Passava o dia entre as aulas de português e de costura no Centro Ismaili, numa comunidade que lhe estendeu a mão assim que chegou a Portugal — e antes, até, porque foi através de um acordo assinado entre o Estado português e a Grécia, com a colaboração da Fundação Aga Khan, que, em 2021, Lisboa se tornou para Abdul Bashir a última paragem de uma fuga que começou a mais de 8.600 km de distância, em Cabul, meia dúzia de anos antes. Entre as aulas, a perspetiva de um futuro que dificilmente teria imaginado para a sua vida e a educação dos filhos, Abdul queria mais. Numa das contas pessoais que criou na rede social Linkedin, já em Lisboa, a mensagem era clara: estava “à procura” de emprego — disponibilidade imediata.
“Versátil, proativo e profissional.” É assim que se apresenta, num dos perfis profissionais que criou, o homem que esta terça-feira assassinou duas mulheres, à facada, no Centro Ismaili. Abdul utilizava aquela rede social para mostrar a experiência profissional que acumulou quando trabalhava no Afeganistão, com passagens por empresas internacionais na área das telecomunicações. Já em Portugal, depois de passar cerca de dois anos no campo de refugiados de Kara Tepe, na ilha de Lesbos, onde perdeu a mulher num incêndio. Abdul lançava a sua página, com uma fotografia em que surge com o mar por trás. E a marca de água por cima: “Open to work.”
“Técnico especializado com bacharelato em telecomunicações, experiência em instalação e manutenção de equipamentos de telecomunicações”, escreveu Abdul Bashir num português praticamente perfeito na contas criada em 2014 e que foi atualizada pela última vez há seis meses. A segunda conta pessoal do afegão na mesma rede social foi criada em 2022, quando já se encontraria em território nacional com estatuto de refugiado atribuído.
Entre a criação da primeira e da segunda contas profissionais, a vida de Abdul deu uma volta radical. Em 2019, estavam em curso as negociações entre os Estados Unidos e os líderes talibã para a retirada total de militares norte-americanos do país. As primeiras forças dos EUA tinham-se instalado ali há mais de uma década e meia. Mas o processo de saída estava prestes a ficar concluído: o último combatente norte-americano sairia no final de agosto de 2020. Menos de um ano depois, ficaria eternizada a imagem de um grupo de líderes talibã sentados no gabinete presidencial, em Cabul. O grupo tinha retomado o poder e, na marcha em direção à capital, o conflito no terreno fez disparar o número de mortos civis. Também como imagem desse regresso ao poder dos radicais islâmicos, milhares de afegãos rumaram ao aeroporto da capital numa tentativa desesperada de abandonar o país.
A história da fotografia de 640 afegãos amontoados dentro de um avião de carga
Abdul Bashir e a mulher terão decidido fugir muito antes desse momento que atirou o Afeganistão para uma realidade semelhante há que definia o país 20 anos antes. Como milhares de outros afegãos que fugiam como podiam, estava instalado o receio que uma nova convulsão social e da imposição de uma série de medidas restritivas para as mulheres afegãs. Pelo menos até 2016, Abdul estudou e trabalhou precisamente na região de Cabul. Com 15 anos, começou a frequentar o Instituto Maiwand em 2009, uma instituição de ensino privado no Afeganistão onde concluiu (em 2013) um curso técnico na área das telecomunicações.
Até 2016, é possível reconstituir alguns dos detalhes da vida profissional de Abdul Bashir. Mas, a partir daquele ano, não se sabe por onde passou e onde trabalhou (se é que conseguiu manter algum emprego). Esse hiato de informação dura até meados de 2019, altura em que terá chegado ao campo de refugiados de Lesbos, na Grécia, e onde terá ficado cerca de dois anos antes de embarcar para Lisboa, em meados de outubro de 2021.
ZTE e Huawei: a experiência do funcionário das multinacionais chinesas
Segundo as informações que publicou numa das contas do Linkedin, a vida profissional de Abdul Bashir começou em 2012, com 18 anos, quando integra a subsidiária afegã da multinacional chinesa de telecomunicações ZTE. Abdul enumerou as funções que desempenhava enquanto técnico de comunicações, sendo o responsável por fazer o levantamento das “necessidades” de pré-instalação, instalar “equipamentos”, assegurar a transferência dos mesmos e pela “configuração de hardware e software”.
Saiu da ZTE em 2014, o mesmo ano em que começou a trabalhar na subsidiária afegã da multinacional chinesa Huawei. E tem o primeiro filho, atualmente com nove anos. Abdul Bashir era um dos responsáveis pela “instalação de baterias e módulos”, além de verificar o estado dos “alarmes de incêndio, temperatura, entrada e água”.
