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“Com um R(t) acima de 1, o aumento dos casos diários começa com pezinhos de lã, mas depois dispara”, ilustra Manuel do Carmo Gomes ao Observador. Quando finalmente é possível os efeitos do aumento do índice de transmissibilidade (Rt) num gráfico, há já muito que o aumento dos casos de infeção no país está a subir fortemente, ainda que muitas vezes discretamente. Os especialistas sabem-no e é por isso que as várias comissões técnicas reúnem-se semanalmente e comunicam às autoridades de saúde e decisores políticos o significado daquilo que leem nos dados.
A reunião do Infarmed, marcada para esta sexta-feira, às 15 horas, “é o culminar de todo o trabalho feito diariamente”, diz o epidemiologista que também faz parte de uma dessas comissões técnicas, a de vacinação, que aconselha a Direção-Geral de Saúde (DGS). Esta reunião permite apresentar uma descrição mais alargada da situação a um conjunto maior de intervenientes, nomeadamente dos partidos políticos com assento na Assembleia da República, diz o especialista que deixou o grupo em fevereiro, com críticas ao Governo.
A meio de outubro, precisamente no dia 15, o índice de transmissibilidade [R(t)] atingiu o valor de 1, segundo o boletim epidemiológico da DGS. Acima deste valor, explica Manuel do Carmo Gomes, o crescimento dos casos é exponencial, ou seja, cada pessoa infetada vai, em média, infetar mais do que uma pessoa, fazendo aumentar o número de casos. Mas tudo acontece com algum desfasamento, o que dificulta a análise para quem não está diariamente em cima dos dados.
A incidência cumulativa a 14 dias ultrapassou a linha vermelha no dia 10 de novembro, com 125,4 novos casos por 100 mil habitantes, menos de quatro semanas depois de o R(t) ter chegado a 1. O impacto nos internamentos em unidades de cuidados intensivos também já começa a notar-se, ainda que, geralmente, também tenham um desfasamento em relação ao número de infeções. Desde 9 de novembro, no espaço de uma semana (até esta terça, dia 16), houve mais 20 camas ocupadas nas UCI — de 23,5% do limiar crítico de camas ocupadas (60 em 255), passámos para 31,4% (80 camas ocupadas).
A reunião do Infarmed visa apresentar a situação epidemiológica no país, a evolução nas últimas semanas (ou desde 16 de setembro, quando se realizou a última destas reuniões dos especialistas) e propor que caminho devemos seguir a partir daqui. O Observador tentou conhecer as conclusões e propostas que serão apresentadas na sexta-feira, mas os especialistas deixaram as explicações para a sessão pública. Os decisores políticos, por sua vez, já foram adiantando algumas das medidas possíveis para antecipar os riscos que podem surgir na altura do Natal.
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O primeiro-ministro disse-o claramente na terça-feira, quando afirmou que não chega “ficar sentado à sombra da vacinação” e é preciso preparar o terreno para encaixar medidas preventivas, ainda que moderadas: “Devemos procurar agir já para chegar à altura do Natal com menos receios do que se não atuarmos já. Quanto mais tarde atuarmos, maiores serão os riscos”.
Já esta quarta-feira, o secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, admitiu ser necessário um “reforço acentuado” nas medidas contra a pandemia, e nomeou algumas delas, como o teletrabalho parcial, o uso de máscara obrigatório nos espaços fechados e em abertos com “grandes aglomerações”, a manutenção do distanciamento físico e “eventualmente uma testagem mais acentuada”. Mas sem estado de emergência, garantiu por sua vez o Presidente da República.
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Unânime entre os especialistas ouvidos pelo Observador (e em linha com o que têm dito os membros do Governo) é que, por enquanto, não precisaremos de medidas muito restritivas — nada ao nível do que se passa em outros países da Europa.
Não basta comparar o aumento do número de casos de infeção ou apreciar as medidas que estão a ser impostas em outros países, diz Manuel do Carmo Gomes. Primeiro, Portugal tem das maiores taxas de vacinação da Europa, o que, não resolvendo todos os problemas, diminui a carga nos hospitais. Depois, Portugal começou a desconfinar muito mais tarde que outros países — basta lembrar que, em meados de julho, o Reino Unido já celebrava o “Dia da Liberdade”. E, muito importante (segundo os especialistas ouvidos pelo Observador), Portugal manteve medidas que outros países aboliram completamente, como o uso de máscaras nos transportes públicos e alguns espaços fechados ou os dispensadores de álcool gel à porta de cada estabelecimento. Sendo que os portugueses mantiveram o uso de algumas dessas medidas mesmo quando e onde elas deixaram de ser obrigatórias.
