895kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Paulo Pedroso. "É pessoalmente doloroso a extrema-direita agitar fantasma" da Casa Pia

Campanha de Ana Gomes vai deixar Ventura, "inimigo da Constituição", a falar sozinho. Marcelo banaliza Presidência e Costa pode até ficar 12 anos. Paulo Pedroso em entrevista.

    Índice

    Índice

Paulo Pedroso chega sem “cábulas” e já pouco habituado às andanças das entrevistas em estúdio. O único envelope que traz nas mãos é, afinal, um conjunto de subscrições da candidatura presidencial que está a coordenar. Depois de ter dito que tinha fechado a porta da política há vários anos, anunciou em janeiro que fechava também a porta do PS, que “afrouxou demasiado nas causas sociais”. Dezoito anos depois do processo Casa Pia, onde foi visado e preso preventivamente e depois ilibado sem ir a julgamento, está de regresso ao jogo para coordenar a campanha presidencial de Ana Gomes — uma participação mais “cívica” do que política, porque não resiste à “tentação” de participar quando o que está em causa é o “combate aos extremismos”.

Em entrevista ao programa Sob Escuta da Rádio Observador (ouça aqui), gravada esta terça-feira, dia 29 de setembro, Paulo Pedroso admite que é “pessoalmente doloroso” ver um candidato como André Ventura, que usa a “manipulação” para “enganar as pessoas”, a usar o processo Casa Pia para o atacar e, com isso, atacar a candidatura de Ana Gomes. Critica Marcelo Rebelo de Sousa por trocar o “recato” pelas “câmaras de televisão” e antevê que se esteja a preparar para pregar uma “rasteira” ao Governo, depois da convivência que foi o primeiro mandato. Quanto a Costa, poderá arriscar-se a ser o primeiro-ministro a estar 12 anos no cargo, mesmo com a turbulência que se verifica à esquerda. A entrevista na íntegra.

[Veja o essencial da entrevista a Paulo Pedroso:]

“António Costa criou a ideia de que as presidenciais são dispensáveis”

Fechou a porta à política em 2014 e disse isso outra vez numa entrevista muito recente, no início deste ano. Passados apenas seis meses dessa declaração já o vemos aqui de regresso à política. Não resistiu ao que já chamou de “tentação de regresso”?
Não, não é isso. A candidatura de Ana Gomes é de cidadania. Há uma candidata e um conjunto de apoiantes e desde a primeira hora, até no processo em que ela estava na decisão, disse-lhe que achava que era muito importante que ela fosse candidata, que o espaço das pessoas que vêm da esquerda democrática precisava de não ficar vazio e de uma candidata forte. Disse que estava disponível para a apoiar como ela entendesse. Aquilo que está a acontecer é exatamente isso. Ana Gomes deu-me a sua confiança para integrar o núcleo que coordena a sua candidatura e eu aceitei isso com muito gosto. É um episódio em que estou completamente determinado e empenhado porque acho que esta candidatura é muito necessária ao país, e um das razões é evitar o crescimento dos extremismos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Então não é um regresso à política, é apenas participação cívica, é isso? É que há poucas coisas mais políticas do que coordenar uma campanha eleitoral.
Sim, julgo que quando se diz regresso à política as pessoas começam a pensar que vai começar a ser candidato a isto e àquilo. Esse regresso não vai acontecer, aquilo que me motiva aqui é a necessidade de não deixar vazio o espaço da candidatura presidencial de Ana Gomes. E tendo ela pedido para ajudar nessa tarefa só havia uma resposta possível que era dizer ‘sim’. E aí sim pode dizer que há as tais tentações, porque esta é uma forma de participação cívica. Vivi alternando entre Portugal e o estrangeiro desde 2005 e agora, estando cá, não sou capaz de ser insensível, acrescendo que vivemos um momento em que as pessoas têm de se mobilizar para que certas doenças e certos riscos que a nossa sociedade atravessa não cresçam ao ponto de poder pôr mesmo em causa o seu bom funcionamento democrático.

Quando apresentou a candidatura, Ana Gomes disse que havia falta de debate interno no PS sobre as presidenciais e que estava tudo centrado numa só cabeça. Devia haver primárias ou um referendo interno para decidir sobre este apoio?
No PS já vi todas as pessoas defenderem todas as posições e o seu contrário. Não tenho pessoalmente uma simpatia por primárias fechadas dentro dos partidos. A haver, o que defendo para os partidos em geral, é o modelo que António Costa usou na sua candidatura a secretário-geral, que são as primárias abertas a simpatizantes. Se forem fechadas, facilmente se tornam em guerrinhas de aparelho sem nenhum significado.