Em setembro de 2016, o técnico de telecomunicações sai da Huawei, o último posto de trabalho que é conhecido. Não é claro exatamente em que momento Abdul Bashir saiu do Afeganistão, mas foi naquele ano que os talibã iniciariam uma nova ofensiva no país, a que chamaram Omari. No entanto, após alguns combates perto de Cabul, os insurgentes fundamentalistas acabaram por ser derrotados e a revolta foi, por conseguinte, abafada. Quatro anos depois, já com a saída dos militares norte-americanos concretizada, os talibãs recuperam o poder.
A ida para Lesbos: o incêndio que lhe matou a mulher
A vida de Abdul Bashir é uma incógnita durante três anos. Sabe-se apenas que o homem de nacionalidade afegã terá chegado a um campo de refugiados em Lesbos em 2019. É o próprio que o revela no vídeo publicado a 13 de setembro de 2020 na conta de Twitter da organização espanhola Red SOS refugiados.
O técnico de telecomunicações conta que a companheira morreu num incêndio, nove meses antes da publicação do vídeo. A morte da mulher ocorreu, assim, em dezembro de 2019. Além disso, Abdul Bashir confidencia que o incêndio ocorreu “quatro a seis meses” depois da chegada ao campo de refugiados em Lesbos. Isto indicia que o homem de nacionalidade afegã terá chegado à Grécia com a família entre junho e agosto de 2019.
Nazanin, a companheira de Abdul Bashir, morreu num incêndio que ocorreu a 5 de dezembro de 2019 no campo de refugiados de Kara Tepe, em Lesbos, ao que apurou o Expresso, que conseguiu chegar à fala com uma refugiada que conviveu com o casal. Às 2 da manhã daquela quinta-feira, um incêndio deflagrou na casa de Abdul, que ainda conseguiu tirar os filhos do interior da habitação. No entanto, o afegão desmaiou e acabou por ficar sem sentidos.
O corpo carbonizado de Nazanin foi encontrado quando os bombeiros conseguiram extinguir o incêndio, que terá sido provocado por uma fuga de gás. Em comparação com o de Moria, o campo de refugiados de Kara Tepe tinha condições substancialmente melhores. Existiam, ainda assim, várias queixas da falta de condições de local. Em dezembro de 2020, em plena pandemia da Covid-19, o na altura ministro alemão da Cooperação Económica e Desenvolvimento, Gerd Müller, criticava a insalubridade do campo.
“As condições são péssimas”, declarou o antigo ministro alemão citado pela Deutsche Welle, sublinhando que os Médicos Sem Fronteiras tiveram de levar a cabo uma campanha de vacinação contra o tétano no campo de refugiados de Kara Tepe naquele inverno, porque os “bebés estavam a ser mordidos por ratos”.
Seja pela falta de condições, seja pela revolta dos migrantes resultantes disso mesmo, deflagravam vários incêndios nestes locais. Em setembro de 2020, um dos maiores fogos destruiu por completo o campo de refugiados de Moria, em Lesbos, desalojando cerca de 13 mil pessoas. Muitos deles foram transferidos para Kara Tepe.
Dois anos antes do grande incêndio, o ex-ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, esteve no campo de refugiados de Moria. Na visita, o antigo governante mostrou disponibilidade ao governo grego para receber migrantes em Portugal. Em março de 2019, os dois países assinam um acordo que previa o acolhimento de 100 refugiados ao abrigo de um projeto piloto. Os últimos 43 chegaram em outubro de 2021 e, nesse grupo, quatro refugiados seriam Abdul Bashir e os três filhos.
Apesar de a situação dos campos de migrantes ser complexa, o cenário ainda se agravou com a chegada de mais refugiados afegãos à Europa. Em agosto de 2021, após várias tentativas, os talibãs conseguiram controlar as instituições governamentais do Afeganistão e derrubaram o regime vigente, originando a fuga de milhares de pessoas do país.
Sobre a passagem de Abdul Bashir pelo campo de migrantes e as dificuldades que enfrentou, o atual ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, comentou, na terça-feira, que o homem estava “muito traumatizado”, não existindo, no entanto, “qualquer sinalização que justificasse cuidados de segurança”.
Tendo obtido o estatuto de refugiado ainda no campo de refugiados, Abdul Bashir e a família arranjaram, entretanto, uma casa em Mitilene, a capital de Lesbos, antes de virem para Portugal, em outubro de 2021. Durante uma semana, os filhos ainda frequentaram a escola. “O início do ano letivo 2021-2022 é um bom presságio para os meus queridos filhos e desejo um futuro próspero para cada um de vocês”, escreveu o afegão no Facebook, numa publicação a que o Expresso teve acesso.
