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“Ficamos triste por termos chegado a este ponto com alguém que admirámos profundamente.” A frase é da OpenAI e surge quase no fim da publicação onde a dona do ChatGPT se defende do processo movido por Elon Musk, devido à alegada alteração do propósito da startup. O uso do verbo admirar no pretérito perfeito não é inocente – dá ênfase a uma relação que começou por ser de parceria e se transformou numa assumida rivalidade.
Musk avançou no início de março com um processo contra a OpenAI e os executivos Sam Altman, CEO, e Greg Brockman, o presidente da OpenAI. O magnata, que participou na fundação da empresa e avançou milhões para financiar a investigação, alega que a OpenAI se desviou do seu propósito de desenvolver inteligência artificial (IA) para o benefício da Humanidade. Aos olhos de Musk, a OpenAI está agora orientada para os lucros, principalmente depois da parceria com a Microsoft. Considera ainda que a companhia não está a ser transparente em relação à investigação e aos modelos de IA que tem estado a lançar no mercado.
O processo é só mais um episódio no historial de rivalidade entre Musk e a OpenAI, que se estima que tenha uma avaliação de 80 mil milhões de dólares, cerca de 73 mil milhões de euros.
Desde que se afastou da OpenAI, em 2018, Musk tem criticado publicamente a empresa. “A OpenAI devia ser mais aberta”, disse em 2020, em resposta a um artigo da revista MIT, que relatava a cultura de secretismo na startup. Mais recentemente, o dono do X demonstrou que não gosta de toda a atenção que a OpenAI conquistou desde o lançamento do ChatGPT, em novembro de 2022. Os anúncios cada vez menos intervalados de modelos de IA mais avançados têm servido de combustível ao empresário para criticar a companhia.
Em julho do ano passado, implementou mesmo limites diários para leitura de publicações no X, antigo Twitter, justificando a decisão com “as enormes quantidades de dados” recolhidas pelas empresas de IA. “Estávamos a ter tanta extração de dados que o serviço estava a ficar degradado para os nossos utilizadores habituais.” E, mesmo sem nomear a OpenAI, passou a mensagem: “É bastante irritante precisar de ter uma série de servidores online por uma questão de emergência só para facilitar uma avaliação astronómica de uma startup de IA”, escreveu.
Twitter impõe temporariamente limites diários para leitura de publicações
Musk apresentou no processo emails trocados na altura da criação da OpenAI, em 2015, que deixam transparecer as reservas em relação à IA da Google. A resposta dos executivos da OpenAI demorou apenas alguns dias e tentou mostrar outra parte da história e algumas contradições do empresário. Na defesa da OpenAI, há emails atribuídos a Musk em que haveria concordância com a “transição para uma empresa que ambiciona lucro” – uma contradição em relação ao tema central do processo – ou ainda uma alegada sugestão de fusão com a Tesla para garantir que a startup tinha fundos suficientes.
[Já saiu o segundo episódio de “Operação Papagaio” , o novo podcast plus do Observador com o plano mais louco para derrubar Salazar e que esteve escondido nos arquivos da PIDE 64 anos. Pode ouvir o primeiro episódio aqui]
Da aproximação de Musk e Altman até à troca de acusações e a um processo em tribunal
Ao longo de mais de 40 páginas, os advogados de Elon Musk tentam mostrar a evolução da OpenAI, desde os primeiros contactos e os planos para a fundação até à atualidade. Começam por explicar que, na base da startup de IA, em 2015, esteve sempre o receio dos avanços da Google na área. “Há muito que o senhor Musk reconheceu que a inteligência artificial geral [AGI, um ponto em que a IA tem um desempenho semelhante ou melhor que os humanos] representa uma grave ameaça à Humanidade”, preocupações que mantém até hoje, é dito.
A história começa alguns anos antes da fundação da OpenAI, numa altura em que Musk e Larry Page, fundador da Google, eram amigos próximos. A amizade entre dois dos homens mais ricos do mundo terá chegado ao fim devido à IA, de acordo com Musk, que já falou várias vezes sobre o assunto. Se Musk teme a AGI, Page não partilhará dessa visão. Quando Musk descobriu que a Google ia comprar a DeepMind, um laboratório de investigação de IA britânico, terá ficado “profundamente preocupado”, diz o processo: “Acreditou (e ainda acredita) que, nas mãos de uma empresa privada com a Google, a AGI representa um perigo particularmente agudo e nocivo para a Humanidade”.
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Musk já achava difícil competir com a Google em vários campos. Ainda tentou impedir a aquisição, unindo-se a Luke Nosek, co-fundador da PayPal, para juntar fundos para comprar a DeepMind. Como já se percebeu, sem sucesso. Em 2014, quando foi anunciada a compra da DeepMind por 400 milhões de dólares, concluiu que, com a equipa britânica, a Google tinha sido “imediatamente catapultada para a frente da corrida na AGI”.