“É doloroso” extrema-direita usar Casa Pia

Mas devia acontecer, abertas a simpatizantes para decidir sobre o apoio a esta candidatura?
Não há, nos partidos e no PS, uma tradição de levar as eleições presidenciais como uma questão partidária. O PS já teve todo o tipo de relações com as presidenciais: um secretário-geral que se auto-suspendeu para não apoiar o candidato do partido, um candidato apoiado pelo partido, já teve situações em que não tinha candidatos indicados pelo partido. Portanto, não creio que haja um padrão em que se possa dizer que o PS agora está a comportar-se dentro ou fora do padrão. O que me parece que seria errado e que claramente, sem subterfúgios, discordo, é uma estratégia em que o maior partido da esquerda portuguesa diz que as eleições presidenciais não nos interessam e são uma questão secundária.

É isso que António Costa está a fazer?
A eleição direta de um presidente em regime semi-presidencial não só é uma obra dos socialistas em Portugal, como tem a ver com um significado especial da função presidencial. A eleição direta do Presidente da República pretende dar legitimidade a este órgão unipessoal que é um moderador entre poderes, que faz o nosso sistema de equilíbrio, o famoso check and balances. E em que é importante que haja uma grande participação. Vejo com grande preocupação que nas últimas presidenciais mais de metade dos portugueses não tenham votado. Portanto o maior partido português, apoiando ou não um candidato presidencial, não deve dizer que as eleições presidenciais são secundárias no sistema democrático.

António Costa está a mostrar que são secundárias?
Até há algum tempo atrás estava, daqui para a frente vamos ver.

"Vejo com grande tranquilidade o que fez o PSD fez nas presidenciais (ao apoiar Marcelo). Marcelo Rebelo de Sousa ou qualquer outro candidato dessa área faz parte do consenso constitucional"

Mas como é que isso se faz se não for através de um apoio?
Uma coisa é não apoiar candidatos porque o partido forma a sua decisão e dá liberdade aos seus militantes. Outra coisa é deixar passar os meses sem sequer haver um debate e uma reflexão. Por exemplo, vejo com grande tranquilidade o que fez o PSD, que já apoiou um candidato que ainda não é candidato. Tem o seu quê de caricato haver ao mesmo tempo no sistema político um grande partido que diz que os candidatos devem primeiro apresentar-se e nós depois discutimos sobre eles, e um que procurou adiar essa discussão, tendo candidatos no seu espaço. Ou seja, um partido que não tem nenhum candidato formalmente já avançou. É artificial dizer que os portugueses não se preocupam com as Presidenciais. Na minha opinião, face à necessidade de mobilizar os portugueses nos próximos anos, aquilo que não precisamos é de ter um sistema político fragilizado pela falta de participação. Como é que o PS pode participar? Clarificar que não há um candidato do partido, mas também não há uma inibição do partido aos socialistas para que apoiem os candidatos que entenderem.

Portanto, que António Costa não vai proibir ninguém de apoiar a Ana Gomes se assim entender.
Penso que no PS qualquer secretário-geral que tentasse proibir alguém teria dificuldades.

Também já há uma Comissão Nacional marcada para debater este tema. Mas António Costa já falou de Presidenciais, naquela famosa visita à Autoeuropa em que praticamente lançou a recandidatura de Marcelo. Ao fazer isto condicionou os socialistas?
António Costa claramente, nesse acontecimento de Palmela , criou a ideia de que estaríamos quase perante uma dispensabilidade das eleições, como se não houvesse um processo competitivo pelo meio. Na minha opinião, nesse momento não foi feliz. O PS tem neste momento marcada uma reunião para estabelecer a sua posição, o que acho que vai acontecer é que os socialistas vão tomar as posições que entenderem. Quanto a Ana Gomes, toda a gente sabe que ela é uma militante do PS, que é uma socialista democrática e a sua candidatura é uma genuína candidatura presidencial. Não é uma candidatura preocupada com o que se passa dentro ou para dentro do PS. É uma candidatura que se assume como transversal e que procura mobilizar diferentes setores da sociedade portuguesa.

A partir do momento em que for dada essa liberdade de voto vai haver muitos destacados socialistas a apoiar Ana Gomes?
Há pessoas que, nas Presidenciais, são especialistas em fazer cenários políticos, mas esse é o candidato Marcelo Rebelo de Sousa que está sempre a antecipar cenários. Não entro nesse domínio porque acho que será um exercício de liberdade individual imprevisível.

