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[Este é o segundo de quatro artigos que compõem um ensaio sobre “A Religião Woke”, livro do filósofo francês Jean-François Braunstein publicado pela Guerra & Paz. O primeiro artigo pode ser lido aqui.]
Um casamento feito no Inferno
Braunstein considera que, dada a sua génese universitária, à religião woke “falta-lhe, evidentemente, o fôlego épico das grandes religiões que nasceram nas ruas e nos ajuntamentos populares” (pg. 41). É uma perspectiva discutível: a religião woke pode ter nascido na torre de marfim da academia, mas só ganhou as características e o ascendente que hoje tem “nas ruas e nos ajuntamentos populares” – não nas ruas físicas e nos ajuntamentos presenciais, mas nas “ruas” das redes sociais (ou “ágoras”, como gostam de chamar-lhes os tecnólatras) e nos “ajuntamentos” virtuais que nelas se formam. A turba digital não tem mãos nem pés que lhe permitam espancar, pontapear, pisotear, apedrejar, enforcar e queimar os alvos da sua fúria, mas é muito mais vasta e incontrolável do que qualquer ajuntamento popular da história, inflama-se muito mais rapidamente do que as multidões de carne e osso e oferece a todos e cada um dos seus elementos a possibilidade de espalhar atoardas e vilipêndios, causar distúrbios, intimidar pessoas e instituições e levar a cabo “linchamentos” sem correr risco físico, ficar sujeito a sanções legais, ou sofrer dano reputacional, e, para mais, sem deixar o conforto da poltrona, da espreguiçadeira na praia ou junto à piscina, ou da cadeira de gaming (para os mais novos).
O comediante britânico Andrew Doyle, sob o pseudónimo de Titania McGrath, uma personagem que criou no Twitter e que é uma síntese paródica dos estereótipos do activismo woke (apresenta-se como poetisa slam, não-binária, “polirracial” e “ecossexual”), resume assim os atractivos deste: “Qualquer pessoa pode ser um activista. Só tens de adicionar uma bandeira arco-íris no teu perfil de Facebook ou repreender um adulto que não entende o que significa ‘não-binário’, e já estás a tornar o mundo num lugar melhor. De facto, as redes sociais possibilitam que demonstremos o quanto somos perfeitos sem ter de fazer nada” (Woke: A guide to social justice, 2018).
Talvez o maior lapso da abrangente, erudita e equilibrada análise de Braunstein seja não dar a devida ênfase ao facto de a religião woke ser um fenómeno indissociável das redes sociais. Os departamentos universitários de estudos feministas, estudos de género e estudos étnicos segregavam teorias estultas e obnóxias há décadas, sem que estas conseguissem ganhar curso no mundo exterior; só o advento das redes sociais as converteu na avassaladora religião de massas que hoje conhecemos.
São seis os elementos básicos que mantêm as redes sociais a fervilhar 24 horas por dia, todos os dias do ano: a indignação, a demonstração de virtude (“virtue signalling”), o sentimento de superioridade moral (“self-righteousness”), o justicialismo, o consumo conspícuo e o culto das celebridades – os quatro primeiros fazem também parte da essência da religião woke, pelo que não é surpreendente que o número de fiéis do wokismo tenha acompanhado o crescimento do número de utilizadores das redes sociais. As redes sociais foram (e são) o perfeito caldo de cultura para a religião woke, que partilha com o cristianismo (pelo menos nalgumas fases da história) e o islamismo a natureza normativa e dogmática, a pulsão proselitista e a ambição expansionista e totalitária. Aos crentes no wokismo não lhes basta acreditar nos dogmas da sua religião, é preciso que todos os que o rodeiam os aceitem e observem; e não é para eles suficiente que as suas crenças rejam a sua vida interior, ambicionam que elas comandem todas as facetas da existência e todas as instâncias da sociedade.
