Estamos a menos de dois meses do outono e uma nova preocupação cresce na comunidade médica e nas autoridades de saúde. Com a nova estação costuma chegar também a época da gripe, que se inicia por outubro/novembro e pode durar até março ou abril. Todos conhecem tão bem o cenário habitual desse período (mais recorrente em dezembro a fevereiro) — ataques de tosse nas salas de espera dos centros de saúde, urgências cheias de doentes com sintomas respiratórios (e não só) e hospitais a atingir o limite dos internamentos — que a pergunta se impõe: e se este ano a gripe e a Covid-19 se cruzarem?
A probabilidade de coexistirem já é quase certeza: “Vai haver uma coincidência [do SARS-CoV-2] com o vírus da influenza [gripe] e isso pode ser dramático”, diz ao Observador Carlos Robalo Cordeiro, diretor do serviço de Pneumologia do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra.
Até pode ser que os dois vírus não circulem ao mesmo tempo ou que não provoquem surtos na mesma região no mesmo momento, mas com os doentes a chegarem ao hospital com febre alta e súbita (acima de 38º C), tosse e dores no corpo — que tanto pode ser gripe como Covid-19 — não vai ser fácil distinguir sintomas, começam logo por avisar os especialistas contactados pelo Observador. A dificuldade do diagnóstico é mesmo o primeiro de dois grandes problemas que se poderão levantar. O outro é a sobrelotação das estruturas de saúde com o aumento de internamentos e a necessidade de isolar doentes.
As consequências possíveis deste encontro não têm passado despercebidas ao Governo português que já fez saber por várias vozes — a do primeiro-ministro, da ministra da Saúde e da diretora-geral da Saúde, por exemplo — que está a preparar um plano adequado para o inverno, para o qual foi reforçada a encomenda de doses de vacinas para a gripe: mais 600 mil num total de dois milhões. E Marta Temido e Graça Freitas disseram ainda que têm os olhos postos na Austrália. Porquê, para quê, como? Já lá vamos.
Como é que o SARS-CoV-2 se vai comportar na presença de outros vírus respiratórios?
Esta é a resposta que todos queriam ter. Não se sabe se o vírus vai manter-se sob controlo, com alguns surtos localizados ou se vai provocar uma segunda vaga a nível global. E mesmo que o número de novas infeções volte a crescer abruptamente, não se sabe se isso vai significar mais internamentos ou não. Em relação à gripe, as dúvidas são as mesmas de outros anos: se o número de doentes infetados e internados será alto ou baixo e se os vírus em circulação são aqueles que foram incluídos nas vacinas ou outros diferentes (o que poderia tornar a situação mais complicada).
Para agravar, estas dúvidas não devem ter resposta tão brevemente. “Fazer previsões com mais de duas a quatro semanas para a gripe — e mesmo para a Covid-19 — não é sensato”, diz ao Observador Pasi Penttinen, diretor do programa de vigilância da gripe e de outros vírus respiratórios no Centro Europeu para o Controlo e Prevenção de Doença (ECDC).
Quando é que as infeções vão atingir o pico é outra incógnita, mas Margarida Tavares, coordenadora do serviço de internamento de doenças infecciosas do Centro Hospitalar Universitário de São João, acredita que é pouco provável que os picos sejam simultâneos. “É um fenómeno conhecido dos infecciologistas e dos epidemiologistas que há uma concorrência entre os vírus e em princípio não vamos ter duas grandes epidemias.” Pelo menos não na mesma altura, assim espera a médica. “É provável que a existência de um deles diminua a incidência do outro ou, pelo menos, a manifestação do outro.”
E quando falamos de interferências entre vírus diferentes temos de considerar também os restantes vírus respiratórios, lembram especialistas ao jornal The Guardian. Os primeiros vírus a chegar no outono são, normalmente, os rinovírus, que provocam constipações, e que se espalham facilmente com o regresso das crianças pequenas às escolas e infantários. À medida que os sistemas imunitários vão desenvolvendo imunidade, estes vírus acabam por diminuir de frequência e ganha espaço o vírus sincicial respiratório, particularmente preocupante entre as crianças pequenas porque pode provocar bronquiolites. Com a regressão deste vírus instalam-se os vírus da gripe, continuam os médicos citados pelo jornal britânico.
Os vários vírus respiratórios parecem, assim, ir dando vez uns aos outros, mas ninguém sabe como é que o SARS-CoV-2 se vai comportar nesta dança de infeções. Por um lado, no início da pandemia, ainda na Ásia, houve relatos de pessoas que tinham sido, simultaneamente infetadas com o vírus da gripe e o novo coronavírus.