"André Ventura é um candidato fora da Constituição. É um inimigo da Constituição e um adversário do sistema democrático"

Vou puxar por esse lado de comentador. Não teme que a candidatura de Ana Gomes, somando outra à esquerda como a de Marisa Matias, possa dividir os votos nesta área política e que a direita saia beneficiada nos resultado?
Com origem na esquerda há três candidaturas, mas a primeira volta de umas eleições presidenciais é um momento em que as pessoas devem dizer quem preferem. Eu acho que Ana Gomes tem genuinamente mais hipóteses de se assumir como uma Presidente diferente e vai ter uma campanha em torno da função presidencial. Marisa Matias e João Ferreira têm como primeira linha expandir a mensagem do partido. Não é essa a intenção de Ana Gomes, mas não creio que se possa usar expressões como “divisão”. Os portugueses têm um leque diverso de candidatos democráticos entre os que já estão anunciados e o que está por anunciar, e podem protagonizar diferentes visões da função da Presidência, e isso é que é salutar.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

E também não divide a direita?
O surgimento de quatro candidatos, em princípio o único efeito que tem é o de aumentar o número de pessoas que votam. Como é que essas pessoas vão votar é do domínio do ocultismo e ninguém pode dizer hoje que quatro em vez de dois candidatos divide mais à esquerda ou à direita. Não creio que Mário Soares tenha sido prejudicado pelo facto de haver outros candidatos à esquerda.

Ventura usar Casa Pia para atacar? “É pessoalmente doloroso”

A direita que vê representada nestas Presidenciais é diferente uma da outra?
Claramente. Penso que o professor Marcelo Rebelo de Sousa, e se hipoteticamente ele não se candidatar, qualquer outro candidato dessa área, faz parte do consenso constitucional. O que temos é que há candidatos que têm diferentes interpretações da função presidencial e diferentes valores matriz, uns mais conservadores, outros mais progressistas, um com mais preocupações com uma temas do que com outros — Marcelo, por exemplo, nunca abordou questões climáticas ou nunca foi grande mobilizador de intervenções que mexessem nas desigualdades. Mas todos eles dentro do consenso constitucional. André Ventura é um candidato fora da Constituição. É um inimigo da Constituição e um adversário do sistema democrático.

"Se há uma coisa que eu não posso ser é prisioneiro da mentira. André Ventura é livre de procurar enganar as pessoas através da tentativa de difundir mentiras, mas vai ficar a falar sozinho"

André Ventura tem usado o seu nome para atacar a candidatura de Ana Gomes. Custa-o ver que o longo processo judicial da Casa Pia está a voltar à ordem do dia?
Claro que me custa ver. E claro que é pessoalmente doloroso e não tenho nenhuma dúvida que as pessoas da extrema-direita que procuram agitar esse fantasma têm consciência disso. Mas há um ponto que é essencial: passaram quase 18 anos, houve uma sentença do Tribunal da Relação de Lisboa que disse que nunca houve indícios e que disse que nunca devia ter sido acusado, houve uma sentença do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que condenou o Estado português por violação dos direitos humanos. A verdade está apurada. Se há uma coisa que eu não posso ser é prisioneiro da mentira. André Ventura é livre de procurar enganar as pessoas através da tentativa de difundir mentiras, mas vai ficar a falar sozinho.

E já esperava que isso fosse acontecer quando pesou este apoio à Ana Gomes e assumiu esta função na sua candidatura. Já esperava isto?
Claro que já sabia que a escola que inspira a extrema-direita portuguesa fez este tipo de coisas por todos os sítios por onde passou. Portanto, não estamos perante algo que possa dizer-se que é completamente inesperado. Uma das indústrias da extrema-direita é a indústria das fake news. E outra é a da tentativa de manipular a opinião, distorcendo. Não foi uma surpresa.

Mas à parte da questão da extrema-direita que está aqui a descrever, ficou ou não um anátema sobre si? Quando tem de dar uma resposta, e sempre que é posto frente a estas tentações de regresso, isto é uma questão que pesa na sua decisão?
Claro. Eu tenho-o dito de um modo muito claro. Eu sei que tive um prejuízo na minha reputação. Aliás, é esse prejuízo na minha reputação que esta tentativa de manipulação pela extrema-direita procura usar. Sim. Tenho plena consciência disso.

Para o próximo fim-de-semana, o Chega convocou uma manifestação intitulada de “Combate à Pedofilia e à Podridão do Sistema Político Português” com um cartaz onde aparece a sua fotografia ao lado de nomes como Duarte Lima, Armando Vara e José Sócrates. Também divulgou uma carta aberta onde convidava o juiz Rui Teixeira, do processo Casa Pia, a ser mandatário da sua candidatura. Antevê que seja uma campanha dura?
Eu aí cito a minha candidata que foi liminar sobre isso: Quem tiver medo, compre um cão.

