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The Weeknd: à procura da canção pop perfeita

É provável que nenhum álbum tenha sintetizado tão bem as contradições de uma das maiores estrelas pop do momento como o novo "Dawn FM": poucos anjos, muitos demónios e canções estudadas ao milímetro.

Uma das formas que um músico tem de asseverar que atingiu estatuto de estrela é a quantidade de cameos que faz no cinema, em que se desempenha a si próprio. Aconteceu a The Weeknd quando participou no extraordinário “Uncut Gems”, dos irmãos Safdie, de quem é fã e amigo, uma trivia capaz de surpreender os mais inveterados cinéfilos e os melómanos de suposto bom gosto.

O que terá acontecido na vida de Abel Makkonen Tesfaye para, aos 31 anos, chegar a este ponto em que um novo disco, Dawn FM, lançado sem alarido numa sexta-feira (7 de janeiro) como as outras, é encarado com expectativa máxima, isto já depois de uma aparição no intervalo do Super Bowl (o ano passado), atividade que por norma está reservada às super-estrelas?

The Weeknd, relembre-se, começou por se fazer notado com uma mixtape, House of Baloons, em que o momento alto era a revisão do tema com o mesmo nome, escrito por Siouxsee. (Bom, isto não era bem assim: “House of Baloons / Glass table girls”, a canção, partia de Siouxsee antes de se entregar a um r’n’b eletrónico negro e doentio, capaz de fazer Frank Ocean parar de sentir emoções e tornar-se cínico e drogado.)

Não é fácil equilibrar a imagem – e prática – de solitário sem coração, dotado de um talento incomensurável para escrever o tipo de canções que não se pode mostrar à avó e, simultaneamente, ser aquele que sobe a um palco televisionado para 94 milhões de pessoas e cantar o tipo de canções que – mais uma vez – não se pode mostrar à avó, mas que ela ouve e gosta.

O seu universo, já aí determinado com exatidão, era o da lascívia ao pequeno-almoço, drogas ao almoço e perversão sobre cama de nenhuma redução de comprimidos ao jantar – como é que alguém com estas características alcança o estatuto de figura nacional, entertainer do momento mais familiar da vida mundana americana, o Superbowl, o tipo que se ouve entre coxas de frango, touchdowns e capacetes a chocar com a força de seis linhas de coca tamanho-elefante?

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Houve indicações de que isto estava acontecer: algumas canções de Beauty Behind the Madness (o seu disco de 2015) apareceram na banda-sonora de “50 Sombras de Grey”, o filme que tentou ensinar mau sexo a fingir que é maroto a porteiros e sopeiras; olhem com mais atenção para as canções e não é mau sexo a fingir que é maroto que encontramos ali – é devassidão, uma personalidade dependente, gente à procura de uma linha, uma trancada, para esquecer momentaneamente a realidade da vida. Vista por este prisma, a sua inclusão em “Uncut Gems” faz todo o sentido.

Kiss Land, o seu primeiro álbum “a sério” (de 2013), ficou longe do hype criado pela mixtape – mas quando chegou a 2015, Tesfaye estava a associar-se a gente como Max Martin, que escreveu êxitos para Britney Spears, entre muitas outras figuras iconográficas, e parece possuir o bilhete para o topo das tabelas de vendas. Martin co-escreveu “Can’t Feel My Face”, que se tornou o primeiro grande êxito de The Weeknd (cujo verdadeiro nome, caso ainda não se tenham percebido, é Abel Makkonen Tesfaye), mantendo o seu universo lírico (o protagonista da canção não consegue sentir a cara porque meteu demasiadas drogas), mas ao mesmo tempo a tornou acessível a toda a gente – ou, pelo menos, acessível naquela combinação de r’n’b, electro e pop que a América privilegia na última década.

[“Take My Breath”, primeiro single do novo “Dawn FM”:]

O que torna Tesfaye uma espécie de mistério: ele é bastante capaz de, por si, fazer canções misteriosas, experimentais, que cruzam vários géneros (o pós-punk, o r’n’b meloso, a eletrónica escura), abordar temas difíceis (a dificuldade de lidar com emoções, a dificuldade de comunicar, as dependências) e, ao mesmo tempo, não tem pejo em ser o mais fácil melodicamente possível, o que de certa maneira o torna na versão masculina de Britney Spears.

Não é fácil equilibrar a imagem – e prática – de solitário sem coração, dotado de um talento incomensurável para escrever o tipo de canções que não se pode mostrar à avó e, simultaneamente, ser aquele que sobe a um palco televisionado para 94 milhões de pessoas e cantar o tipo de canções que – mais uma vez – não se pode mostrar à avó, mas que ela ouve e gosta, sem se aperceber do que está a acontecer.

Quando isto aconteceu não sei precisar – mas ali por 2014 cada vez que entrava num daqueles cafés que ainda estão ligados nos VH1 deste mundo (algo que a CMTV tratou de eliminar), The Weeknd aparecia sempre. Na altura, à conta de um dueto em “Love Me Harder”, de Ariana Grande – que o terá introduzido a uma audiência maior que a de janados, promíscuos, raparigas com vestidos prateados e melómanos bem comportados que vivem nas canções o que não vivem na vida, e que até então o seguiam.

"Dawn FM" não está livre de falhas, mas é suficientemente esquisito, inquieto e cheio de curvas apertadas para vir a ser um dos discos mais misteriosos e inclassificáveis de 2022

A colocação de “Earned it” em 50 Sombras de Grey, com a sua voz sob um fundo orquestral com a subtileza de uma manga larga numa camisa de pirata, terá sido o momento em que o drogado devasso experimental se tornou bibelô para pôr em cima da cómoda da avó (sem ela perceber que é um dildo).