O triunfo da indignação e o colapso da realidade
Em 1947, no livro Man for himself: An inquiry into the psychology of ethics, o filósofo germano-americano Erich Fromm alertava para o facto de “não haver outro fenómeno que contenha sentimentos tão destrutivos como a indignação moral, uma vez que esta permite que a inveja ou o ódio sejam expressos sob a capa da virtude”. Quando Fromm escreveu estas palavras, a propagação da indignação estava limitada no espaço e fazia-se com lentidão e os potenciais elementos da turba encontravam-se desconectados entre si e não tinham voz no espaço público; hoje, a indignação dá a volta ao planeta em segundos e todos os elementos da turba dispõem de um tribuna e estão ligados em rede. Como se isto não bastasse, o desenho das redes sociais favorece o anquilosamento do pensamento e o dogmatismo (duas características que, por sua vez, favorecem a indignação), como explica o ensaísta brasileiro Francisco Bosco no livro A vítima tem sempre razão? (2017):
“Há uma dinâmica em curso de formação de laços de identificação grupal em larga escala, propiciada pelas redes digitais. Esses laços produzem grandes recompensas narcísicas, pois estabelecem um sistema de apoio e aprovação recíproca. Produzem certezas inabaláveis, pois o mesmo discurso é ratificado por milhares de pessoas. Atenuam a angústia do individualismo moderno, pois se produz uma sensação psicológica de pertença” (ver Há turbas de linchamento à solta na Internet).
As redes sociais fazem com que o woke anónimo que, na solidão do seu quarto, debita comentários soezes e apartes escarninhos sobre assuntos dos quais pouco sabe, se imagine como membro de uma ordem de cavalaria global, uma irmandade de guerreiros que pugnam galhardamente contra a injustiça, seja qual for a forma que esta assuma e seja onde for que ela se manifeste.
Deve realçar-se que o favorecimento da indignação e do radicalismo nas redes sociais não é um resultado colateral e inadvertido da sua arquitectura e modo de funcionamento. Como escrevem David Lazer et al. no artigo “The science of fake news”, publicado em 2018 na revista Science, “o modelo de negócio [das redes sociais] assenta na monetização da atenção através da publicidade. Elas recorrem a modelos estatísticos para prever e maximizar o envolvimento dos utilizadores em função dos conteúdos”. E o que faz “maximizar o envolvimento dos utilizadores”? Responde uma personagem de Odeio a Internet (2016), de Jaret Kobek: “As nossas manifestações de indignação […] [dão] dinheiro a ganhar ao Mark Zuckerberg e aos investidores dele” (ver capítulo “A Internet para totós”, em “Odeio a Internet”: A rede vai salvar-nos ou ser o nosso fim?). Os donos das redes sociais costumam arvorar-se em benfeitores da humanidade e invocar a neutralidade da tecnologia, mas a verdade é que eles têm interesse em calibrar os seus algoritmos de forma a favorecer a indignação, pois esta é a base do seu “modelo de negócio”.
No artigo acima citado, David Lazer et al. concluem que, “mesmo quando a desinformação não altera as crenças das pessoas, pode, ainda assim, reforçar as suas falsas crenças, dar-lhe mais relevo, ou moldar a agenda mediática, com potenciais efeitos negativos para a sociedade”, o que nos leva a outro efeito da Internet (não abordado por Braunstein) que contribui decisivamente para a difusão da religião woke: o colapso da realidade. A proliferação da desinformação na Internet atingiu proporções tais que as antíteses verdade/mentira, realidade/percepção e factos/propaganda se esbateram, de forma que, seja o que for aquilo em que se acredite, encontrar-se-ão sempre elementos na galáxia digital que confirmem essa crença. E cada vez mais pessoas escolhem isolar-se dentro de uma “bolha” de redes sociais e de podcasts, onde todos os “factos”, todas as opiniões e todos os julgamentos estão em consonância com os seus preconceitos e fantasias. O que é irónico é que estas legiões de ciberalienados crêem que a Internet lhes trouxe liberdade e iluminação e os fez ascender a um patamar superior de consciência, quando, na realidade, ela os tornou prisioneiros dos algoritmos que controlam os seus news feeds e as suas redes sociais.