Processo Casa Pia "é pessoalmente doloroso". "E não tenho nenhuma dúvida de que as pessoas da extrema-direita que procuram agitar esse fantasma têm consciência disso"

Ventura e Ana Gomes disputam eleitorado? Há um “oceano de diferença”. Ana Gomes não é “populista” e “não faz julgamentos na praça pública”

Esta reação de André Ventura à candidatura de Ana Gomes não mostra que disputam o mesmo tipo de eleitorado? Ana Gomes tem uma batalha assumida contra a corrupção, André Ventura terá essa batalha também. Não há um campo onde as duas candidaturas se cruzam?
Não. Sabe que a extrema-direita e a extrema-direita populista tem uma característica que é uma das características que a torna perigosa, que é: geralmente tenta aproveitar-se de temas que são reais. E os democratas, o pior erro que poderiam fazer era ignorar que certos problemas são reais e existem. Eu compreendo e acredito que, pelo menos numa fase inicial deste debate, haja pessoas que possam tender a ver isto como uma espécie de uma amálgama. Mas não existe. Porque há uma diferença.

Qual é?
Para mim há uma linha de fronteira muito clara entre Ana Gomes e outras pessoas que falam de certos problemas. Os populistas tendem a ver-se a si próprios como salvadores de um regime. Como quem quer mudar de regime e, para isso, coloca-se de fora. Ana Gomes não tem nenhuma destas características. O que ela diz é que há um conjunto de problemas sérios que não podem ser ignorados e é necessário melhorar o sistema para que eles sejam eliminados. E, portanto, se vamos falar de corrupção, sim, há corrupção e devemos trabalhar dentro do Estado de direito para a eliminar. Não é a mesma coisa que fazem aqueles que dizem que há corrupção e vamos tentar destruir o Estado de direito para chegar ao poder através desse mecanismo. Este é um oceano de diferença. Há desfuncionamentos? Há. Há falta de transparência do Estado? Há. Agora o que há a fazer é aperfeiçoar a democracia para responder melhor a estes problemas. Não pegar nestes problemas para tentar destruir a democracia. E essa é para mim a linha de separação das águas e acho que, usando a sua expressão, os eleitorados não se tocam.

Diferença entre Ana Gomes e Ventura? "Os populistas tendem a ver-se a si próprios como salvadores de um regime. Como quem quer mudar de regime e, para isso, coloca-se de fora. Ana Gomes não tem nenhuma destas características"

Ana Gomes tem sido muito ativa na denúncia e na crítica pública a casos de corrupção, muitas vezes até se antecipa aos julgamentos que são feitos pela justiça. O caso de Rui Pinto é um deles. Como é que alguém que nos últimos 20 anos viveu na pele julgamentos públicos está agora deste lado da barricada? Não há aqui um contrassenso?
Não. E eu não aceito essa ideia de que Ana Gomes faz julgamentos na praça pública. Não é isso que nós vemos. Aliás, se reparar, em quase todos os casos em que Ana Gomes apareceu do lado da denúncia, há um momento em que ela aparece a levar as provas ao Ministério Público e a fazer queixa ao Ministério Público. Portanto, não podemos comparar isso com julgamentos na praça pública.

Há processos que estão a decorrer que estão em fase de julgamento. O caso Rui Pinto é um caso muito concreto em que ela tem sido muito ativa, até o visitou na prisão.
Mas o que vejo sobre Rui Pinto é diferente do que eu entendi que me estava a perguntar. O que vejo sobre Rui Pinto é, da parte de Ana Gomes, uma defesa de que havia uma prisão preventiva injustificada. Estou completamente convencido de que havia. Não havia mais ninguém preso em Portugal pelos crimes de que ele era acusado em prisão preventiva. Que havia interesse na investigação das informações que ele recolheu e que os crimes de que ele tivesse praticado devia ser julgado por eles e entregava aos tribunais a decisão. Portanto, não vejo paralelismo com o que estava a dizer.