A história da pop está cheia destes momentos: rapaz cheio de talento faz música incomum em que confessa os seus pecados, rapaz cheio de talento não vende, rapaz cheio de talento contrata uma equipa para gerir a sua carreira, rapaz cheio de talento guarda 3 ou 4 canções por disco para produtores que sabem como se chega ao topo, rapaz enriquece e começa a cantar sobre a dura vida de ser rico e incompreendido e tomar drogas, já não para esquecer a dor da infância, mas a dor de não ser compreendido.

The Weeknd precisou da ajuda dos Max Martins deste mundo, de agentes para colocarem as suas canções nos filmes da moda para se tornar aquilo a que os americanos chamam um household name – um dos mais esquisitos household names, mas ainda assim um. Nada disto é particularmente errado e quem não gostaria de ter uma casa com piscina?, mas torna a sua produção menos homogénea, menos coerente (o que também não é obrigatoriamente mau – e num certo sentido o torna menos previsível).

[o vídeo de “Sacrifice”:]

É que nem se pode dizer que em Beauty Behind the Madness The Weeknd tenha facilitado muito: a sua habitual tendência para misturar géneros (o pós-punk, o shoegaze, o r’n’b, a eletrónica escura) estava lá, as letras não eram propriamente indicadas para sub-18 (ou mesmo sub-40), a sua visão do mundo não era alegre e otimista e testes indicam que o grau de decadência permanecia alto.

Era uma decadência estilizada, um negrume que por vezes soava de fancaria, se quiserem: uma melancolia aceitável, mas ainda assim era decadência, negrume e melancolia. Talvez a América simplesmente tenha aceite Tesfaye como o tio drogado, sempre de cama em cama porque é infeliz no amor – e talvez celebrá-lo não seja mais do que aceitar que todos temos alguém assim na família.

Mas é provável que nenhum disco tenha sintetizado de forma tão óbvia as contradições de The Weeknd como Dawn FM – e para aferir disso basta olhar para a lista de produtores, que inclui Max Martin e Oneohtrix Point Never, o segundo dos quais um dos músicos mais experimentais e inacessíveis às massas que por aí andam. É como se ele quisesse provar que as franjas e o miolo se tocam mais do que se pensa.

É provável que nenhum disco tenha sintetizado de forma tão óbvia as contradições de The Weeknd como "Dawn FM" – e para aferir disso basta olhar para a lista de produtores, que inclui Max Martin e Oneohtrix Point Never, o segundo dos quais um dos músicos mais experimentais e inacessíveis às massas que por aí andam. É como se ele quisesse provar que as franjas e o miolo se tocam mais do que se pensa.

Dawn FM é uma espécie de disco conceptual – funciona como uma rádio à antiga, que se ouve enquanto se está parado no trânsito, mas uma rádio particular, que passa sobretudo uma espécie de disco-sound anfetaminado e atirado para o século XXI; Dawn FM é uma festa, mas uma festa deprimente, em que se sabe que no final restará apenas garrafas partidas e confeti pelo chão. Em “Gasoline”, logo o segundo tema do disco, ele canta “It’s 5 a.m. (…) I know there’s nothing after this”, o tipo de coisas que definitivamente não queremos mostrar à nossa avó sob pena de ela nos mandar agasalhar.

É difícil discordar do apelo de “Sacrifice” (que é o mais aproximado de uma colaboração entre os Daft Punk e Adele que alguma vez existiu), uma das melhores faixas de um disco que é tão mais saboroso quanto mais esquisito, o que equivale a para aí metade do álbum – a outra metade é constituída por hinos eletrónicos dançáveis, com os beats tão fortes, tão pouco subtis e tão à frente na mistura, que por vezes parece estarmos a assistir a um documentário sobre demolição.

Nem sempre se sabe o que pensar: tenho dúvidas sobre “Out of time”, uma espécie de balada, que não ficaria mal no catálogo clássico da Motown, cantado pelas Supremes ou por Diana Ross a solo, com um belíssimo arranjo de flautas, sim, flautas. “Here we go… Again” conta com Tyler the Creator e novamente avança pelo reino das baladas clássicas, mas que não soa certinha – vou incluir “Out of time” e “Here we go… Again” na categoria de growers, aquelas cantigas que precisam de mais tempo, porque me parece claro que são suficientemente esquisitas para só ganharem com o tempo e mais escutas.

[ouça “Dawn FM” na íntegra através do Youtube:]

Ao longo do disco há uma espécie de interlúdios, que incluem (entre outros) Quincy Jones a falar sobre os seus problemas de infância (como a mãe a ser institucionalizada por demência) e de como fez o melhor que podia como pai, embora não soubesse o que estava a fazer – e honestamente isto soa a The Weeknd a querer dizer-nos algo sobre si próprio através de alguém respeitável; soa a The Weeknd a admitir que ele próprio tem traumas; como se não bastasse “Out of time”, a canção que se segue ao interlúdio de Quincy, começa com Weeknd a cantar (com voz de Michael Jackson):

“The last few months I’ve working on myself, baby
there’s so much trauma in my life
I’ve been so cold to the ones that love me best
I’ve only just come to realize”

Dawn FM não está livre de falhas, mas é suficientemente esquisito, inquieto e cheio de curvas apertadas para vir a ser um dos discos mais misteriosos e inclassificáveis de 2022. Nada mau para quem está habituado a entreter 92 milhões de pessoas no intervalo de capacetes e chumaços a chocar.

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