O policiamento do discurso
No mundo ocidental de hoje, as leis e disposições que discriminavam entre os “cidadãos-padrão” – o cis-heteropatriarcado branco – e os restantes grupos foram abolidas e todos os indivíduos têm (pelo menos no plano formal) os mesmos deveres e direitos perante o Estado e a sociedade, independentemente do sexo, género ou cor de pele. O facto de as manifestações concretas e frontais de discriminação e marginalização serem punidas pela lei e terem vindo a tornar-se menos frequentes, poderia ter levado os wokes ocidentais a direccionar o seu activismo para o racismo, homofobia, transfobia e sexismo que continuam a imperar na vida quotidiana de muitos países (nomeadamente nos de religião oficial islâmica) e que são activamente promovidos e postos em prática pela máquina do Estado e pelas instituições religiosas. A energia destes activistas poderia também dedicar-se a denunciar, no mundo ocidental, situações em que as mulheres continuam a receber, em funções similares, salários inferiores aos dos homens, ou em que as suas responsabilidades associadas ao cuidado de crianças e idosos são penalizadas pelas empresas para quem trabalham; ou em investigar as razões por que os membros de etnias minoritárias (africanos, magrebinos, ciganos, etc.) têm grande dificuldade em entrar no elevador social e têm presença rarefeita em cargos de chefia e decisão, nas empresas, na administração pública, na academia e na política. Poderiam ainda empenhar-se em fazer oposição cerrada a políticos e governantes cuja agenda inclui a reversão dos direitos arduamente conquistados por mulheres, comunidade LGBTQ+ e não-brancos. Em vez disso, o wokismo escolheu consagrar-se a uma missão menos trabalhosa e arriscada e mais confortável e emocionalmente gratificante: vigiar o que se diz por aí.
Uma das revoluções avassaladoras ocorridas no início do século XXI (e ainda em curso) diz respeito ao discurso no espaço público, que, estava restrito a governantes, líderes políticos, grandes empresários, jornalistas e opinadores convidados a exprimir-se nos mass media, e passou a acolher toda a população do planeta com uma ligação à Internet, num processo muitas vezes designado como “democratização”, mas que será mais justamente descrito como “massificação”, já que a democracia pressupõe regras, urbanidade e ponderação e nas redes sociais e nas “caixas de comentários” reinam as massas, desregradas, labruscas e impulsivas.
Há também que considerar que, para lá do acréscimo vertiginoso no número de pessoas “com voz”, se deu também uma mudança essencial nas circunstâncias do discurso: no tempo em que o acesso ao espaço público era condicionado, o “tempo de antena” tinha duração limitada, o discurso tendia a ter uma aura mais formal e os intervenientes tendiam a ser mais reflectidos e moderados. Na era das redes sociais, o “microfone” está aberto 24 horas por dia, 365 dias por ano, e a emissão de comentários, proclamações, remoques, opiniões, julgamentos, piadas e toda a sorte de borborigmos intelectuais faz-se sem qualquer tipo de preparação ou de peias, ao sabor do impulso do momento, gerando uma cacofonia ensurdecedora. A esmagadora maioria destes tagarelas não tem rigorosamente nada para oferecer ao mundo e entrega-se à produção incontinente de “conteúdos” pela simples razão de que “é o que toda a gente faz”, e não imitar a carneirada significa ser deixado para trás, cair no olvido, perder estatuto social (ver capítulos “De acordo com o hábito das ovelhas” e “Um grande buraco no centro da vida”, em A filosofia da Antiguidade tem alguma utilidade no século XXI?). Muitos egos ficam túrgidos com este novo poder que lhes foi conferido pelas redes sociais, não se dando conta que o facto de estarem constantemente a julgar tudo e todos perante uma vasta plateia, também os expõe ao julgamento dessa plateia.
