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Era véspera de Natal. Uma empresária portuguesa que vive em Maputo “estava a começar a montar a mesa da Consoada” por volta das 19h30, quando recebeu uma notícia que “lhe estragou o Natal”. O estabelecimento de que era proprietária desde outubro de 2023 na capital moçambicana tinha sido vandalizado e completamente destruído. “No dia 23, já tinham tentado entrar lá, mas a minha funcionária conseguiu impedi-los. No dia 24, eram mais de cem. Entraram e vandalizaram, roubaram tudo, desde sanitas a ares condicionados”, relata ao Observador Marta (nome fictício), que preferiu não revelar a sua identidade, nem o ramo de negócio a que se dedica, por medo de represálias.
“Há muitas teorias sobre quem foi que fez isto”, diz Marta. A portuguesa refere que não sabe quem foi. Contudo, este ato de vandalismo é certamente um sinal da complexa situação política que atravessa Moçambique. As eleições de outubro, que a Frelimo e o candidato presidencial Daniel Chapo dizem ter vencido, causaram várias manifestações no país. Houve também várias paralisações e greves — que afetaram inevitavelmente a economia moçambicana. Vários empresários portugueses queixam-se agora da deterioração das condições financeiras. “Temos perdido muito dinheiro nestes últimos meses”, confirma Marta.
À frente dos protestos está o candidato presidencial do partido Podemos, Venâncio Mondlane. Alegando fraude eleitoral, o responsável tem lançado uma série de manifestações, sendo a última a “Ponta de Lança”. Desde o estrangeiro e recorrendo a vídeos nas redes sociais, milhares de moçambicanos ouvem as suas mensagens — e muitos concordam com as mesmas. O responsável político, que também é pastor, anunciou recentemente que vai voltar a Moçambique esta quinta-feira de manhã. A situação tem tudo para se complicar.
Entre defensores e críticos das ações de Venâncio Mondlane, Rita, outra empresária portuguesa na área da consultoria que preferiu não se identificar, considera que o problema “não é a revolta popular”. “A revolta popular só existe quando há opressão”, afirma ao Observador, culpando o atual governo moçambicano pela situação em que se encontra o país. “Não há espaço para uma revolta pacífica. Quando isso não acontece e continuam a matar… Não é a revolta popular que está a causar problemas. É o poder político. É a opressão contra essa revolta que está a criar problemas”, sublinha.
Os empresários portugueses em Moçambique, como Rita e Marta, acreditam que a situação pode ficar pior a partir desta quinta-feira. Ao Observador, Rui Moreira de Carvalho, presidente da Câmara de Comércio Portugal Moçambique, lembra que o país vai ter uma “convulsão terrível”: “Inflação”. “Não há movimentos de bens e serviços. O medo é maior do que as oportunidades”, exemplifica, acrescentando: “As pessoas têm medo de viajar, porque os autocarros são queimados. São vandalizados”.
“Grandes investimentos parados” e despedimentos. A situação económica em Moçambique
A campanha eleitoral já foi agitada em Moçambique. Mesmo assim, apesar de terem passado já alguns meses, ainda é demasiado cedo para medir a totalidade dos impactos, quer na economia do país, quer na forma como pode prejudicar os empresários portugueses. Em declarações ao Observador, Fernando Jorge Cardoso, investigador e professor catedrático na Universidade Autónoma de Lisboa, tem o “palpite” de que estes últimos dois meses vão “ter algum peso” na economia moçambicana. “O crescimento económico em 2024 vai ser positivo, mas os últimos dois meses terão impacto”, conjetura.
A instabilidade política terá, assim, impacto em Moçambique, principalmente no que toca à captação de investimento e à manutenção de negócios no país. “Nacionais ou estrangeiros reagem da mesma maneira: ou há estabilidade política e segurança nos seus investimentos, ou, se não, vão-se embora”, diz Fernando Jorge Cardoso, vincando: “Qualquer processo de instabilidade política leva a que os investidores, sejam eles internos, sejam eles externos, fiquem à espera de ver o que é que se passa. Não põem dinheiro”.
