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Como começou a polémica sobre os divorciados recasados?

Em 2016, depois do Sínodo da Família, o Papa Francisco publicou a exortação apostólica Amoris laetitia, dedicada às questões da família. Neste extenso documento, o pontífice recorda a doutrina da Igreja Católica sobre a família — designadamente sobre a indissolubilidade do matrimónio –, mas sublinha, a dada altura, que “um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas”.

“Por causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio de uma situação objetiva de pecado — mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja”, continua Francisco. O Papa refere-se aqui, entre outros, às situações dos católicos casados pela Igreja que, tendo-se divorciado, tornaram a casar sem que lhes tenha sido declarado nulo o matrimónio.

Nesta frase, Francisco coloca uma nota de rodapé que está no centro de toda a discussão que se originou a partir dali: “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos“. Francisco acrescenta mais, lembrando as suas próprias declarações na exortação apostólica Evangelii gaudium, de 2013: “Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor” e a Eucaristia “não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”.

A expressão “ajuda dos sacramentos” marcou o debate em torno daquele documento, que é já o mais citado do Papa. Para os setores mais progressistas, era um sinal de que o pontífice mostrava uma inédita abertura para admitir os divorciados recasados aos sacramentos. Para os mais tradicionalistas, uma afronta aos valores milenares dos sacramentos, sobretudo à comunhão.

Teólogos conservadores acusam papa Francisco de espalhar a heresia

Nunca como por causa deste documento — e daquele capítulo em concreto — o Papa tinha sido tão criticado. Primeiro, quatro importantes cardeais (incluindo o norte-americano Raymond Burke, um dos principais críticos do Papa) assinaram uma carta a exigir esclarecimentos. Depois, teólogos e padres de todo o mundo entraram em rota de colisão com Francisco, publicando um documento a acusar Francisco de “propagar heresias” com aquelas afirmações.

Desde então, a discussão em torno dos divorciados que voltam a casar tem dominado a maioria das discussões públicas em torno do pontificado de Francisco, sendo atualmente o ponto de maior discórdia entre os setores mais progressistas e os mais tradicionalistas da Igreja Católica.

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Afinal, o que defende o Papa Francisco que seja feito nestes casos?

A exortação apostólica Amoris Laetitia não indica ações concretas sobre como levar a cabo esta integração dos divorciados recasados. Como explica ao Observador o padre Rui Pedro Carvalho, diretor do serviço de pastoral familiar do patriarcado de Lisboa, “o Papa Francisco tem sublinhado a importância de colocar o ónus no confessor, no padre, que conhece bem os casos concretos”.

Uma coisa, contudo, ficou clara naquela exortação apostólica: para o Papa, era necessário acabar com a ideia de que a Igreja está de costas voltadas para os divorciados recasados. “Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus”, escreveu Francisco.

O problema residia precisamente no facto de não haver normas concretas, orientações relativas à ação dos padres nestes casos. Não tardaram a surgir interpretações de bispos de todo o mundo: uns achavam que o documento lhes dava abertura para emitir normas para a admissão dos divorciados aos sacramentos, outros não tinham a certeza do que deviam fazer.

Cinco mensagens do Papa sobre a família

Foi então que os bispos da região pastoral de Buenos Aires escreveram uma carta aos padres da sua diocese, intitulado “Critérios básicos para a aplicação do capítulo VIII de Amoris laetitia“. Na carta, os bispos esclarecem, em 10 pontos, qual deve ser a ação dos padres no acompanhamento dos casais nesta situação.

Os bispos argentinos sublinham que não se trata de uma “autorização” para aceder aos sacramentos, mas “sim de um processo de discernimento acompanhado por um pastor”. Até porque, notam os prelados, “este caminho não acaba necessariamente nos sacramentos, mas pode orientar-se para outras formas de se integrar mais na vida da Igreja”.

A mesma carta sublinha que a exortação apostólica do Papa Francisco “abre a possibilidade de acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia”, nos casos “mais complexos” em que não é possível obter uma declaração de nulidade do matrimónio. “Mas há que evitar entender esta possibilidade como um acesso irrestrito aos sacramentos, ou como se qualquer situação o justificasse“, avisam. Tudo depende do “caminho de integração” acompanhado por um pastor.