A grande maioria dos logorreicos digitais são criaturas anónimas e apagadas e, logo, com insignificante capital reputacional, pelo que os eventuais dislates que cometam raramente têm consequências, embora não faltem casos de figuras irrelevantes que foram “trucidadas” por terem feito um simples “post” inconveniente que, por uma conjugação de acasos, despertou a atenção da turba – foi o caso de Justine Sacco, que, embora estivesse longe de ser uma celebridade e tivesse apenas 170 seguidores no Twitter, se viu apanhada, em Dezembro de 2013, num tornado de indignação à escala planetária, motivado por uma piada tola envolvendo África e SIDA, e acabou despedida da empresa onde trabalhava poucas horas após ter feito o infortunado tweet (ver capítulo introdutório de Há turbas de linchamento à solta na Internet). Mas quem enfrenta maiores riscos são as estrelas do desporto, os artistas famosos, as figuras do jet set, as personalidades televisivas, os políticos, os governantes, os empresários de sucesso e, mais recentemente, os influencers. Muitas destas “celebridades” ufanam-se das centenas de milhares ou dos milhões de seguidores que angariaram, mas tal significa também que todas as suas palavras, actos, gestos, cortes de cabelo e vestuário estão sujeitos a constante e implacável escrutínio.
É aqui que o wokismo desempenha um papel crucial, ao cultivar e promover o discurso “politicamente correcto” e a “linguagem inclusiva” e ao denunciar e perseguir o “discurso de ódio” (“hate speech”) e as “micro-agressões”. Para os wokes, a linguagem não é um instrumento de comunicação neutro, é o resultado de milénios de domínio pelo cis-heteropatriarcado branco, pelo que há que desconstruir o seu “androcentrismo”, o seu “heterocentrismo” e o seu “brancocentrismo”.
Ora, sendo o wokismo inerentemente dogmático, picuinhas, pouco dado a subtilezas e desprovido de sentido de humor, qualquer apreciação ou alusão, por inocente e tangencial que seja, a grupos “historicamente oprimidos e marginalizados” ou a membros desses grupos pode ser classificada como “discurso de ódio”, ou, pelo menos, como “micro-agressão”. A indignação nas redes sociais não dispõe (por enquanto) de qualquer poder formal, mas a pressão que exerce pode tornar-se insuportável e levar empresas e instituições a rescindir contrato ou qualquer outro tipo de laço com o alvo da fúria, ou forçar este a um abjecto acto de contrição, na esperança de salvar a sua reputação e a sua carreira, ou pode levar empresas a retirar apressadamente do mercado produtos denunciados como “ofensivos” e a fazer comunicados em que reafirmam o seu compromisso com a “inclusividade”, o seu respeito por todas as culturas minoritárias do planeta e o seu empenho no combate a qualquer tipo de discriminação.
Quando o wokismo ganha força de lei
Mas o que é realmente grave é quando a mentalidade puritana, self-righteous, obtusa, inflexível e persecutória do wokismo é adoptada por instituições oficiais e assume a forma de lei e é dotada de um tribunal e de mecanismos sancionatórios.
Um caso exemplar envolveu o futebolista português Bernardo Silva: em Setembro de 2019, Silva colocou no Instagram (onde tem 4 milhões de seguidores) um vídeo jocoso com Benjamin Mendy, seu amigo e, à data, seu colega no Manchester City, em que este envergava uma camisola negra, acompanhado pelo comentário de que Mendy – um francês de ascendência africana – estaria “completamente nu”. Apesar de este vídeo ter suscitado algumas acusações de racismo, levando Silva a removê-lo, poucos dias depois, o futebolista português voltou a brincar com o seu colega de equipa, desta vez no Twitter (onde tem 1.5 milhões de seguidores), colocando par a par uma foto de Mendy em criança e a mascote publicitária da marca de chocolates Conguito.
Desta vez a reacção dos “vigilantes” foi bem mais feroz e motivou a associação Kick It Out, que combate o racismo no futebol, a pedir a intervenção disciplinar da Football Association ou FA (Federação Inglesa de Futebol). Silva removeu de imediato o tweet (comentando “Hoje em dia, já nem se pode brincar com um amigo…”), mas não escapou a que a FA o punisse com um jogo de suspensão e uma multa de 50.000 libras. Não serviu de atenuante o facto de Mendy não só não ter apresentado queixa, como ter declarado não se ter sentido ofendido – aparentemente, quando as “brincadeiras” nas redes sociais envolvem grupos “historicamente oprimidos ou marginalizados”, tornam-se num “crime público”, não requerendo que a “vítima” apresente uma queixa formal.