O que estou a dizer é que, por exemplo relativamente aos emails do Benfica, Ana Gomes já teve uma posição pública sobre o caso. Fez críticas ao presidente do Benfica. O que lhe pergunto é se esse não é um julgamento antecipado face à justiça, uma vez que ainda não há um processo concluído, como não existia no seu caso?
Há uma linha de fronteira ténue que todos nós temos de definir pelos nossos critérios. Vocês sendo jornalistas de certeza que já sentiram esse problema. Há uma questão que é participar num processo usando uma lógica acusatória ou defensiva no momento em que o processo está em investigação, e outra coisa que é haver elementos que estão em discussão e que têm interesse público e que devem ser discutidos. E que, se não forem discutidos, não facilita que a justiça se exerça. Em Portugal, este problema é agravado por um aspeto que, de algum modo, agrava tudo isto, que é a morosidade da justiça. Porque, se a justiça fosse mais rápida, estes processos não se alongavam. E há outro aspeto que me parece extremamente preocupante que é o uso das partes processuais pela comunicação social para procurarem ter vantagens processuais e isso é que é, do meu ponto de vista, absolutamente condenável. Aquilo que nós assistimos, e que é verdadeiramente condenável, é as partes processuais terem verdadeiras alianças com órgãos de comunicação social para difundirem as suas teses. O que está errado não é discutir os problemas, é criar uma narrativa que visa, na minha opinião, uma das posições em presença. Dito isto, é claro que Ana Gomes é muito vocal e tem sido muito firme na denúncia de certo tipo de criminalidade e promiscuidades que, se não fossem denunciadas, podiam de alguma forma ser banalizadas, ser consideradas normais.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Aviso ao Governo: Solidariedade de Marcelo pode transformar-se em “rasteira” no segundo mandato

Voltando ao tema das Presidenciais, como é que avalia o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa?
Penso que Marcelo Rebelo de Sousa teve uma excelente entrada quando ajudou o país as descrispar-se daquilo de tínhamos vivido no fim do mandato do Presidente Cavaco Silva. Vivemos num período em que o eixo do poder político esteve muito na dinâmica entre o Governo e o Parlamento, que o Presidente não obstaculizou e não se opôs. Creio que o maior problema do mandato presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa é a dificuldade que ele tem em manter separada a Presidência do Governo. Uns dias quase quer ser o tutor do Governo, outros dias quer ser o braço direito, noutros dias quer antecipar comportamentos do primeiro-ministro. Aquilo a que nós assistimos muito recentemente é exemplificativo desta confusão. Não é normal que o Presidente da República venha dias seguidos comentar como é que o Orçamento do Estado deve ser aprovado. Há um tempo do Presidente e Marcelo Rebelo de Sousa o maior defeito que, do meu ponto de vista, teve até hoje é o de que não respeita o tempo do Presidente.

Isso não é magistratura de influência?
Não creio que a magistratura de influência seja o comentário político na comunicação social. Aquilo que eu acho que Marcelo Rebelo de Sousa tem é dificuldade em libertar-se da sua necessidade de estar presente. E isto banaliza a Presidência.

Isso não aconteceu com o Presidente da República socialista que era Mário Soares, que no segundo mandato, no Governo de Cavaco Silva, teve uma posição bem mais interventiva do que, por exemplo, no primeiro mandato. 
É uma doença dos segundos mandatos. É uma boa razão para evitarmos um segundo mandato.

"O segundo mandato dos Presidentes da República está cheio de tentações. Toda a solidariedade com o Governo nesta fase é a antecipação da rasteira na fase seguinte"

Mas acha que Marcelo Rebelo de Sousa está a preparar isso?
Eu penso que sim. Sobre essa matéria revejo-me inteiramente naquilo que Pacheco Pereira escreveu há algum tempo no Público: o segundo mandato dos Presidentes da República está cheio de tentações. Nós conhecemos a história política de Marcelo Rebelo Sousa. Não é preciso ser um grande especialista em cenários políticos para imaginar que toda a solidariedade com o Governo nesta fase é a antecipação da rasteira na fase seguinte e que o segundo mandato será radicalmente diferente do primeiro se os portugueses o permitirem. E essa é uma das boas razões para que não haja segundo mandato.

Nos últimos quatro dias, o PR deixou três avisos claros sobre a aprovação e a necessidade de estabilidade política…
…e anunciou uma crise política dois meses antes.