Por outro lado, tanto os rinovírus como os vírus da gripe são principalmente transmitidos pelas crianças, o que pode não ser o caso do SARS-CoV-2 e assim não existir esta tal interferência e alternância de vírus a dominar as infeções, continuam os especialistas ouvidos pelo jornal The Guardian. Por enquanto, não se sabe o que vai acontecer.
Os problemas: diagnóstico difícil, dificuldade em isolar doentes e a lotação dos hospitais
Um dos grandes problemas da confluência da Covid-19 e da gripe sazonal é a distinção de doentes. A experiência diz-nos que durante o outono e inverno os serviços de urgência se vão encher: os que viram as suas doenças crónicas descompensadas com a chegada das temperaturas mais frias, os que têm sintomas respiratórios e todas as outras situações.
Os doentes respiratórios devem ser separados dos demais, mas também têm de ser separados entre si: os doentes Covid-19, os doentes com gripe e os doentes com outras infeções respiratórias, concordam os médicos ouvidos pelo Observador. E para isso é preciso fazer um diagnóstico preciso e com a maior rapidez possível. “Não podemos estar horas ou um dia à espera de resultados [de testes] de doentes a acumularem nos serviços de urgências ou zonas de espera”, diz Carlos Robalo Cordeiro, prevendo a grande afluência que se faz sentir nessa altura.
E a corrida aos hospitais pode ser ainda maior. Se no período pré-pandemia se aconselhavam os doentes a tratar a febre com um antipirético, como o paracetamol, durante três dias e só se a febre não baixasse é que deviam consultar os serviços de saúde, agora isso não é possível. O surgimento súbito de febre alta é motivo suficiente para se tornar um caso suspeito de Covid-19 e, daqui a uns meses, também de gripe, e procurar imediatamente ajuda junto dos cuidados de saúde, nomeadamente da linha SNS24 (808 24 24 24).
Vendo a situação por um ângulo oposto, podemos ter muito menos infeções respiratórias, porque as pessoas vão ter mais cuidados — máscara, distanciamento social, higiene das mãos —, explica ao Observador Tiago Guimarães, diretor do serviço de Patologia Clínica do Centro Hospitalar Universitário do Hospital de São João.
Uma coisa é certa, no momento em que um doente se dirige a um serviço de saúde e se queixa de febre ou dores no corpo, não se sabe imediatamente que vírus leva consigo. E os hospitais não querem ter doentes covid e não-covid juntos pelo risco de se contagiarem uns aos outros. O diagnóstico laboratorial tem de ser feito rapidamente e os doentes encaminhados pelos corredores respetivos que, no mínimo, separam os doentes com Covid-19 dos restantes, dizem os médicos ouvidos pelo Observador.
Depois é preciso tratar convenientemente os doentes. Se as constipações e a maior parte dos casos de gripe passam por si, bastando tratar os sintomas (febre e dores), alguns casos de gripe necessitam de medicação específica — o antigripal oseltamivir — que deve ser dada nas primeiras 48 horas. “As pessoas que estão incluídas nos grupos de risco são as que estão mais sujeitas a ter complicações e são as que mais beneficiam desta medicação”, esclarece ao Observador o pneumologista António Diniz.
Ninguém consegue prever qual o impacto de ter estes dois vírus a circular simultaneamente na população e a atingir mais ou menos os mesmos grupos de risco — idosos e doentes crónicos —, mas uma coisa médicos e autoridades de saúde têm a certeza: é preciso aliviar, tanto quanto possível, a pressão sobre os hospitais. E planear a resposta dos serviços de saúde tendo em conta o pior dos cenários, mesmo que depois corra tudo com mais tranquilidade.
A prevenção: para a gripe temos vacinas
Como nos prevenimos? Mike Ryan, o responsável pelo programa de Emergências Sanitárias da Organização Mundial de Saúde, já avisou que não teremos um programa de vacinação contra o SARS-CoV-2 antes de meados do próximo ano. E estamos ainda longe de poder contar com a imunidade adquirida pelo contacto com o vírus.
Portanto, a melhor defesa continua a ser usar máscara, lavar as mãos com frequência, espirrar e tossir para o cotovelo e manter o distanciamento físico, têm insistido as autoridades de saúde nacionais e a OMS. A segunda vantagem destas medidas é que funcionam igualmente bem (ou até melhor) para prevenir a transmissão do vírus da gripe. O confinamento e distanciamento social foram de tal forma eficazes no hemisfério norte que tiveram a feliz consequência de reduzir, de forma global, a época da gripe sazonal em cerca de seis semanas, reportou a Nature News.