Esta carta, que à primeira vista apenas contém normas destinadas aos padres argentinos, reveste-se de singular importância, porque no dia em que foi escrita — 5 de setembro de 2016 — foi enviada também ao Papa Francisco, que respondeu no próprio dia. Na resposta, o pontífice felicita os bispos “pelo trabalho que tiveram”, considerado “um verdadeiro exemplo de acompanhamento aos sacerdotes”.

Divorciados recasados: Afinal, um debate tão antigo como a Igreja

Francisco foi ainda mais longe, ao afirmar: “O escrito é muito bom e explicita cabalmente o sentido do capítulo VIII de Amoris laetitia. Não há outras interpretações. Estou seguro de que fará muito muito bem. Que o Senhor lhes retribua esta esforço de caridade pastoral”.

“Não há outras interpretações.” A expressão deu, de súbito, relevância mundial àquela carta dos bispos argentinos. De todas as interpretações que já tinham surgido, aquela aparecia agora como a única a merecer aprovação papal.

A aprovação formalizou-se já no final de 2017, quando o Papa declarou que aquela carta passava a fazer parte do Magistério da Igreja. Ou seja, a explicação dos bispos de Buenos Aires foi adotada pelo Vaticano e publicada oficialmente nos escritos legais da Santa Sé. A partir desse momento, a posição oficial do Vaticano sobre o assunto passou a ser aquela: em certos casos, dependendo do discernimento de cada cristão em conjunto com o pastor, é mesmo possível para os divorciados recasados terem acesso aos sacramentos.

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Em que casos é que a Igreja admite o acesso aos sacramentos?

O próprio Papa Francisco reconhece que os divorciados recasados “podem encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas“.

“Uma coisa é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas”, escreve Francisco. Nestes casos, há “motivos sérios” que justificam que a nova união não seja quebrada, admite a Igreja.

Noutros casos, continua o Papa, há aqueles “que fizeram grandes esforços para salvar o primeiro matrimónio e sofreram um abandono injusto“, e também os que, como lembrava João Paulo II, “contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjetivamente certos em consciência de que o precedente matrimónio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido”.

Papa Francisco. “Os divorciados não estão excomungados, são sempre parte da Igreja”

No entanto, o Papa sublinha que há outro tipo de situações, como “uma nova união que vem de um divórcio recente, com todas as consequências de sofrimento e confusão que afetam os filhos e famílias inteiras, ou a situação de alguém que faltou repetidamente aos seus compromissos familiares“.

O padre Rui Pedro Carvalho, diretor do serviço de pastoral familiar do Patriarcado de Lisboa, diz que “é difícil tipificar”, uma vez que “há uma realidade composta por muitos casos diferentes“, mas lembra que a questão da culpa é um critério importante para definir que pessoas estão em causa neste esforço de integração.

“É muito diferente a parte que favorece a quebra do casamento da parte que é abandonada”, explica o sacerdote, sublinhando que, quer o documento do Papa Francisco, quer o documento mais recente, publicado por D. Manuel Clemente, são muito claros “ao falar da especificidade de cada caso”.

Em todos os casos, trata-se de pessoas que contraíram matrimónio na Igreja Católica, se divorciaram e tornaram a casar civilmente, mantendo a união inicial aos olhos da Igreja. Por isso, explica Rui Pedro Carvalho, “o Tribunal Eclesiástico pode ser uma ajuda, uma vez que alguns destes casamentos podem ser declarados nulos”. Mas esta situação só se verifica em alguns casos. Noutros, é necessário “encontrar outros caminhos de integração“.

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O que faz a Igreja para facilitar as declarações de nulidade do matrimónio?

Para fazer face às enormes dificuldades em declarar a nulidade de um matrimónio, o Papa Francisco escreveu, em 2015, uma carta apostólica em que alterou as regras do processo, tornando-o mais célere. Se até então era necessário que fossem proferidas sentenças em duas instâncias para que o casamento fosse declarado nulo, passou a bastar uma. E os bispos passaram a poder recorrer ao processo breve, em casos em que os motivos para a nulidade sejam facilmente comprováveis.

O processo passou a ser gratuito (à exceção dos custos administrativos) e passou a ter um prazo máximo de 45 dias no caso de se tratar do processo breve.