Já falou na possibilidade de haver uma crise política se não houver este entendimento, mas isso pode ser só visto como uma maneira de Marcelo querer intervir mais no segundo mandato ou há, de facto, uma preocupação real de que possa haver uma crise política? E de que essa crise seria nociva no momento em que vivemos?
O Presidente tem muitos instrumentos. Se o Presidente está verdadeiramente preocupado com o risco de uma crise política, se não houver entendimento no Orçamento, tem muitos instrumentos ao seu dispor. E, seguramente, não é incendiando a opinião pública com comentários sobre se é responsabilidade do partido A ou do partido B, sobre se a solução com o partido C é menos adequada do que a do partido B, que pode ajudar a prevenir e a evitar a crise política. Esse é o tipo de situação em que o Presidente deve intervir discretamente. Deve intervir preventivamente junto dos protagonistas, procurando aproximar, não deve procurar trazer para si próprio e para o seu protagonismo um debate onde aliás não é parte. Porque nós estamos num momento em que o debate é entre o Governo e os partidos. É entre o Governo e o Parlamento. O Presidente da República não é parte deste debate. Se quiser exercer influência, e até o saudaria, tem de o fazer no recato que se espera de um Presidente e não no papel do Presidente que procura estar sempre em frente às câmaras e puxar o protagonismo sempre para si próprio.

"Se quiser exercer influência, e até o saudaria, o Presidente tem de o fazer no recato que se espera de um Presidente, e não no papel daquele que procura estar sempre em frente às câmaras a puxar o protagonismo para si próprio"

Isto evidencia de alguma forma que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, se chegar a um segundo mandato, devia exigir outro tipo de estabilidade a um governo de António Costa, como um acordo escrito como fez Cavaco Silva?
Neste momento estou totalmente focado em fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que esse tipo de questões não se coloque. O que posso dizer é que estou convencido que Ana Gomes, como Presidente da República, terá uma capacidade de entender os resultados eleitorais. No quadro em que estamos hoje, em que os portugueses votaram numa continuidade do PS no governo com um diálogo preferencial à esquerda — aquilo que poderíamos chamar uma geringonça 2 –, cabe aos partidos, nomeadamente ao PS e aos partidos parlamentares da esquerda, a responsabilidade de garantir a estabilidade e de se entenderem. Cavaco Silva não esteve bem ao exigir um documento escrito, não cabe ao Presidente dizer se é um compromisso escrito, se é de legislatura, se não é de legislatura. Esse não é o papel do Presidente. O que cabe ao Presidente é garantir que os resultados eleitorais são respeitados. E para que os resultados eleitorais sejam respeitados é inequívoco que, neste momento, é importante que o Presid ente exerça a sua magistratura de influência no sentido de que a sua sustentabilidade política seja garantida pelo bom relacionamento entre o partido que ganhou as eleições e os outros partidos que acreditaram que iriam fazer parte da solução governativa.

Esquerda deve aprovar OE, mas se não aprovar “não há nenhuma tragédia em democracia”

A esquerda está condenada a aprovar este Orçamento do Estado?
A esquerda está condenada a, se não aprovar este Orçamento do Estado, sentir que falhou perante os eleitores.

E se o Governo não conseguir que pelo menos o Bloco de Esquerda viabilize o Orçamento do Estado é o fim deste Governo de António Costa?
Compreendo que estejam muito preocupados com cenários políticos, mas perdi a capacidade de fazer essas cenarizações. Obviamente que não há nenhuma razão formal que vá nesse sentido. Se este Orçamento não for aprovado à esquerda e for aprovado ao centro, é tão legítimo como tendo sido aprovado à esquerda. Mas é menos consentâneo com os resultados eleitorais das legislativas. E esse seria um fator que deveria ser ponderado pelo Presidente da República. Mas, de per si, se um orçamento não é aprovado não há nenhuma tragédia em democracia. Se não é aprovado, terá que surgir outro.

E ficaríamos em duodécimos até ser um aprovado…mas isso nesta altura com uma crise económica desta dimensão, não era nocivo para o país?
Seguramente que não era bom, e eu volto a dizer que estou convencido de que os eleitores esperam dos partidos que fizeram a sua campanha eleitoral na perspetiva de se entenderem para governar o país sejam capazes de se entender para governar o país, isto para mim é claro. Mas se houvesse uma rutura, teríamos de perceber onde esteve essa rutura. É claro, por um lado, que há responsabilidades especiais à esquerda perante a governabilidade do país, mas também é claro que os portugueses não deram a maioria absoluta ao PS. E portanto o PS não pode querer reduzir os outros partidos da esquerda a uma espécie de notários das suas soluções. Tem de negociar.

"Se este Orçamento não for aprovado à esquerda e for aprovado ao centro, é tão legítimo como tendo sido aprovado à esquerda. Mas é menos consentâneo com os resultados eleitorais das legislativas"

Mas há pouco também disse que se o Orçamento não for aprovado à esquerda, mas ao centro, não é propriamente morte de homem, é tão legítimo um como o outro.
Pelo modo como eu hoje olho para a questão, estando a falar de Presidenciais, é evidente que é um elemento que o Presidente da República deve ponderar na sua leitura do país. Mas não é algo que torne impossível governar o país.