Para a gripe, no entanto, temos ainda outra estratégia: a vacina sazonal. É preparada com os três ou quatro vírus mais comuns do ano inverno anterior e/ou aqueles que se poderão vir a circular na estação. Adicionalmente, se os vírus em circulação forem equivalentes aos do último inverno, uma boa parte da população poderá apresentar alguma imunidade, por ter tido contacto com o vírus, referem os especialistas ao The Guardian. Diferente situação temos se surgir um vírus completamente novo contra o qual a vacina não tenha qualquer efeito, alertam os especialistas no jornal britânico. É por isso que para esta época de gripe/Covid-19 os serviços de saúde têm de se preparar para todos os cenários, destaca Carlos Robalo Cordeiro.
Em Portugal, e na Europa, as pessoas que têm maior risco de desenvolver complicações depois de infetadas com o vírus da gripe têm prioridade na vacinação: os idosos (acima de 65 anos) e os doentes crónicos. Mesmo que a vacina não consiga prevenir a doença, espera-se que consiga, pelo menos, evitar que a doença se manifeste de forma grave. Assim, não só se protege a pessoa individualmente, como se reduz a pressão sobre os sistemas de saúde, destaca Pasi Penttinen.
A diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, garante que os primeiros a serem vacinados serão os idosos. “A nossa primeira prioridade são as pessoas que estão nos lares. Faz parte da estratégia de proteção”, disse durante uma conferência de imprensa sobre a epidemia de Covid-19. “Estas pessoas estão em sítios circunscritos, estão juntas, tem uma idade que é habitualmente avançada e geralmente tem doença associada, portanto estes serão os primeiros de grande grupos a vacinar.”
Gripe sazonal. Professores só serão vacinados se fizerem parte de grupos mais vulneráveis
António Diniz, que faz parte da equipa da DGS na resposta à Covid-19, diz ao Observador que não há dúvida de que se deve apostar na vacinação das pessoas com mais de 65 anos e dos doentes crónicos porque são os que mais beneficiam em termos individuais. Mas o Ministério da Saúde prevê também o reforço da vacinação dos profissionais de saúde e funcionários dos lares. Os médicos ouvidos pelo Observador concordam que não só se evita que os profissionais de saúde possam transmitir o vírus da gripe aos grupos mais frágeis como se evita que estes profissionais tenham de faltar ao trabalho — onde a sua presença é essencial — por motivo de doença (no caso, gripe).
Apesar dos benefícios individuais e coletivos, a vacinação da gripe continua a ter níveis mais baixos do que as recomendações do ECDC em todos os países da Europa. No caso dos idosos devia chegar a, pelo menos, 75%, mas não há nenhum país que o consiga atingir, diz Pasi Penttinen. Pior está a cobertura da vacina entre os profissionais de saúde. “Não há nenhuma razão, nenhuma, para que os profissionais de saúde não se vacinem”, diz Margarida Tavares, que foi responsável pelo plano de contingência de gripe no Hospital de São João durante vários anos.
Para António Diniz deviam ser os serviços de saúde ocupacional a procurarem imunizar tantos profissionais de saúde quanto possível. “Não gosto nada das coisas compulsivas, mas acho que devia haver uma forte pressão e uma disponibilização sistemática, promovida pelos serviços de saúde ocupacional nas estruturas de saúde aos seus profissionais.” Margarida Tavares pode atestar que a persistência dá frutos. “Aquando do plano de contingência para a epidemia de gripe [em 2009], conseguimos mais do que duplicar a cobertura vacinal entre os profissionais de saúde do Hospital de São João, mas nunca conseguimos mais do que 50%”, lamenta a infecciologista. “E 50% é muito pouco, devia ser perto de 100%.”
A campanha de vacinação da gripe deste ano terá outra diferença, vai começar um pouco mais cedo, logo no início de outubro (em vez do final do mês). Ser ainda mais cedo, pelo contrário, não fazia sentido porque, para algumas pessoas, a eficácia da vacina não dura mais do que cinco ou seis meses e é preciso garantir que cobre todo o período gripal. Ainda assim, António Diniz gostava de poder já estar a prescrever a vacina aos seus doentes, mesmo que fosse para serem vacinados só no outono. É que os doentes crónicos, com agendamento de consultas espaçado no tempo, acabam por ser obrigados a voltar ao médico antes dessa data por causa da vacina, enchendo as escassas vagas nos serviços de saúde à medida que nos aproximamos da época de gripe.