O que podem os portugueses fazer para travar o avanço da pandemia?
A população pode sentir-se mais segura por estar vacinada e até estar cansada de usar máscara ou tomar outras medidas de precaução, mas será difícil ouvir alguém dizer que não se importa de ser infetado com Covid-19 e sofrer as consequências da doença. A vacinação contra a Covid-19 permite reduzir o número de internamentos e mortos com a doença e até ajuda a abrandar a transmissão, mas não chega. Tal como o plano de setembro previa: mais responsabilidade individual.
Ouvidos os especialistas, o Observador compila três estratégias para passar um Natal mais tranquilo e entrar num janeiro muito diferente do do ano passado. E quanto mais depressa se começar, melhor, defende o médico de Saúde Pública, Vasco Ricoca Peixoto, em entrevista ao Observador.
Dois testes por semana antes dos almoços de família
A história repete-se: queremos “salvar o Natal”. Este ano temos outras ferramentas, a começar pela vacina contra a Covid-19, mas o epidemiologista Manuel do Carmo Gomes destaca ainda outra: os testes rápidos de antigénio. Qualquer pessoa, em qualquer momento, pode fazer o seu próprio teste para verificar se está infetado ou não. “São bastante sensíveis quando a pessoa tem uma carga viral alta, quando está em situação de transmitir o vírus.”
Um pequeno aviso, no entanto: deve fazer outro teste, o segundo depois do primeiro, no espaço de dois ou três dias para reduzir a possibilidade de falsos negativos.
Explicamos. Quando uma pessoa contacta com o vírus não fica automaticamente infetada. Primeiro, o vírus tem de conseguir invadir as células humanas — o que os anticorpos e o sistema imunitário tentam evitar. Depois, tem de conseguir replicar-se dentro da célula. E, por fim, tem de sair das células para atacar outras células e sair do corpo do infetado para chegar a outras pessoas. Este processo leva tempo e só quando os vírus já se replicaram em quantidade suficiente podem ser detetados pelos testes rápidos de antigénio. Assim, mesmo que um primeiro teste dê negativo, fazer um segundo diminui a probabilidade de ter uma infeção em desenvolvimento que não foi possível detetar antes.
Em termos práticos o que é que isto significa? O epidemiologista sabe bem que com o aproximar da quadra natalícia e antes mesmo de entrarmos no mês de dezembro vamos começar a ter os típicos almoços e jantares de convívio. A sugestão de Carmo Gomes é que as pessoas façam um teste à terça e outro à sexta, por exemplo, se planearem estar com a família e amigos no fim de semana. E se o fim de semana se prolongar, nada como fazer mais um teste na segunda-feira.
Voltar às medidas individuais: máscaras bem colocadas, evitar espaços lotados, desinfetar as mãos
Mesmo vacinado e com testes negativos, é melhor não facilitar, aconselham os especialistas. “A pandemia ainda não acabou”, repetem. A vacina é uma boa barreira, mas não é uma porta blindada e há pessoas que continuam a ser infetadas, mesmo que só tenham sintomas ligeiros. Que vacina tomaram essas pessoas, quanto tempo antes da infeção e se morreram ou foram hospitalizados no âmbito dessa infeção, são dados que não se conhecem e que os médicos, cientistas, outros especialistas, e até os jornalistas, continuam a solicitar à DGS — sem sucesso. Sem eles é difícil perceber o impacto do vírus nas hospitalizações e nas mortes, por exemplo: pode morrer-se com Covid (mas de outras doenças) ou de Covid.
O esquema ideal, diz Manuel do Carmo Gomes, é “usar um conjunto de medidas que não impeçam a socialização, nem o funcionamento da economia”. O médico de Saúde Pública Vasco Ricoca Peixoto concorda: usar as medidas que têm mais benefícios em termos de controlo, mas que representam os menores custos (para as pessoas e para a economia).
O uso da máscara surge logo em primeiro lugar. Algo que os portugueses continuaram a fazer, ainda que em menor escala, mas que em muitos países da Europa mal se vê. Máscaras nos transportes públicos, mas também em todos os espaços fechados, especialmente no que têm muita gente, é a sugestão dos especialistas. E, como já antes se recomendava, a máscara tem de tapar o nariz e o queixo e ficar bem ajustada à cara — por baixo do queixo não conta.
Ter espaços bem arejados, com higienização frequente e com dispensadores de álcool gel são recomendações que nunca deixaram de ser dadas e que ainda se verificam em muitos espaços. Agora, os especialistas pedem também que se volte a diminuir a lotação de alguns espaços e a fiscalizar o cumprimento das medidas de prevenção — como a falta do uso de máscara durante os jogos de futebol, criticado pela diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, depois do último jogo da seleção nacional no Estádio da Luz.