“Se já tiverem um negócio e se precisarem de manter salários, continuam, mas, se isso não acontecer, não põem novo dinheiro. Tudo aquilo que está para ser investido fica em suspenso à espera do que vai acontecer. E não tenho dúvidas de que foi isso que se passou, pelo menos neste último mês”, insiste Fernando Jorge Cardoso.
De igual forma, Rui Moreira de Carvalho explica que os “grandes investimentos estão parados”, dado que não “há segurança”.
Um dos dados que permite uma análise, mesmo que incompleta, da situação económica atual moçambicana é um inquérito do Standard Bank. Segundo o estudo publicado esta terça-feira, as “empresas do setor privado moçambicano relataram uma maior deterioração das suas condições no último mês de 2024, tendo a produção e as carteiras de encomendas sido de novo afetadas negativamente por protestos e greves. A procura pelos clientes diminuiu ao ritmo mais elevado em quatro anos e meio, causando reduções adicionais nas aquisições, nos stocks e nos efetivos”.
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Ao Observador, Marta partilha que, mesmo antes de o seu negócio ter sido vandalizado, “já tinha despedido funcionários”. “Agora, suspendi o meu pessoal todo. Com outras pessoas aconteceu o mesmo”, lamenta, acrescentando que tem conhecimento de casos idênticos. Entre empresários, diz, “poucos foram os que aguentaram o barco e que ficaram”, tendo saído de Moçambique “por causa da instabilidade” — e da situação que se “avizinha” com a chegada de Venâncio Mondlane e a tomada de posse de Daniel Chapo, marcada para o próximo dia 15 de janeiro.
“Os empresários internacionais foram todos embora. Os portugueses foram os mais resistentes a não irem embora”, salienta Marta, contando que outras nacionalidades partiram de Moçambique mais cedo. Atualmente, os únicos a resistir, prossegue, são os “patrões”: “São pessoas que têm negócios e não os podem abandonar”. “Por exemplo, a minha família também toda diz para eu me ir embora. Mas o que digo aos meus funcionários? ‘Não saias daqui?’ Tenho de dar o exemplo.”
Também Rita conta que existem dificuldades. Salienta que os seus clientes estão “nervosos” por causa “de dois meses com interrupções” e destaca que empresários, muitos deles portugueses, também sentem nervosismo por conta da situação política: “Estão na iminência de se irem embora, porque se isto continua com o regime em que está… Ficam completamente inviabilizados“, atira.
No entanto, Rita também relativiza a situação e relaciona-a com a época do ano. “Aparentemente, até parece que os empresários foram todos embora. Não é verdade. Alguns empresários foram fazer a sua pausa de Natal com as famílias e estão a regressar”, ressalva, admitindo, porém, que muitos estão “ansiosos”. “Já falei com muitos deles. Estão com receio de voltar. Tenho amigos com viagens adiadas.”
Ao Observador, outra portuguesa que reside em Maputo, e que regressou das férias de Natal nos últimos dias, relata igualmente uma situação anómala para esta altura do ano: o voo que partiu de Lisboa com destino à capital moçambicana “estava meio vazio”. “Normalmente, isso não costuma acontecer. Nesta altura, não. Há um grande movimento para cá e para lá por causa do Natal.”
“Eu tenho conhecimento de muita gente que tinha voo marcado para cá [Maputo]. Desistiram ou adiaram, porque não querem vir antes de saber o que vai acontecer”, realça. Por agora, a mesma portuguesa conta que está tudo “calmo” em Moçambique, relacionando igualmente o ambiente com o período de férias no país: “Há várias empresas em férias coletivas e muitas escolas não começaram”. Mas, a partir de dia 9 de janeiro, data em que Venâncio Mondlane regressa a Maputo, pode mudar tudo — e muitos estão à espera do que acontecerá depois.