A Ordem dos Médicos, numa nota divulgada esta segunda-feira, também defende, além da antecipação da vacinação — já prevista pela DGS — a possibilidade de prescrição em receita com validade até ao final do ano.
Ter vacinas disponíveis e poder prescrevê-las aos utentes é uma coisa, mas conseguir dar (administrar) a vacina a toda a gente é outra. Saber como se vai implementar um plano de vacinação durante uma altura em que se pede distanciamento social e que se quer fazer tudo de forma muito segura, é uma das preocupações que serão refletidas no plano do ECDC. Depois é preciso garantir que há recursos suficientes para dar milhões de vacinas aos utentes.
A Associação Nacional de Farmácias e a Associação de Farmácias de Portugal dizem que os seus associados estão disponíveis para garantir o serviço gratuito de vacinação da gripe, diminuindo a carga sobre os hospitais e centros de saúde e aumentado a taxa de vacinação em alguns grupos específicos. Um projeto-piloto deste tipo de vacinação, no concelho de Loures, mostrou que foi possível vacinar mais 30% dos idosos.
As soluções: testar, testar, testar e isolar
Como preparar-nos para uma situação completamente nova e que recursos temos à nossa disposição? Os vários especialistas ouvidos pelo Observador usam quatro palavras para resumir o que deve ser o plano para o próximo outono-inverno: vacinar, testar, isolar e monitorizar.
A necessidade de testes rápidos e eficazes é sublinhado por todos. Mas que testes?
Neste momento, os testes de diagnósticos aprovados para detetar o SARS-CoV-2 são os RT-PCR (Reações em Cadeia da Polimerase, em tempo real) que, de uma forma simplificada, são um método que deteta a presença do material genético do vírus. O processo, com todos os seus passos laboratoriais, e na sua versão clássica (ainda que otimizada) nunca leva menos de quatro horas: meia hora a 40 minutos para inativar o vírus (destruir a cápsula que o envolve) e extrair o material genético, e cerca de três horas para a amplificação do material (fazer muitas cópias dos genes para ser mais facilmente detetados) e a própria deteção. A máquina onde corre o PCR pode levar várias amostras ao mesmo tempo — em algumas máquinas, 96.
João Gonçalves, investigador no Instituto de Investigação do Medicamento (iMed.ULisboa), diz ao Observador que para algumas situações este tempo não é excessivo, como quando têm de fazer as análises de todos os utentes e funcionários de um lar ou dos trabalhadores de uma empresa. “Se recebermos as amostras de manhã, ao fim do dia estamos a dar os resultados.” Mas o investigador admite que nos hospitais vai ser preciso dar uma resposta mais rápida. A dificuldade é que os testes mais rápidos são, normalmente, mais caros e menos fiáveis.
A Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FFUL) tem estado a experimentar estes testes rápidos, conta João Gonçalves. Neste caso, em vez das seis horas que normalmente demoram a fazer um PCR (contando com todos os passos do processo), um teste rápido pode levar cerca de duas ou três horas porque o tempo da amplificação (replicação do material genético) é reduzido. A desvantagem é que quanto menor o tempo dedicado a esta parte do processo, menos sensível é o teste, ou seja, mais difícil é detetar material genético, especialmente se a amostra inicial também tiver pouca quantidade.
Para testar o desempenho dos testes, os investigadores comparam os resultados de cada amostra analisada entre um PCR clássico e um teste rápido. Se os resultados forem iguais, os testes são fiáveis. João Gonçalves admite que o principal problema neste caso são os falsos negativos — pessoas que estão infetadas com SARS-CoV-2, mas que o teste não consegue detetar. O sistema usado pela FFUL tem dificuldade em detetar cargas virais mais baixas, que pode ser comum nas pessoas assintomáticas, mas, à partida, as pessoas que cheguem ao hospital com sintomas de Covid-19 já terão uma quantidade de vírus suficientemente alta para ser facilmente detetada.
Máquinas que fazem tudo
O Hospital de São João, assim como outros hospitais do país, usam um outro modelo de testes rápidos. Em vez de as etapas do RT-PCR terem de ser feitas pelos técnicos de laboratório, pipetando as amostras e os reagentes de um lado para o outro, este teste rápido usa um único cartuxo — onde se coloca a amostra do doente —, que contém todos os reagentes e realiza todos os passos do processo. Tudo isto dentro de uma mesma máquina. Aqui a desvantagem é outra: além dos custos, a presença de falsos positivos.
“Nos testes rápidos interessa-nos que não existam falsos negativos”, diz Tiago Guimarães, alertando para o risco que é ter um doente com Covid-19 não identificado no meio de outros doentes que não têm esta infeção. Sobre o teste rápido que usam diz: “Fizemos umas boas centenas de ensaios e ainda não tivemos falsos negativos”. Não pode garantir que nunca vá acontecer, mas acredita que a taxa será muito reduzida.