Musk não se deu por vencido. Começou a dar “os seus próprios jantares para discutir formas de fazer frente à Google e promover a segurança da IA” e até desenvolveu contactos com a administração Obama para falar sobre a tecnologia. Era 2015, Sam Altman já dava nas vistas em Silicon Valley – era o presidente da Y Combinator, uma das aceleradoras de startups mais conhecidas do mundo.
Elon Musk e Sam Altman têm várias semelhanças. Têm fixação por planos “moonshot”, expressão usada para ambições difíceis de atingir: Musk quer levar os humanos a Marte; Altman quer atingir a inteligência artificial geral (embora nunca tenha escondido os receios em relação a uma revolta da IA). Ao mesmo tempo, cada um tem a sua própria versão de império. Musk tem a Tesla, a SpaceX, a Neuralink, o X (Twitter) e, desde o ano passado, a xAI, uma empresa de IA para rivalizar com a OpenAI. Altman está ocupado com a startup de IA, mas fundou também a WorldCoin, a empresa que faz a digitalização de íris, em troca de criptomoedas. Além disso, também já mostrou curiosidade com os projetos que querem prolongar a vida humana, por exemplo através de fármacos. Está ainda a desenvolver um ambicioso plano para angariar 7 biliões de dólares para acelerar a produção global de semicondutores ou ainda um projeto de energia nuclear escalável, já que a AGI tem gastos consideráveis de energia.
A primeira abordagem a Musk terá partido de Altman, em março de 2015. O pedido era simples – contribuir para uma carta aberta a alertar o governo norte-americano para os perigos da IA. A relação foi evoluindo, ao ponto de Musk acreditar que Altman tinha as mesmas preocupações em relação à AGI. No fim de 2015, Altman abordou Musk com uma nova proposta: “juntar forças para criar um laboratório de IA sem fins lucrativos que tentasse apanhar a Google na corrida à AGI, mas que seria o oposto da Google”.
Foi firmado um acordo para a fundação, que incluiu Musk, Altman e Greg Brockman, o atual presidente da OpenAI. Ficou acordada a criação de um laboratório que fosse “uma entidade sem fins lucrativos para desenvolver AGI em benefício da Humanidade, e não uma empresa orientada para lucro e que quer maximizar os lucros dos acionistas”. O acordo, pelo menos na versão de Musk, previa também que a entidade trabalhasse em “código aberto” e que “não mantivesse a sua tecnologia fechada ou em segredo devido a razões comerciais”. No processo defende-se que o acordo de fundação ficou patente no registo de constituição da companhia.
Numa ação judicial movida por Musk, fala-se do magnata como “a força por trás da criação” da companhia e até lhe atribui a autoria do nome – Open AI Institute, OpenAI de forma simplificada. “Não haveria uma OpenAI sem o esforço de fundação e liderança inicial de Musk”, é possível ler. É ainda destacado o financiamento de Musk nos primeiros anos da empresa, de “mais de 44 milhões de dólares entre 2016 e setembro de 2020”.
A fratura, no entanto, chegou. E há dois momentos relatados para essa rutura: quando a empresa criou, em março de 2019, um braço orientado para lucro; e o anúncio da parceria, em setembro de 2020, com a Microsoft. “Na realidade, a OpenAI transformou-se numa subsidiária fechada da maior tecnológica do mundo: a Microsoft.”
Musk acusa ainda Altman e Brockman de terem “deitado fora” o acordo de fundação, em março de 2023, quando lançaram o GPT-4, o “seu modelo de linguagem mais poderoso”, sem documentação disponível para consulta por especialistas. “O design interno do GPT-4 continua a ser um completo mistério exceto para a OpenAI – e, acredita-se, para a Microsoft.”
Criadora do ChatGPT lança nova evolução do modelo de inteligência artificial com o GPT-4
Musk quer que a OpenAI cumpra a sua missão de empresa sem fins lucrativos e que disponibilize “a investigação e a tecnologia desenvolvida ao público”. Também recorre à justiça para exigir que os fundos gerados pela empresa não possam ser usados “pelos réus, pela Microsoft ou qualquer outra entidade ou pessoa para benefício financeiro”.
Emails da OpenAI revelam planos de Musk, do “controlo absoluto” a uma fusão com a Tesla
“O Elon quer desesperadamente que o mundo seja salvo. Mas só se for ele a salvá-lo”, disse Sam Altman à revista New Yorker, a propósito de um perfil do multimilionário publicado em 2023. O confronto entre os dois já estava instalado, mas Altman ainda conseguia apontar pontos positivos ao dono da Tesla. Garantiu que aprendeu muito com Musk, em termos de “investigação e desenvolvimento e tecnologia”, algo que considera “ser super valioso”. Ou que “ele realmente preocupa-se com um bom futuro para a AGI”, apesar de ser um “idiota” e dono de um estilo de liderança “que não pretendo seguir”, disse no podcast de Kara Swisher.
O processo de Musk foi apresentado a 1 de março. Só passados alguns dias é que a OpenAI deu resposta, revelando vários emails para contradizer as acusações feitas pelo patrão do antigo Twitter. Não houve terceiros a confirmar a veracidade dos emails e existem algumas partes que foram rasuradas.
