinha de passar pela recapitalização e que isso implicava a reestruturação (polémica) da companhia. Mas o que falhou foram a os aliados e narrativa — e este último elemento “foi sempre o mais problemático”. Este pato, dizem, “estava particularmente sozinho, a nadar em círculos à procura de companhia. Ele, como a TAP, encontrou poucos amigos”. “O Governo salvou a TAP, apoiou a administração na reestruturação, pô-la a dar lucro, mas não conseguiu alinhar os cinco patos para levantarem voo”, sintetizam quando assumem que o que vingou foi a ideia de que o resgate foi um “erro político e que o dossier TAP é um insucesso“.
Quanto a aliados, em matéria de resgate da companhia em plena pandemia e quando o sector da aviação parou, os autores que estiveram por dentro do processo de capitalização e também da negociação da reestruturação da companhia com Bruxelas, reconhecem que o Presidente da República alinhou nessa narrativa. Aliás, foi isso que terá entusiasmado Hugo Mendes a dizer o que disse numa resposta à ex-CEO da TAP sobre um suposto pedido para uma mudança de um voo presidencial para a Moçambique, operado pela TAP.
O episódio foi desvendado no decorrer do inquérito parlamentar, com a troca de mails entre Mendes e Christine Ourmières-Widener a ser lida pelo deputado da IL Bernardo Blanco. O ex-secretário de Estado já tinha feito mea culpa da resposta que deu e que deixou Governo e Presidência em maus lençóis. E agora volta a escrever — na terceira pessoa — que “Hugo Mendes queria só sinalizar, junto de alguém com quem tinha uma relação profissional e de confiança, o apoio que o Presidente da República deu à difícil decisão do Governo de resgatar a companhia em 2020”. Fica escrito que foi “uma opinião infeliz“, mas que “não foi dada nenhuma instrução” e que a então CEO “tomou a decisão que entendeu” sobre o voo, não o alterando.
Pedro Nuno “assertivo” e com “uma linha vermelha” para Bruxelas
O livro é claro na defesa da gestão pedronunista de todo o processo de reestruturação, nomeadamente da negociação com os sindicatos perante os cortes de pessoal e salariais que foram impostos por Bruxelas. Também falam no “intenso debate sobre tectos remuneratórios quando se debateu a contratar um novo CEO e o seu salário” e dos cortes das regalias da comissão executiva da TAP, sempre com o então ministro no centro desse combate.
A defesa estende-se a um ponto mais atual. Nas últimas semanas, Pedro Nuno Santos desmentiu uma ideia deixada por António Costa sobre a privatização da TAP ter sido uma condição de Bruxelas na altura da capitalização da companhia aérea nacional. O ex-ministro disse que isso não aconteceu e agora os seus dois antigos colaboradores diretos vêm afirmar que no Ministério foi “estabelecida uma linha vermelha: não seria aceitável nenhuma imposição europeia relativamente à figura da privatização da empresa”. “Isso mesmo ficou bem claro junto dos colegas do governo envolvidos na negociação.”, escrevem no livro.
Tudo “por uma questão de soberania“, já que a decisão caberia ao Estado, continuam, mas também por uma questão de “racionalidade económica“, até porque seria mais difícil a venda nos prazos apertados de Bruxelas. O plano inicial, recordam, era “vender ou encontrar uma solução para a cronicamente deficitária Manutenção & Engenharia Brasil bem como para as participações na Groundforce e na Cateringpor“. No entanto, a negociação com Bruxelas acabou por ser “tensa” por causa das cedências de slots que eram exigidas — em maior número do que pretendia o Governo.
Nessa negociação, relatam, “o ministro foi assertivo, o diálogo franco, o ambiente em certos momentos tenso”. E queixam-se do “sídrome Varoufakis“, o ex-ministro das Finanças grego que na altura do resgate do país encontrou alguns entraves nas negociações com Bruxelas: “Quando falamos com um líder europeu as negociações parecem produzir avanços tangíveis; posteriormente, quando as negociações regressam às equipas técnicas, parece que nada aconteceu ao mais alto nível”.
Sobre esta fase da história, o relato é feito num tom bem diferente do que aquele que usam para falar do “pesadelo político” que dizem ter vivido este ano, “um período traumático“. E, se inicialmente começaram por desejar que se “diluísse na memória coletiva”, agora decidiram não deixar esquecer. “Trocamos a postura defensiva pela reflexão aberta”, justificam os dois autores de um livro que, afinal, acaba antes por trazer novos ataques diretos sobre António Costa. E uma defesa — muitas vezes elogiosa — do socialista que há muito se prepara para o pós-costismo.