Quanto aos falsos positivos não se mostra tão preocupado. Os testes rápidos são para as situações que têm de ter uma resposta num curto espaço de tempo — 45 minutos ou um hora — como uma cirurgia de urgência ou uma grávida em trabalho de parto. Estes resultados são sempre confirmados por um teste convencional, que vai demorar mais algum tempo, mas entretanto já foi possível dar um encaminhamento ao utente.
Se for um falso positivo — ou seja, se o teste diz que está infetado com o novo coronavírus, mas na verdade não está —, a pessoa é encaminhada como se tivesse a infeção, o que significa maiores cuidados para evitar contágio, mas assim que vier o resultado do teste clássico a intervenção é ajustada em conformidade. Por exemplo, para uma grávida que ainda não tenha tido o bebé, se se confirmar que era um falso positivo, o esquema de parto é alterado e a mãe pode pegar na criança após o nascimento.
Ter as reações e a deteção a acontecer ao mesmo tempo
Há empresas e grupos de investigação a trabalharem noutros tipos de testes rápidos ou na otimização daqueles que já existem. A equipa de Luísa Pereira, investigadora no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), por exemplo, estava a trabalhar num novo teste para a dengue, zika e chikungunya. Quando surgiu a pandemia de Covid-19, rapidamente se adaptou a esta nova realidade. Os investigadores do i3S não inventaram a base do teste, mas são eles que estão a tratar da parte específica de cada um destes vírus — ou seja, escolher a parte do material genético que vai ser detetada —, explica a investigadora ao Observador.
O teste, admite a líder do grupo de investigação em Diversidade Genética, tem algumas semelhanças com o PCR, com a vantagem de que tal como a máquina do Hospital de São João consegue ter todas as reações a acontecer no mesmo tubo. Outra vantagem é que assim que as reações começam a acontecer, a máquina tem capacidade de as detetar imediatamente, ou seja, ao fim de cerca de 40 minutos e com uma grande sensibilidade (mesmo em quantidades pequenas). A desvantagem, apercebeu-se a investigadora, é a dependência de reagentes que são produzidos num único sítio e que por isso fazem os laboratórios ficarem condicionados pelos stocks e capacidade de entrega dos fabricantes.
“Um dos reagentes só uma empresa inglesa é que o vende e estão assoberbados. Demoraram mais de mês e meio a entregar o reagente, o que atrasou o projeto”, conta a investigadora que deveria estar agora a entregar resultados, mas que ainda vai precisar de mais três meses para concluir a experiência. Noutro caso, tiveram de esperar quase dois meses para que os reagentes vindos dos Estados Unidos fossem desalfandegados. A solução passa agora por produzir os próprios reagentes (ou alguns deles) e tornarem-se mais autónomos.
Uma das grandes diferenças do teste em desenvolvimento pela equipa do i3S é que usa uma enzima bacteriana descoberta há relativamente pouco tempo: a Cas13a. Como é que decorre o processo, neste caso? Primeiro a equipa selecionou uma parte do material genético que fosse específica do SARS-CoV-2, depois criou um fragmento sintético e complementar que vai encaixar na porção do vírus. Quando este fragmento encontra o vírus, liga-se à enzima Cas13a e ativa-a — como se fosse um interruptor. É esta ativação da enzima que será detetada no teste. Mas, neste momento, isto ainda está tudo numa fase experimental.
Fazer testes para a gripe
O mais importante é que se consiga identificar se o doente está infetado com SARS-CoV-2 no menor tempo possível, para poder separar os doentes covid dos não-covid, concordam os médicos ouvidos pelo Observador, mas também admitem que seria interessante conseguir fazer os testes para a gripe, que raramente são feitos. Porquê? Depois de se confirmar que há vírus da gripe a circular, os sintomas apresentados pelos doentes costumam ser o suficiente para fazer um diagnóstico clínico da gripe, sem recurso ao teste que confirma a presença do vírus. Agora, com a circulação simultânea do SARS-CoV-2, analisar os sintomas não vai ser suficiente.
Com mais testes para identificar o vírus da gripe, é possível que mais doentes sejam diagnosticados com a doença, que só pelos sintomas podia não ser possível esse diagnóstico. Foi o que aconteceu durante o mês de fevereiro, deste ano, no Centro Hospitalar Universitário de São João. Margarida Tavares, coordenadora do serviço de internamento de doenças infecciosas neste hospital, conta ao Observador que tiveram mais de 50 casos de gripe diagnosticados, que noutra situação teriam simplesmente ido para casa. Este diagnóstico só aconteceu porque era preciso confirmar se era Covid-19 ou não.