Acha que não? Para António Costa não era impossível governar o país a partir daí se agora tivesse de aprovar um orçamento com o PSD?
Eu não acho desejável que haja um orçamento PS-PSD, percebo que queira muito comentar esse cenário, mas…

É mais do que um comentário, o próximo Presidente da República pode ter um dilema destes nas mãos daqui a um ano.
Na minha visão, num cenário desses, assumindo o cenário, o Presidente da República deve ler o modo como os partidos se posicionam perante ele. O que eu anteciparia num cenário desses era de que o Presidente chamasse os partidos, os ouvisse e ponderasse.

A verdade é que o Presidente da República neste momento não está em plenos poderes, por estar em final de mandato, e não pode dissolver a Assembleia, mas depois da eleição já o poderá fazer. Acha que este Governo tem condições para seguir até ao fim da legislatura?
Acho que sim. Nessa matéria já vimos de tudo: coligações que tinham maioria absoluta não durar até ao fim da legislatura, e já vimos um Governo que parecia muito frágil na última legislatura, porque o partido que governava tinha uma percentagem de votos relativamente baixa, chegar ao fim da legislatura. Não creio que o chegar ao fim da legislatura tenha a ver com a relação de forças que ficou medida nas legislativas. Essa é conhecida. Tem a ver com a capacidade política, nomeadamente para se entenderem de modo positivo. Se não se conseguirem entender de modo positivo, cada um terá de assumir as suas responsabilidades. Mas creio que os portugueses não perceberiam uma crise política motivada nem pela birra de um primeiro-ministro nem pela intransigência dos partidos parceiros. Aquilo que eu espero é que uns e outros sejam capazes de fazer aquilo para que receberam o mandato dos portugueses, que é entenderem-se em torno de soluções que não podem ser o ditado de uma das partes às outras da sua agenda.

"O PS não pode querer reduzir os outros partidos da esquerda a uma espécie de notários das suas soluções. Tem de negociar"

Há quem diga que há aqui uma espécie de cheiro a fim de ciclo. Acha que as autárquicas do próximo ano vão precipitar o país num cenário de eleições antecipadas?
Vai ter de me substituir pelo doutor Marques Mendes, ele é que é o analista do fim de ciclo. Eu não tenho essa opinião nem a opinião contrária. Há um dado que é objetivo: nós em Portugal só tivemos um primeiro-ministro 10 anos, a generalidade dos primeiros-ministros não passa os oito anos, e nunca tivemos um primeiro-ministro 12 anos. Nas próximas legislativas, se António Costa se recandidatar e for eleito passará a ser o primeiro-ministro com mais tempo de sempre. Portanto, qualquer analista que se limite a olhar para as estatísticas do passado dirá que algo deve ter acontecido para que nunca ninguém conseguisse governar 12 anos. Mas isso é como as leis da bolsa: nada do passado faz regra para o futuro. Há um desafio muito grande a este Governo e a estes partidos que tiveram confiança para fazer maioria: a Covid-19 colocou-nos numa situação de grande pressão económica e social, e é uma lei dura da democracia que diz que os governos que têm de conviver com tempestades económicas e sociais têm um momento em que a sua base de apoio até sobe e depois tendem a ter um momento em que as pessoas se viram contra eles. Portanto, é de esperar que o Governo tenha um momento difícil, nomeadamente quando tiver passado o medo da pandemia, e as pessoas começarem a perceber que o regresso está a ser mais lento. E isso coincide com as autárquicas…

É, aliás, sensível à questão de como um resultado autárquico pode deixar um governo num “pântano”.
Pois, eu já fiz parte de um governo em que o primeiro-ministro entendeu isso… Eu acho que é nessa questão, não pelas razões políticas mas pelas razões económicas e sociais subjacentes, que este Orçamento é decisivo. Porque se os portugueses não virem neste orçamento um orçamento de um governo forte e em que podem confiar, e se não estiverem neste orçamento as medidas que lhes vão permitir amortecer os efeitos negativos da crise que todos antecipamos que vá acontecer, então aí é que aumentam os riscos desta quebra de confiança. Estamos num momento decisivo. Não direi que estamos num momento de fim de ciclo, porque acredito que o orçamento vai ser viabilizado pela responsabilidade das forças que têm cooperado nos últimos 5 anos, mas se não houvesse este Orçamento, ou se este Orçamento não aparecesse aos portugueses como capaz de apoiar as empresas e ao mesmo tempo aperfeiçoar as respostas sociais, talvez essa dinâmica se pudesse instalar. Por isso acho que estamos num momento decisivo. Que está nas mãos do Governo e dos partidos. Daí que o Presidente da República tenha um especial dever de reserva, porque este Orçamento não é um orçamento do bordado dos negociozinhos entre partidos. É um orçamento de escolhas difíceis, de medidas concretas, em que os partidos têm que trabalhar para garantir as melhores soluções.