O futebol tem um grave problema de racismo, mas não é este: senta-se nas bancadas e é conhecido como “claques”, algumas das quais são difíceis de distinguir de gangs de arruaceiros de extrema-direita. Mas o negócio/espectáculo ludopédico precisa do colorido e do alarido das claques e a justiça e os media costumam tratá-las com indulgência – veja-se, por exemplo, o que aconteceu no caso dos insultos e cânticos racistas dirigidos ao jogador francês de origem maliana Moussa Marega, por adeptos do Vitória de Guimarães, em 2020.
O vídeo e o tweet de Bernardo Silva não se distinguem dos milhões de inanidades que são vertidas nas redes sociais, a cada hora que passa, por pessoas que não têm nada para dizer, nem saberiam como dizê-lo, mas que se sentem compelidas a “produzir conteúdos” constantemente. Nas democracias liberais, dizer disparates, fazer piadas de mau gosto, revelar falta de tacto e produzir tweets e posts pueris e desajeitados não é punível por lei, pelo que a condenação de Bernardo Silva só pode ser entendida como um grave ataque à liberdade de expressão, tanto mais preocupante por ter ocorrido num país com as antigas e sólidas tradições democráticas do Reino Unido e por ter suscitado tão poucas e tão brandas reacções. A fraca contestação nada tem de surpreendente: o mundo do negócio/espectáculo ludopédico é regido pelo sectarismo e pela infantilidade e nele são as futilidades que merecem discussão apaixonada, enquanto os assuntos sérios são tratados com ligeireza.
Todavia, não é difícil imaginar que o rigoroso critério aplicado a Bernardo Silva possa, sob as crescentes pressões da religião woke, alastrar a outros sectores de actividade e a outras circunstâncias. Poderá um médico que faça uma piada similar no Twitter ser alvo de um processo disciplinar pela Ordem dos Médicos? Que futuro aguarda os humoristas, muitos dos quais, têm vivido, até agora, de troçar da aparência física, dos distúrbios da fala, da pronúncia, dos tiques, da postura, do mau-gosto no vestir e da bizarria dos cortes de cabelo (ou da ausência de cabelo) das figuras públicas? O uso de linguagem inclusiva poderá ser imposto pela lei e tornar-se-á o termo “todes” na única forma admissível de alguém se dirigir a um grupo sem correr o risco de ofender algum dos circunstantes? Passarão as pessoas a ter “corpos”, “corpas” e “corpes” consoante se identifiquem com o sexo masculino, o sexo feminino ou nenhum deles? Poderá tornar-se obrigatório tratar as pessoas trans pelos “pronomes” (“preferred gender pronouns”) que reivindiquem como seus?
Estas perguntas não são retóricas, nem bizantinas, nem fantasistas: no que respeita concretamente à última, em 2022 e 2023, os EUA assistiram a uma multiplicação de processos judiciais movidos por pais de crianças e adolescentes trans ou não-binários contra professores que se recusam a usar os “pronomes” assumidos pelos alunos; de processos judiciais movidos por pais de alunos contra escolas em que os seus filhos são tratados por esses “pronomes” sem consentimento ou conhecimento dos pais, o que consideram ser uma interferência no seu poder parental e uma “restrição da sua liberdade religiosa”; de processos judiciais movidos por professores contra escolas que querem obrigá-los a tratar os alunos pelos “pronomes”; e de processos judiciais movidos por professores contra escolas que os despedem ou não renovam o seu contrato por irem contra a política da escola ao tratarem os alunos pelos “pronomes” por estes eleitos.