Os testes multiplex que algumas empresas estão a desenvolver e que permitem com uma única zaragatoa — ou seja, recolher uma única amostra do doente — detetar mais do que um vírus são uma possibilidade. Para os adultos, era fundamental detetar o SARS-CoV-2 e o vírus da gripe. Para as crianças é importante detetar também o vírus sincicial respiratório, responsável pelas bronquiolites, por ser altamente contagioso, destaca Tiago Guimarães.
O Reino Unido diz que vai iniciar este tipo de testes, que detetam gripe e Covid-19 em 90 minutos, na próxima semana, segundo a BBC. O problema, por enquanto, é que não existem dados publicados sobre a precisão destes testes.
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Outra forma de acelerar o processamento de várias amostras é juntá-las por lotes — o chamado “pooling” —, como explica João Gonçalves. Para testar 100 pessoas, por exemplo, juntam-se as amostras em lotes de 10 e faz-se um RT-PCR convencional. Só no caso de se detetar algum sinal num desses lotes é que se analisam individualmente cada uma das 10 amostras do lote. João Gonçalves lembra que este sistema só faz sentido quando se pretende testar muitas pessoas, como numa empresa, mas se espera que a percentagem de infetados seja pequena. Nunca faria sentido ser usado em contexto hospitalar.
A autoridade norte-americana do medicamento (FDA) autorizou a sua utilização, em lotes com quatro amostras, no contexto de emergência da pandemia de Covid-19. Mas os investigadores portugueses ouvidos pelo Observador lembram o risco de falsos negativos. É que juntar várias amostras vai fazer com que, na prática, haja menos material genético (por volume de líquido), o que pode tornar mais difícil a deteção — como nos casos das pessoas com uma baixa carga viral.
Preparar a nível nacional, adaptar a nível local
Se durante o pico da pandemia de Covid-19 em Portugal os hospitais estiveram perto de atingir o limite, a verdade é que não entraram em colapso, nem foi preciso encher os hospitais de campanha que se multiplicaram por todo o país. Mas precaver a existência dessas estruturas é essencial, defende a Ordem dos Médicos. “É fundamental que se comece a pensar nos internamentos no inverno, em eventuais hospitais de retaguarda para que, se houver um número excessivo de internamentos, possamos alocar os menos graves para esses espaços”, disse António Araújo, presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos, citado pelo Jornal de Notícias.
A primeira fase da preparação, defende o pneumologista António Diniz, passa por identificar como é que Portugal conseguiu dar resposta à pandemia até agora e com que custos — esgotamento dos profissionais de saúde e redução da assistência a outros problemas de saúde, por exemplo. E depois preparar o futuro, prevendo que alguns serviços possam ter de ser fechados, que alguns profissionais de saúde possam ter de ser deslocados, que os processos de contratação de profissionais de saúde sejam mais flexíveis ou que se possa recrutar voluntários entre os estudantes de Medicina e Enfermagem, acrescenta o coordenador da Unidade de Imunodeficiência do Hospital Pulido Valente.
Ordem dos Médicos quer máscaras na rua e testes para contactos de risco
Para já, o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, anunciou na conferência de imprensa da DGS que o Ministério da Saúde vai contratar 4.300 profissionais de saúde para reforçar o Serviço Nacional de Saúde.
A Ordem dos Médicos, por sua vez, não esperou pelo plano de inverno que será divulgado pela DGS e avança já com algumas recomendações, incluindo o uso de máscaras em espaços públicos abertos. Até porque, para a Ordem, é fundamental “maximizar a eliminação da atividade viral durante o verão, aproveitando as temperaturas mais elevadas, o aumento da radiação UV, a dispersão populacional e o encerramento das
escolas”.
Entre as sugestões avançadas nesta segunda-feira, a Ordem dos Médicos lembra que deveria ser elaborada “legislação específica e de normas de Saúde Pública para a realização de eventos de massas com critérios uniformes e coerentes”. A nota de imprensa, divulgada no final de uma “reunião extraordinária” entre o bastonário e o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19, não específica situações, mas algumas manifestações e a realização da Festa do Avante têm estado no centro da polémica sobre as exceções aos ajuntamentos de pessoas.