"Não estamos em fim de ciclo mas estamos num momento decisivo. Se os portugueses não virem neste orçamento um orçamento de um governo forte e em que podem confiar, então aí é que aumentam os riscos da quebra de confiança"

“O PS tem afrouxado demasiado nas causas sociais”

Essas questões sociais de que falava ainda agora, e as questões laborais dos direitos do trabalho e dos trabalhadores, estão a ser demasiado deixadas para a esquerda? O PS está a perder essas batalhas por as deixar para os parceiros da esquerda?
Eu sou o mesmo Paulo Pedroso que achou que isso estava a acontecer no momento em que saí do Partido Socialista. Acho que o PS tem afrouxado demasiado nas causas sociais. Se mudar de caminho, acho que estará a recuperar a sua tradição. O PS tem sido em alguns momentos menos enérgico nas políticas sociais do que é o seu património histórico.

E isso acontece precisamente numa altura em que fez história ao aproximar-se da esquerda para formar a “geringonça”. Ou seja, numa altura em que supostamente está mais à esquerda…
Isso pode até servir para o PS ter a tentação contrária. Se uma pessoa tem os seus amigos muito à esquerda pode ter a tendência de assumir o papel de estar à direita deles. Não quero fazer muita psicologia, mas….

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Isso cria um problema e identidade ao PS? Esteve numa geringonça com a esquerda, ainda está numa semi-geringonça, e ainda se arrisca a sair daqui um partido menos à esquerda…
Não vejo como o PS sai daqui, como disse não estou a ver já um fim de ciclo. Mas a questão que coloca é pertinente. António Costa reposicionou o PS de modo estrutural na sociedade portuguesa. Hoje parece que tudo era natural, mas quando António Costa disse pela primeira vez que não havia arco da governabilidade era tão surpreendente que a maior parte dos jornalistas não acreditou. Vivemos um ano com ele a dizer isto e as pessoas não acreditaram. Nesse reposicionamento, o que aconteceu foi que, de um modo que não era automático, fez uma espécie de especialização em que o PS passou a puxar pelo lado da responsabilidade e deixou os outros partidos puxarem pelo lado das causas. E aí sim dá a sensação de que o PS parece um falcão do Orçamento, quando no passado foi sempre um falcão, um defensor, do aperfeiçoamento social. Há um conjunto de medidas, no direito do trabalho, nas reformas da proteção social, em que dá a sensação de que o poder político no país está mais à esquerda com um PS que está, pelo menos, mais silencioso. Esse é um efeito de posição de equilíbrio nestas circunstâncias. Estou convencido de que o PS vai tentar romper a barreira histórica e vai ter condições para ter um primeiro-ministro pela primeira vez 12 anos no cargo, mas quando isto acabar não estou  nada convencido de que o PS que chega ao fim esteja à direita do PS à entrada. Uma coisa é o silêncio para manter o partido unido em torno do Governo e outra coisa são as dinâmicas políticas internas. Estou convencido de que há um setor muito forte à esquerda dentro do PS.

"Estou convencido de que o PS vai tentar romper a barreira histórica e vai ter condições para ter um primeiro-ministro pela primeira vez 12 anos no cargo"

Mas foi suficiente para se desfiliar do PS. Admite que se o PS recuperar esse caminho pode regressar como militante?
Eu não saí para voltar a entrar, ou para estar em portas giratórias. Saí porque achei que, neste momento, o meu contributo para a sociedade portuguesa era em causas políticas e sociais em que a pertença partidária já não era um fator de potenciação, era de inibição. Estou plenamente convencido de que para que as classes médias em Portugal vivam melhor é preciso ter sindicatos mais fortes. Para que haja sindicatos mais fortes é preciso que haja alterações na legislação laboral significativas. Para além disso, é preciso que haja forças políticas e sociais posicionadas do lado dos sindicatos. O PS neste momento coloca-se muito como o partido do diálogo entre todas as partes, em que todas as partes são iguais. Aquilo que eu quero fazer é uma participação cívica, que colabora com o PS, mas em que as causas do PS deixaram de ser inteiramente as minhas causas, e aí foi um ato de honestidade recíproco.

[Veja a entrevista na íntegra:]

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.