O que vai acontecer depois de Mondlane chegar? Há “receio”, mas também “otimismo”
Num live do Facebook no domingo, Venâncio Mondlane anunciou que regressaria a Maputo esta quinta-feira às 8h05 (hora local, menos duas horas em Lisboa). O candidato presidencial chega dias antes da tomada de posse do Presidente eleito, Daniel Chapo, cuja vitória foi declarada pelo Conselho Constitucional (CC) no passado dia 23 de dezembro. A figura da oposição à Frelimo convidou inclusivamente os seus apoiantes a estarem presentes no Aeroporto Internacional de Maputo.
Ainda que por agora esteja tudo tranquilo, as próximas horas serão de grande tensão em Moçambique. Para os empresários, é mais um fator de instabilidade. O inquérito do Standard Bank aponta que as perspetivas económicas agravaram-se “acentuadamente devido à tensão pós-eleitoral, ao recuo do crescimento do PIB, à subida da inflação, a pressões fiscais e desequilíbrios entre a procura e a oferta de divisas”.
Atividade empresarial em Moçambique com maior queda desde 2020 devido a tensões
Para as empresárias portuguesas ouvidas pelo Observador, existe desânimo, mas também perseverança. Apesar de ter visto o seu negócio a ser vandalizado, Marta diz que pretende seguir em frente, contando, na melhor da hipóteses, reabrir o negócio a meio-gás apenas no final de janeiro, dias após a tomada de posse de Daniel Chapo. No entanto, teme o que pode acontecer com o regresso de Venâncio Mondlane a Maputo. “Vai piorar de certeza absoluta. Está aí a chegar o mártir, não é?”
Para Marta, o candidato presidencial que concorreu pelo Podemos “instalou o caos e incentivou o ódio” em Moçambique. “Ele acendeu o rastilho. Eu não sou nada, não voto. Mas sou uma pessoa com cabeça. Podem estar muitas coisas mal neste país. Mas o que este senhor [Venâncio Mondlane] estragou em três meses… Recuámos anos neste país”, indigna-se a empresária portuguesa.
Por sua vez, Rita garante que “inculta um pouco de esperança aos seus clientes” para o futuro. A empresária direciona a sua revolta contra a “vergonha” que diz ser o atual regime, prevendo que o governo não “conseguirá esconder tudo aquilo que se está a passar” no país por muito mais tempo. “Tudo poderia ter sido evitado se a comunidade internacional tivesse tido um bocadinho de bom senso e esperasse que a verdade viesse à tona e não ficasse à espera das instituições que estão manietadas para serem o garante da verdade em Moçambique.”
Neste sentido, a empresária deixa duras críticas à diplomacia portuguesa pela forma como geriu todo este processo. “Senti-me humilhada”, desabafa, frisando que o Estado português e a embaixada não têm “noção nenhuma do que é a vida de um empresário de classe média em Moçambique”. As instituições diplomáticas portuguesas em Moçambique, critica Rita, vivem “numa redoma” e “têm apenas contacto com grandes empresas portuguesas”.
“Não sabem nada do que as pessoas vivem aqui. E, provavelmente, por esse motivo, assessoraram mal tanto o Presidente como o primeiro-minsitro”, afirma Rita, vincando que a realidade é diferente em Moçambique. “Nós sabemos perfeitamente o que é que aconteceu nas eleições. Todas as irregularidades.”
Mesmo que Daniel Chapo tome posse e se assista a uma pacificação nas ruas, Fernando Jorge Cardoso não prevê que economicamente a situação melhore, prevalecendo a desconfiança entre os empresários. “O novo governo e o novo Presidente não têm a confiança das pessoas. Como não têm, não vão ter a confiança dos investidores, exceto daqueles que estiverem a atuar fora de Maputo, em minas e zonas onde possa haver uma proteção de investimentos, em tudo o que tenha a ver com indústrias extrativas.”
Vivendo uma crise política que afeta todas as esferas da sociedade, a população moçambicana e os empresários portugueses — muitos deles com ligações de décadas a Moçambique — estão já a enfrentar sérias consequências económicas. E, nos próximos tempos, a situação está longe de estar pacificada.