Ao Observador, António Diniz defende que “devem existir orientações nacionais que sejam perfeitamente claras em relação aos diferentes modos de atuação. Depois, deve haver uma resposta de acordo com a realidade de cada região ou até de cada área de influência das estruturas de saúde.” Carlos Robalo Cordeiro concorda que “é muito importante ter essa capacidade de regionalmente entender as diferenças” e criar comissões locais para o efeito, que incluam não só as autoridades de saúde, mas também as autarquias, os agrupamentos escolares e as universidades, por exemplo.
Tendo em conta a experiência dos últimos meses há algumas falhas identificadas que não se podem voltar a repetir-se, a começar pelo acompanhamento das equipas de saúde pública aos doentes com Covid-19 que estejam a recuperar em casa, contactos e restantes pessoas em quarentena e isolamento profilático. Essas equipas têm de estar formadas e preparadas atempadamente, alertam os médicos, para não assistirmos a uma situação equivalente à do surto na Área Metropolitana de Lisboa em que houve atrasos no acompanhamento de centenas de pessoas, dificultando o controlo das cadeias de transmissão.
António Diniz: “Atrasos em Lisboa inviabilizam qualquer tentativa de controlo da situação”
O que também não pode faltar são as zaragatoas e os reagentes necessários para fazer as análises, lembra Tiago Guimarães. “Precisamos ter o sistema bem montadinho.” O diretor do serviço de Patologia Clínica lembra as dificuldades que tiveram no início porque as empresas não tinham capacidade de fornecer tantos pedidos ou algumas, como as de Wuhan (China), tiveram mesmo de fechar. “Nunca, neste processo todo, tivemos qualquer limitação económica de compras, a limitação era a disponibilidade dos produtos”, diz. “Mas se não fossem os ajustes diretos, teríamos tido de parar. Com concursos públicos, só teríamos os problemas resolvidos em maio.”
Como são poucas as empresas a fornecer produtos específicos para todo o mundo, neste momento estão já a produzir em excesso e a armazenar para as encomendas que se esperam. Em Portugal, o Ministério da Saúde pediu que fosse feito um levantamento das necessidades de cada hospital para que as compras possam ser centralizadas. Além disso, o ministério já anunciou que vai reforçar a capacidade de realização dos testes — um dos exemplos é o da empresa ALS Controlvet, em Tondela, que terá capacidade para produzir 24 mil ‘kits’ por dia.
Cada um pode ajudar na vigilância da gripe — e da Covid-19
Como se sentiu na última semana? Teve febre, dores de garganta, nariz entupido, vómitos ou esteve perfeitamente bem? Foi ao médico ou teve de faltar ao trabalho? Esta são algumas das perguntas que a plataforma Gripenet faz às pessoas que participam nos seus inquéritos de forma voluntária e anónima. “A ideia é monitorizar a epidemia sazonal de gripe, utilizando a internet, com base na participação voluntária dos cidadãos”, refere o site do projeto que se iniciou em Portugal em 2005, inspirado no projeto holandês nascido dois anos antes.
Atualmente, a plataforma é gerida pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa), que também coordena o Programa Nacional de Vigilância da Gripe. São dois sistemas que funcionam de formas totalmente diferentes, mas que acabam por ter resultados muito semelhantes em termos da incidência da gripe, confirma ao Observador Ricardo Mexia, coordenador do Gripenet.
Em relação à última época de gripe e de recolha de dados, o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública acrescenta que a plataforma teve uma vantagem: mesmo deixando de haver consultas presenciais, as pessoas continuaram a participar no Gripenet e a reportar os sintomas. É certo que a partir do questionário só se pode dizer que a pessoa apresenta uma síndrome gripal, visto que para confirmar a gripe é preciso realizar uma análise que detete o vírus. Mas também é certo que a maior parte das vezes que nos deslocamos ao médico com esses sintomas também não fazemos o referido teste.
Margarida Tavares diz que a maior parte das pessoas que chegam ao hospital com sintomas de gripe não são testadas. São medicadas de acordo com os sintomas e se não inspirarem outros cuidados vão recuperar em casa. Mas tendo um serviço de urgência sentinela, cabe ao hospital recolher amostras de todos os doentes que têm alta dos internamentos e todas as pessoas que são internadas com pneumonia. Os doentes, no entanto, não chegam a conhecer os resultados das amostras enviadas para o Insa que servirão para monitorizar a atividade gripal numa determinada altura e região.
É aqui que Ricardo Mexia apresenta outra vantagem da plataforma Gripenet. “Em relação à gripe, conseguimos antecipar, em duas ou três semanas, o aumento da incidência.” E isto só com base nos inquéritos preenchidos pelas pessoas — cerca de dois mil participantes, que o coordenador do projeto espera ver aumentar este ano.