A chegada a Portugal: da ajuda para refazer a vida à manhã em que matou duas mulheres
Após o pedido de ajuda à organização espanhola, e depois de ter passado pelo menos dois anos no campo de refugiados, Abdul Bashir e os filhos aterraram em Portugal em outubro de 2021. No dia 17 desse mês, chegaram a Lisboa 40 pessoas beneficiárias e três requerentes de proteção internacional, resultado “do trabalho e empenho conjunto do Governo português” com o centro Ismaili — onde ocorreu o ataque do início desta semana — e “a Rede Aga Khan para o Desenvolvimento”.
Depois de chegar a Portugal, foi precisamente o Centro Ismaili que organizou o acolhimento de Abdul Bashir e dos filhos. A família tinha a casa paga pela comunidade e Abdul passava boa parte do dia no centro, onde tinha aulas de português e de costura. Além do apoio na formação e alojamento, o afegão também recebia alimentação.
Vivendo na zona de Odivelas, os vizinhos e os trabalhadores das lojas perto da casa do afegão descrevem ao Correio da Manhã que Abdul Bashir era uma pessoa “serena”, “pacata” e que “estava sempre com os filhos”.
Não obstante, o homem de 28 anos não demonstrava grande interesse pelas aulas que frequentava. Ao Jornal de Notícias, Nizam Mirzada, irmão de uma jovem afegã que estava numa aula e era colega do agressor, referiu que Abdul Bashir não “queria participar nos trabalhos de grupos” e chegou a insultar “os colegas”. “Não queria estar em Portugal, não gostava de ter aulas, que são obrigatórias para os refugiados.”
Talvez esse fosse um dos motivos que ajudam a explicar o interesse do refugiado afegão em encontrar emprego. “Estou a candidatar-me agora”, escreveu numa das suas contas do Linkedin. Sabe-se que, enquanto estava em Portugal, Abdul Bashir tentou mudar-se para a Alemanha, mas não conseguiu entrar em território alemão, porque — terão justificado as autoridades — esse não era o país que lhe garantiu o asilo. O autor do ataque ao Centro Ismaili tinha também viagem marcada para Zurique, na Suíça, para a última quarta-feira.
Abdul chegou a Portugal com feridas abertas e a calma do Centro Ismaili ruiu quando pegou numa faca
Alegadamente, enquanto estava em Portugal, Abdul Bashir estaria também a receber ameaças do atual regime afegão. À CNN Portugal, o presidente da comunidade afegã, Omer Taheri, salientou esta quarta-feira que o alegado autor do ataque ao Centro Ismali estava a ser ameaçado pelos talibãs com o objetivo de o fazer regressar ao Afeganistão.
“Ele recebia chamadas do Afeganistão em que os talibãs ameaçavam os pais dele e lhe diziam para voltar para lá”, indicou Omer Taheri, ressalvando, contudo, que não conhece pessoalmente o homem de nacionalidade afegã. “Recebíamos chamadas sobre ele, a indicar as preocupações dele, que está sozinho, sem a esposa, que tem os três filhos e que não se sabe como lidar com esta situação.”
Para já, ainda não são conhecidas ao certo as motivações do ataque. A Polícia Judiciária descarta, para já, que se tenha tratado de um ataque terrorista. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, levantou a possibilidade de estar ligado ao exercício do poder parental, ainda que os três filhos menores de Abdul Bashir não estivessem sinalizados pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ).
Em cima da mesa, também está a possibilidade de existir um crime com motivos passionais, relacionado com o interesse amoroso do afegão por uma das vítimas, Mariana Jadaugy, ao que apurou a CNN Portugal. Abdul Bashir teria desenvolvido uma obsessão amorosa pela jovem de 24 anos, que desempenhava funções de assistente social na fundação Focus — responsável pelo acolhimento dos refugiados.
Para além de Mariana Jadaugy, a segunda vítima mortal estava a tratar do processo de integração do homem de nacionalidade afegã em Portugal. Chamava-se Farana Sadrudin e era a gerente e a principal responsável pela fundação Focus Europa.
Antes do ataque, o futuro de Adbul Bashir estava mais ou menos traçado. Ao Observador, fonte conhecedora das dinâmicas do Centro Ismaili contou que o afegão deveria mudar-se para a região Norte do país, onde ia viver após aprender a costurar, trabalhando numa fábrica de confeção. Esta terça-feira, o afegão decidiu trocar voltas ao destino — e está agora internado no Hospital Curry Cabral, depois de ter sido imobilizado com um tiro no pé pelos agentes da PSP que responderam à chamada de um ataque com faca no Centro Ismaili. Quando tiver alta hospitalar, Abdul será presente a juiz para responder pelas mortes de Mariana e Farana.