“Tanta gente espera anos por uma sentença, que confirmem ‘sim, é verdade, o teu matrimónio é inválido’ ou que diga ‘não, o teu matrimónio é válido’. Alguns procedimentos são tão demorados e tão densos que alguns acabam mesmo por abandonar os processos”, lamentava, na altura, o Papa.

Nulidade do casamento católico. Saiba o que mudou

O padre Rui Pedro Carvalho confirma, sublinhando que os processos se tornaram mais céleres no Patriarcado de Lisboa. “Um ou dois anos“, para os processos normais, explica o sacerdote, lembrando que antes desta alteração das regras os processos tinham de ir para a arquidiocese de Évora, para serem julgados em segunda instância.

O sacerdote lembra, porém, que a nulidade do matrimónio não é decretada em todos os casos de divórcio. “O que se faz no processo é muito simples: olha-se para o momento do vínculo para perceber se naquele ‘sim’ estavam reunidos todos os elementos necessários ao casamento católico. Em alguns casos, o casamento foi mesmo válido, não pode ser declarado nulo“, explica. É nesses casos que se devem procurar os tais “caminhos de integração” alternativos de que Francisco fala na exortação apostólica, que podem passar pelo acesso aos sacramentos.

Ainda assim, no final de 2016, um ano depois da entrada em vigor das novas regras, o número de pedidos de nulidade aumentou: em 2015, foram registados 129 processos, número que em 2016 subiu para 196.

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Porque é que o cardeal-patriarca escreveu agora este documento?

Precisamente na sequência da publicação da exortação apostólica Amoris Laetitia e da declaração da carta dos bispos argentinos como parte do Magistério da Igreja, bispos de todo o mundo começaram a publicar orientações, normas ou conselhos para os padres das suas dioceses, tendo em conta as realidades diferentes nas várias regiões do mundo.

Portugal não foi exceção, e já algumas dioceses, como Braga e Aveiro, publicaram documentos de orientação sobre como aplicar nos seus territórios as orientações dadas pelo Papa Francisco no que toca ao acompanhamento dos divorciados recasados.

Esta semana, foi D. Manuel Clemente, patriarca de Lisboa, quem publicou as orientações destinadas aos padres da diocese de Lisboa.

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E o que diz o documento?

O cardeal-patriarca começa por sublinhar que o Papa Francisco “não esquece as situações de fragilidade, especialmente as assim chamadas ‘irregulares’, em que ao matrimónio sucedeu a rutura e um casamento civil” e que os padres devem agir segundo as orientações do seu bispo. D. Manuel Clemente pega em três documentos: a exortação Amoris Laetitia, as cartas entre Francisco e os bispos argentinos, e ainda as indicações dadas aos sacerdotes da diocese de Roma pelo Papa, em jeito de exemplo aos restantes bispos.

Num primeiro de cinco pontos, D. Manuel Clemente contextualiza o problema, sublinhando a questão da ausência de culpabilidade, fator que pode ser uma atenuante para a “situação objetiva de pecado” que os divorciados vivem aos olhos da Igreja Católica, e chamando a atenção para a célebre nota de rodapé que abre a porta à admissão aos sacramentos das pessoas em situação “irregular”.

O bispo prossegue, recordando os vários pontos elencados pelos bispos argentinos: o facto de não se tratar de “autorizações” para aceder aos sacramentos, a proposta a fazer ao casal em causa na segunda união de que viva “em continência” — ou seja, “segundo o ensinamento de S. João Paulo II“, abstendo-se de relações sexuais –, e ainda que, em casos mais complexos que possam originar situações conflituosas, o acesso aos sacramentos seja feito “de modo reservado”.

Católicos recasados são aconselhados a abster-se de ter relações sexuais

O que significa “de modo reservado”? O padre Rui Pedro Carvalho explica que depende de cada caso, mas lembra que há situações em que “pessoas externas ao casal ou à família conhecem partes da história e podem considerar que aquelas pessoas não têm condições para comungar”. Segundo o sacerdote, nesses casos “normalmente o confessor tem elementos que a maior parte das pessoas não tem” e pode autorizar o acesso ao sacramento. Contudo, pode sugerir que tal aconteça, por exemplo, numa outra comunidade onde o casal não seja conhecido, ou numa celebração de menor dimensão.