Apropriação cultural e anacronismo moral
Um dos aspectos centrais do wokismo que praticamente não é contemplado em A religião woke é o conceito de “apropriação cultural”, que tem suscitado polémicas inflamadas, sobretudo nas universidades e nas redes sociais. Ao instaurar este conceito, os wokes assumem, mais uma vez, o papel de vigilantes do espaço mediático, que vistoriam zelosamente em busca de sinais de uso de elementos próprios de uma cultura minoritária e historicamente oprimida pela parte de membros das culturas maioritárias e com um historial de opressão e colonialismo (ver Há turbas de linchamento à solta na Internet e Música clássica: Uma história de branqueamento ou de mérito criativo?). No seu apertado escrutínio da “apropriação cultural”, que incide com especial sanha sobre peças de vestuário, penteados, adornos corporais, artes plásticas e música, a doutrina woke assume uma visão simplória, tacanha, hipercompartimentada e estática da história da humanidade e ignora que esta é uma interminável (e fecunda) sucessão de “apropriações” e reciclagens e fusões, em que têm estado envolvidas praticamente todas as culturas.
Finalmente, não pode deixar-se de fazer menção a outro aspecto relevante da religião woke que Braunstein não menciona: o seu “anacronismo moral”, isto é, a vocação para julgar o comportamento de figuras e instituições do passado à luz dos critérios morais do presente (ver Tintin no Tribunal Penal Internacional e Escravatura: Culpa, ressentimento e histórias mal contadas). O que não ocorre aos denunciantes e juízes do Tribunal do Santo Ofício Woke é que, estando os padrões morais em constante evolução (e movendo-se em direcção a um rigor, a uma rigidez, a uma pureza e a uma santimónia crescentes), qualquer afirmação ou fotografia sua que “postem” hoje no Facebook e que esteja conforme à presente definição de “correcção política”, poderá, ao ser repescada daqui a 20 anos, configurar uma atitude racista ou transfóbica de acordo com os padrões de 2043 e poderá torná-los no alvo da reprovação dos seus correligionários. Esta obsessão asinina em julgar o passado pelos padrões morais hoje vigentes foi lapidarmente resumida num aforismo do filósofo colombiano Nicolás Gómez Dávila: “Ninguém despreza tanto a imbecilidade de ontem quanto o imbecil de hoje”.
Quando o wokismo traz estatuto e dinheiro
Se, como afirma Joshua Mitchell em American awakening, a política é hoje um “evento religioso de natureza sacrificial” em que a vítima é “o homem branco e heterossexual” (ver O wokismo: A ideologia que nasceu na universidade para se espalhar pelo mundo), poderá parecer incongruente que seja também o homem branco e heterossexual, geralmente jovem, com estudos universitários e proveniente da classe média-alta, a empunhar a faca sacrificial.
O psicólogo Rob Henderson, citado por Braunstein, dilucida este aparente paradoxo no artigo “Luxury beliefs are the latest status symbol for rich Americans”, publicado no The New York Post, a 17.08.2019: “No passado, os americanos de classe superior ostentavam o seu estatuto social com artigos de luxo. Hoje fazem-no com crenças de luxo […]. Porém, à medida que as roupas da moda e outros bens se foram tornando mais acessíveis e baratos, o estatuto conferido pelos artigos de luxo foi declinando. As classes superiores encontraram uma solução astuta para o problema: crenças de luxo. Estas consistem em ideias e opiniões que conferem estatuto aos ricos por um custo muito reduzido”. Henderson dá vários exemplos de crenças de luxo – a de que todas as estruturas familiares têm idêntica validade e consequência, a de que a religião é irracional ou prejudicial, a de que as decisões individuais são pouco relevantes face às forças sociais aleatórias – e elege a crença no “privilégio branco” como a mais difícil de entender para ele, que nascera numa família branca de baixos rendimentos. O conceito de “privilégio branco”, central no credo woke, assume que, no mundo ocidental, todos os brancos gozam de uma posição privilegiada decorrente da cor da sua pele (“uma bagagem invisível de património que não foi obtido pelo esforço do próprio”) e quer os grupos étnicos não-brancos quer os brancos das classes superiores têm vindo a exercer pressão junto dos legisladores para que implementem disposições legais que anulem esse “privilégio” e tornem, supostamente, a sociedade mais igualitária – ainda que, nos EUA, onde o tema do “privilégio branco” é mais candente, “os americanos de origem asiática possuam mais habilitações académicas, aufiram rendimentos mais elevados e tenham maior esperança média de vida do que os brancos”. Ora, como sublinha Henderson, “quando se promulgam leis que combatem o privilégio branco, não são os brancos privilegiados que são prejudicados. A factura recai sobre os brancos pobres”.