É provável que a próxima campanha se inicie mais cedo para acompanhar a época de gripe definida pela DGS. E este ano terá uma novidade: incluir perguntas relacionadas com a Covid-19. Ricardo Mexia diz, no entanto, que o consórcio europeu, ao qual pertence o Gripenet, ainda está a desenhar a próxima época e ainda não há uma definição concreta de como tudo isto será feito.
Afinal, o que está a fazer o Governo?
Portugal está a olhar com atenção para a Austrália, um país “altamente desenvolvido do ponto de vista da saúde, dos estudos e da vigilância epidemiológica que faz”, repetiu, depois de Marta Temido ter dito o mesmo, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, numa das conferências de imprensa relacionadas com a epidemia de Covid-19.
A razão é simples. Sendo um país do hemisfério sul, a Austrália está a atravessar os meses de outono/inverno, quando os picos de gripe são mais frequentes, ao mesmo tempo que lida com a pandemia de Covid-19. Ainda que a gripe ainda não se tenha feito sentir no país como seria esperado, Melbourne, a segunda maior cidade australiana, está a braços com uma epidemia que nem o confinamento que dura há mais de um mês conseguiu conter. Esta segunda-feira, o estado de Vitória registou a “queda mais significativa” no número de novas infeções, mas, por outro lado, bateu o recorde do número de mortos num só dia.
O que significa ter os olhos na Austrália? “Olhando para o hemisfério sul, podemos ver qual a estirpe da gripe que está a circular, podemos verificar como a população está a reagir e como é a junção da gripe sazonal com a Covid-19”, responde o gabinete de comunicação da DGS ao Observador. Basicamente, é o que se faz todos os anos em relação à gripe, “a exceção é que este ano estaremos também atentos à Covid-19”.
Olhar para a Austrália não é, portanto, nada de novo. Os países de cada hemisfério avaliam como decorreu o inverno e a época de gripe no hemisfério oposto para melhor se prepararem para o inverno que vão ter de seguida, explica Ricardo Mexia. Mas, naturalmente, também olham para o último inverno do seu próprio hemisfério. Uma das razões desta vigilância é verificar que estirpes do vírus da gripe foram mais frequentes e criar uma vacina a partir daí, acrescenta o médico de Saúde Pública.
Os resultados no hemisfério sul até podem parecer animadores. “Parece que não há vírus da gripe em circulação no hemisfério sul como seria de esperar. Parece que a gripe desapareceu”, diz Pasi Penttinen. A forma como os dados são apresentados pela Austrália leva o especialista do ECDC a pensar que “é uma possibilidade real que tenhamos pouca ou nenhuma gripe em circulação este ano” no hemisfério norte. Mas — e há sempre um mas — a verdade é que ainda não se sabe porque é que o vírus está a ter este comportamento, nem o que vai acontecer daqui a uns meses.
Não haver casos de gripe pode querer dizer que não há mesmo vírus da gripe a circular — e o uso de máscaras e distanciamento social podem ter contribuído para isso —, mas também pode querer dizer que as pessoas com gripe ou outras infeções respiratórias não estão a conseguir chegar aos cuidados de saúde por causa da pandemia de Covid-19 ou que os sistemas de vigilância estão tão assoberbados com o SARS-CoV-2 que não estão a conseguir detetar convenientemente o vírus da gripe, refere Pasi Penttinen.
Para o especialista isto coloca um problema acrescido: como nos vamos preparar para a época de gripe na Europa? Ou confiamos que vai ser tão suave que mal damos por ela ou preparamo-nos para situações mais ou menos graves como temos assistido, com uma taxa de mortalidade elevada durante o pico da gripe. Porque é que é uma escolha difícil? Porque os recursos são limitados e o que se investir na gripe não poderá ser investido da mesma maneira na Covid-19.
A escolha tem de ser feita agora, muitos países até já compraram as vacinas para a próxima época de gripe e os planos de vacinação e contingência têm de começar a ser preparados. Portugal, aliás, fez a compra mais cedo do que o normal, para garantir que as vacinas começam a chegar a partir do final de setembro, para serem dadas a partir do início de outubro, garantiu a DGS.
O ECDC e a DGS dizem ao Observador que ainda está em discussão o que deve constar do plano de inverno deste ano e como é que a pandemia de Covid-19 vai influenciar as opções feitas em relação à preparação da época de gripe. Se há um momento para preparar, esse momento é agora, defende António Diniz. O pneumologista confessa, no entanto, que estar ainda metido na primeira onda da pandemia não deixa muito tempo para se dedicar à preparação da época que se avizinha.