O processo refere que Musk “abandonou o cargo de co-presidente do conselho de administração da OpenAI em fevereiro de 2018”, mas que continuou “a contribuir para a OpenAI” e a “receber atualizações” dos gestores, incluindo de Altman. Publicamente, foi dito que a saída estaria ligada a um conflito de interesses pelo facto de a Tesla estar a trabalhar em inteligência artificial. Com o passar do tempo, alguns meios de comunicação foram avançando mais pormenores: Musk ter-se-ia tornado uma presença “difícil”, escreveu a Semafor.
Enquanto os advogados de Musk deixam de fora a explicação sobre a saída, os emails revelam outra informação: os planos do dono da Tesla foram contrariados. “No fim de 2017, nós e Elon decidimos que o próximo passo para a nossa missão era criar uma entidade orientada para lucros” – uma contradição em relação ao que é dito no processo apresentado em tribunal.
“O Elon queria o controlo maioritário, controlar inicialmente o conselho de administração e ser o CEO. A meio das discussões, retirou o financiamento”, explica a OpenAI na publicação no blog. “Não conseguimos chegar a um acordo porque sentimos que era contra a nossa missão que um só indivíduo tivesse controlo absoluto da OpenAI.” Musk terá, então, sugerido uma fusão com a Tesla, argumentando que seria uma fonte de financiamento para os planos cada vez mais caros da OpenAI. “É o único caminho para podermos ter uma hipótese de concorrer com a Google. Mesmo assim, a probabilidade de ser um rival para a Google é pequena”, admitia.
A ideia não terá sido bem acolhida, pelo menos de acordo com a versão da OpenAI, e a startup diz que Musk decidiu sair, passado pouco tempo, com o argumento de que “a probabilidade de sucesso era zero e que estava a planear desenvolver um concorrente de AGI dentro da Tesla”.
Seis anos depois, a OpenAI enfrenta desafios, mas também está no centro das atenções da corrida da IA. “Ficamos triste por termos chegado a este ponto com alguém que admirámos profundamente – alguém que nos inspirou a almejar mais alto, que depois nos disse que íamos falhar e começar um concorrente e que depois nos processou quando começámos a ter um progresso significativo na nossa missão sem ele”, remata a nota dos executivos da OpenAI.
A troca de galhardetes na rede social X
Elon Musk sempre foi um ávido utilizador do antigo Twitter. Desde que passou a ser dono da rede social, em outubro de 2022, a utilização só se intensificou. Com uma personalidade aguerrida, é frequente ver o empresário recorrer a “memes” para tecer comentários a questões da atualidade. Depois do anúncio do processo, decidiu editar imagens de Sam Altman para “picar” o rival.
https://twitter.com/elonmusk/status/1765415187161464972
“Corrigi-a”, escreveu como legenda para uma imagem do CEO da OpenAI. A fotografia de Altman com um crachá de visitante da empresa foi partilhada na altura do despedimento relâmpago do cargo de CEO. Tema, aliás, que é usado no processo para Musk acusar Altman e a Microsoft de terem “escolhido a dedo” os membros do conselho de administração da empresa após o golpe para afastar o CEO.
first and last time i ever wear one of these pic.twitter.com/u3iKwyWj0a
— Sam Altman (@sama) November 19, 2023
Na imagem original, Altman mostrava a esperança de ser a “primeira e última vez que tivesse de usar” um crachá do género. A imagem editada por Musk altera o crachá para “ClosedAI”, já que na ótica do dono da Tesla a OpenAI não é suficientemente transparente e aberta com os modelos de IA.
“Mudem o vosso nome para ClosedAI e eu deixo cair o processo”, escreveu Musk no X em resposta à revelação dos emails, na quarta-feira.
— Elon Musk (@elonmusk) March 6, 2024
Sam Altman não se ficou e decidiu usar a rede social para “desenterrar” uma troca de mensagens de 2019, onde deixava elogios à Tesla e às apostas de Musk. O dono da Tesla escreveu “obrigado, Sam”. A 1 de março, justamente quando foi apresentada ação judicial, Altman respondeu à mensagem com mais de quatro anos com um “anytime”, um sempre às ordens, em tradução livre.
Change your name
— Elon Musk (@elonmusk) March 6, 2024
Musk pode colecionar rivalidades na indústria tecnológica, mas neste momento não é o único interessado em saber mais sobre a parceria entre a OpenAI e a Microsoft. Até ao momento, a dona do Windows já investiu 13 mil milhões de dólares na startup. A Comissão Europeia anunciou em janeiro que está a analisar o investimento para perceber se há impacto na concorrência. Também a Comissão Federal de Comércio já anunciou uma análise às ligações entre as big tech e startups de IA – além da Microsoft e da OpenAI, está também atenta às parcerias entre a Amazon e a Google e a Anthropic, uma rival da OpenAI criada por um ex-trabalhador da dona do ChatGPT.
Regulador americano quer analisar investimentos das big tech em empresas de inteligência artificial