“Insistindo no acolhimento cordial e respeitoso de todas as pessoas, especialmente nos casos referidos, o Papa Francisco pretende sobretudo ressaltar o valor do matrimónio cristão e a necessidade de o preparar e acompanhar”, escreve ainda o cardeal-patriarca, deixando no final seis “alíneas operativas” retiradas da documentação referida, que os padres de Lisboa devem ter em consideração no acompanhamento dos divorciados que manifestem intenção de se reaproximar da Igreja:

  1. “Acompanhar e integrar as pessoas na vida comunitária, na sequência das exortações apostólicas pós-sinodais”;
  2. “Verificar atentamente a especificidade de cada caso”;
  3. “Não omitir a apresentação ao tribunal diocesano, quando haja dúvida sobre a validade do matrimónio”;
  4. “Quando a validade se confirma, não deixar de propor a vida em continência na nova situação”;
  5. “Atender às circunstâncias excepcionais e à possibilidade sacramental, em conformidade com a exortação apostólica e os documentos acima citados”;
  6. “Continuar o discernimento, adequando sempre mais a prática ao ideal matrimonial cristão e à maior coerência sacramental”.
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O cardeal-patriarca aconselha os divorciados recasados a não terem relações sexuais?

A “vida em continência” é referida em duas passagens desta nota. A primeira cita a carta dos bispos de Buenos Aires, um documento que assumidamente surge como inspirador desta missiva: «… pode-se propor o compromisso em viver em continência. A Amoris laetitia não ignora as dificuldades desta opção (cf. nota 329) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação, quando se falhe nesse propósito (cf. nota 364, segundo o ensinamento de S. João Paulo II ao Cardeal W. Baum, de 22/03/1996)». A seguir expõe as circunstâncias em que não sendo possível a continência se pode mesmo assim ter acesso a alguns Sacramentos.

A segunda referência é mais adiante, numa das “alíneas operativas” deixadas no final do texto, quando D. Manuel Clemente diz aos padres da sua diocese que não devem “deixar de propor a vida em continência” aos casais que estão unidos em segundo casamento que não tenham tido o seu matrimónio católico declarado nulo. Isto sem deixar de “atender às circunstâncias excecionais e à possibilidade sacramental, em conformidade com a exortação apostólica e os documentos acima citados”.

A proposta, porém, não é nova. A doutrina da Igreja é bem conhecida no que toca à sexualidade e esta questão concreta está escrita nos documentos da Igreja desde 1981, altura em que o Papa João Paulo II escreveu na exortação apostólica Familiaris Consortio que, “quando o homem e a mulher [divorciados e casados de novo], por motivos sérios — quais, por exemplo, a educação dos filhos — não se podem separar, assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos actos próprios dos cônjuges“.

Isto leva o diretor do serviço de pastoral familiar do patriarcado de Lisboa, padre Rui Pedro Carvalho, a dizer que “não é D. Manuel quem aconselha, é o Papa João Paulo II”, e que é “redutor” afirmar que o patriarca se lembrou agora de fazer esta proposta.

“Imaginemos um casal, uma segunda união, em que ambas as pessoas são fiéis e querem aproximar-se novamente da Igreja, mas apercebem-se de que há um primeiro casamento que não foi dissolvido. Aquilo que se propõe é que para viver nesta comunhão total vivam como irmãos, que vivam em continência“, explica o sacerdote.

Abstinência sexual. “Não é D. Manuel Clemente quem aconselha, é o Papa João Paulo II”

Mas, afinal, porque é que a Igreja pede isto aos divorciados? É preciso compreender, em primeiro lugar, o que é que a doutrina da Igreja diz sobre a sexualidade para todos. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, documento que compreende toda a doutrina da Igreja, é na sexualidade — que tem como fundamental propósito a geração dos filhos — que “se exprime a pertença do homem ao mundo corporal e biológico”, sendo os atos sexuais “honestos e dignos”.