Capitalismo woke
A inclinação dos jovens brancos de classe superior para aderirem ao movimento woke está na raiz de um aspecto que Braunstein apenas aflora e que é o crescente alinhamento com o wokismo pela parte das grandes empresas – sobretudo as mega-empresas americanas ligadas ao entretenimento e à Internet. O termo “capitalismo woke” terá surgido pela primeira vez em 2018, num artigo do analista político Ross Douthat, intitulado “The rise of woke capital” e publicado no The New York Times. O “capitalismo woke” – que, em parte, pode ser visto como um desenvolvimento do conceito de “responsabilidade social” – pode assumir diversas formas: 1) apoiando causas caras ao wokismo, através de tomadas de posição públicas ou de financiamento; 2) ameaçando corte de relações comerciais e de patrocínio com pessoas e entidades mal vistas pela comunidade woke ou que assumam posições “politicamente incorrectas”; 3) veiculando mensagens woke e alertando para questões valorizadas pela comunidade woke nas suas campanhas publicitárias e cuidando de fazer nestas representar de forma equitativa “grupos historicamente oprimidos” ou até mesmo de lhes atribuir o papel central; e 4) no caso das empresas que produzem e distribuem “conteúdos”, criando enredos que promovam temáticas woke e a ideologia woke e revendo e reformulando enredos clássicos de forma a expurgá-los de tudo o que possa ferir a susceptibilidade dos “grupos historicamente oprimidos” ou das pessoas “sensíveis” do nosso tempo.
[Trailer de A pequena sereia/The little mermaid (2023). Nesta versão em imagem real do filme de animação homónimo de 1989, segundo conto de Hans Christian Andersen, a Disney desviou-se do filme de animação e da descrição de Andersen (“a sua pele era tão branca e delicada como a pétala de rosa e os seus olhos eram tão azuis como o mais profundo dos mares”), atribuindo o papel principal à actriz afro-americana Halle Bailey, o que foi reprovado por sectores conservadores como uma concessão ao wokismo:]
O artigo de 2018 por Douthat denuncia o cinismo e calculismo que presidem à adesão ao wokismo das grandes empresas americanas nestes termos: “a disponibilidade de Tim Cook [CEO da Apple] para assumir o papel de combatente pela justiça social quando o alvo são alguns restaurantes no Indiana que não estão disponíveis para receber casamentos entre pessoas do mesmo sexo, não vai ao ponto de rever o relacionamento da Apple com os muitos países em que os direitos humanos estão mais ameaçados do que no Midwest [americano]”.
Na verdade, se as grandes empresas tecnológicas estivessem sinceramente empenhadas no combate pela justiça social, poderiam, além de rever as suas relações com autocracias como a China e a Arábia Saudita, tratar de remunerar decentemente os seus trabalhadores, limitar os vencimentos, bónus e regalias dos seus CEOs e deixar de recorrer ao “planeamento fiscal agressivo” para se furtarem às suas obrigações fiscais.
Matthew Continetti, jornalista e director de Estudos de Política Doméstica do American Enterprise Institute, alerta, no artigo “Woke capitalism is a sign of things to come”, publicado na revista Law & Liberty, a 26.11.2019, para a vitalidade do “capitalismo woke”: “As grandes empresas americanas, sempre em busca de fontes de receitas, não podem ignorar o facto de os jovens consumidores estarem a deslizar para a esquerda. A geração dos Millennials é politicamente moderada, quando comparada com a Geração Z. As ideologias de diversidade, igualdade, inclusão, interseccionalidade, fluidez de género, ambientalismo, secularismo, justiça racial e ‘discurso ofensivo’ [assaultive speech] tornaram-se no mainstream cultural […] O capitalismo woke não é uma moda passageira – é um sinal do que está para vir”.