Mais distanciamento físico em geral e menos pessoas também nos locais de trabalho, com desfasamento de horários, teletrabalho ou regimes de trabalho mistos (entre presencial e à distância), estão entre as recomendações de Henrique Silveira Oliveira, matemático do Instituto Superior Técnico, especializado em Sistemas Dinâmicos e que tem trabalhado em modelos epidemiológicos durante a pandemia.
“Todas as medidas [incluindo o teletrabalho] poderão estar em cima da mesa, dependendo daquilo que é a evolução da pandemia”, afirmou o secretário de Estado da Saúde, Diogo Serras Lopes. A mesma ideia também já tinha sido admitida pela ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, e foi agora reforçada pelo secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales.
Por fim, uma recomendação que é válida quer para uma infeção com coronavírus quer com qualquer vírus respiratório ou outro altamente contagioso: caso se sinta doente, fique em casa. “Ninguém deve ir trabalhar com sintomas, porque o que poderia parecer noutro tempo uma constipação ou uma gripe agora pode não ser e é preciso esse cuidado”, disse a ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, em entrevista à RTP.
“As pessoas devem pensar que mesmo o que parece uma gripe ou uma constipação pode ser Covid-19”, alerta Vasco Ricoca Peixoto, investigador na Escola Nacional de Saúde Pública. “As pessoas, mesmo que vacinadas, se tiverem tosse ou sintomas ligeiros não devem ir às discotecas ou a espaços com muitas pessoas”, onde a grande quantidade de contactos aumenta o risco de transmissão. O médico de Saúde Pública recomenda: “Faça um teste mesmo com sintomas ligeiros”. Porque os sintomas entre uma gripe, uma constipação ou a Covid-19 são agora impossíveis de diferenciar.
O mais urgente é acelerar a vacinação dos idosos
A diminuição do número de internamentos e mortes desde que se começou a campanha de vacinação são um sinal claro do papel que a vacina contra a Covid-19 tem na diminuição do risco de doença grave. Se olharmos para a quarta vaga, em julho, conta Manuel do Carmo Gomes, tivemos um terço da ocupação dos hospitais com doentes Covid-19 e um quarto das mortes que seriam de esperar se as pessoas não tivessem sido vacinadas (tendo em conta o número de casos e a variante em circulação).
Neste momento, a preocupação é com as pessoas mais vulneráveis, como os imunodeprimidos (que podem nem ter desenvolvido qualquer resposta imunitária) e os idosos, para os quais se tem verificado uma diminuição da imunidade a partir do quinto ou sexto mês da vacinação — daí a recomendação da dose de reforço. A crítica dos especialistas ouvidos pelo Observador é que o processo começou tarde, está a correr de forma lenta e desorganizada e que os idosos acima dos 65 anos, que tomaram a segunda dose há mais de seis meses, já deviam ter recebido esse reforço. Segundo o núcleo que coordena esta fase da campanha de vacinação, isso acontecerá até 19 de dezembro, mas não há metas, nem objetivos traçados como nas duas fases anteriores da vacinação.
Como o Observador já havia reportado, a Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 alertou logo a 29 de setembro sobre a necessidade de acelerar a dose de reforço nos idosos e, durante o mês de outubro, a equipa continuou a reforçar esses alertas junto da DGS que, por sua vez, terá feito chegar a informação ao Ministério da Saúde.
Henrique Silveira Oliveira diz que em agosto e setembro já se assistia a um aumento do número de mortes entre os mais idosos e que a letalidade acima dos 80 anos subiu de 0,7% em maio para 11% este mês. “A terceira dose tem de ser dada muito rapidamente”, alerta o matemático. “Se isso for feito, vamos ter alguns dias com picos mais altos, mas médias a sete dias serão mais baixas do que no ano passado.”
Também o último relatório com a “Monitorização das Linhas Vermelhas para a Covid-19”, elaborado pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge com a DGS, indicava que “o grupo etário com maior número de casos de Covid-19 internados em UCI era o dos 60 aos 79 anos (44 casos neste grupo etário a 10 de novembro), apresentando uma tendência crescente nas últimas semanas” — os restantes grupos etários mantém uma tendência estável.
As possibilidades estão apresentadas e, na sexta-feira, ouviremos a opinião de outros especialistas, mas Vasco Ricoca Peixoto não tem dúvidas: “Se não mudarmos o caminho em que estamos — e temos oportunidade de mudar um bocadinho esse rumo —, corremos o risco de voltar a ter medidas que ninguém quer”.
Editado às 12h de 18 de novembro: clarificada citação inicial de Manuel do Carmos Gomes.