A doutrina católica não diz, porém, que os atos sexuais sirvam apenas para a procriação. “A continência periódica, os métodos de regulação da natalidade baseados na auto-observação e no recurso aos períodos infecundos estão de acordo com os critérios objetivos da moralidade“, esclarece o Catecismo, sublinhando que apenas os métodos contracetivos — os que se propõem, “como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” são considerados maus.

Para a Igreja Católica, os atos sexuais são “próprios e exclusivos dos esposos”, não sendo algo “puramente biológico”, mas que “diz respeito ao núcleo íntimo da pessoa humana como tal”. “Ela só se realiza de maneira verdadeiramente humana se for parte integral do amor com o qual homem e mulher se empenham totalmente um para com o outro até à morte”, lê-se no Catecismo. Esta dimensão da doutrina determina que a sexualidade deve estar confinada ao casamento, pelo que qualquer ato sexual fora do casamento é entendido como pecado.

Ora, se um casal se divorciar e as pessoas em causa voltarem a casar civilmente, mas o seu matrimónio não for declarado nulo, aos olhos da Igreja continuam casados com o primeiro cônjuge. Isso significa que, do ponto de vista da Igreja, qualquer ato sexual com o novo parceiro é considerado como “fora do casamento” — portanto, pecado. Por isso, a Igreja considera que se um casal de divorciados (ou em que um dos elementos é divorciado) quiser estar em comunhão com a Igreja, deve viver “como irmãos”, ou seja, em abstinência sexual.

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Que outras dioceses portuguesas estão a aplicar estas novas orientações? E de que forma?

A iniciativa de D. Manuel Clemente não é inédita em Portugal. Pelo menos duas dioceses, Aveiro e Braga, já publicaram documentos ou cartas pastorais sobre a forma como pretendem levar a cabo este acompanhamento dos divorciados nos seus territórios.

O primeiro a ser conhecido foi o da arquidiocese de Braga, cujo arcebispo, D. Jorge Ortiga, publicou no final do ano passado a carta pastoral “Construir a casa sobre a rocha” (na página 25 são expostos os critérios de orientação pastoral para a aplicação do capítulo VIII da Amoris Laetitia).

A grande novidade naquela diocese é a criação de um grupo específico — composto por leigos e sacerdotes — para se dedicar a acompanhar os cristãos que se divorciaram e voltaram a casar. “Para além de informar e aconselhar sobre processos de declaração de nulidade do matrimónio, a equipa irá acompanhar cada caso, para que, após um processo de discernimento pessoal, seja reavaliado o acesso aos sacramentos e a possibilidade de virem a ser padrinhos/madrinhas“, explicou na altura a diocese.

Reforçando que, tal como explicaram os bispos argentinos, não pretende dar autorizações gerais para aceder aos sacramentos, o documento sublinha que se trata “de um processo de discernimento pessoal, no foro interno, acompanhado por um pastor com encontros regulares, que ajuda a distinguir adequadamente cada caso singular à luz do ensinamento da Igreja”.

Arquidiocese de Braga “abre” sacramentos a divorciados recasados

Já em Aveiro, o bispo D. António Manuel Moiteiro Ramos publicou o documento “Acompanhar, discernir, integrar“, com um guia completo a ser usado naquela diocese para o acompanhamento dos casais divorciados e recasados.

No documento, em tudo semelhante ao publicado recentemente em Lisboa, são referidos os pontos apresentados pelos bispos argentinos e é feita a mesma proposta que agora causou celeuma em Lisboa:

“Quando as circunstâncias concretas de um casal o tornem factível, especialmente quando ambos sejam cristãos com um caminho sólido de fé, pode-se examinar a possibilidade do compromisso de viverem em continência conjugal“, lê-se no documento.

Nas próximas semanas ou meses, todas as dioceses portuguesas deverão elaborar e publicar documentos semelhantes, muitos deles replicados dos já conhecidos, disse ao Observador fonte eclesiástica.

No que diz respeito ao patriarcado de Lisboa, não se prevê para já a criação de um grupo específico para o acompanhamento destas situações, segundo o padre Rui Pedro Carvalho. “Aqui, a indicação é a de que cada padre faça esse trabalho. Claro que temos as estruturas da diocese, como a pastoral familiar e o tribunal, para ajudar e aconselhar, mas é o padre de cada comunidade que conhece bem os casos“, explica o sacerdote.