A responsabilidade das falhas no plano de vacinação da gripe sazonal foi das farmácias — é essa a conclusão que se retira das palavras do coordenador da task force para a campanha da Covid-19. Esta quarta-feira, Francisco Ramos defendeu que a “participação” deste setor no processo de preparação da campanha de vacinação “foi mais um obstáculo ao sucesso do que uma ajuda, ajudando a criar falsas expectativas à população”. É justo apontar o dedo aos farmacêuticos?

No início de dezembro, a perceção geral era a de que o país estava preparado para concluir com sucesso a campanha de vacinação da gripe; e que todas as pessoas que precisassem da vacina iam recebê-la. Para avaliar o rigor da declaração do ex-secretário de Estado, e perceber como se chegou a essa ideia, é importante recuar a fita do tempo.

E, quando se faz esse exercício, percebe-se que as intervenções públicas e as garantias à população de que tudo estava preparado e ia correr sem sobressaltos foram sempre protagonizadas pelos mais diversos responsáveis políticos e por responsáveis do setor da Saúde. Ao contrário da mais recente campanha de vacinação contra a Covid-19, não se encontram manifestações de garantias de que tudo ia correr bem por parte de responsáveis do setor farmacêutico.

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A 16 de outubro, na antecâmara do arranque da segunda fase da campanha, Graça Freitas partilha uma mensagem de tranquilidade. A primeira fase, ainda em curso, estava a “correr bem”. Graça Freitas dizia, então, que “as tranches” de vacinas tinham “chegado de acordo com o que estava programado e mesmo antes do que estava programado”. E, portanto, “havia”vacinas suficientes para começarmos a segunda fase e que é muito importante: é organizada pelos nossos centros de saúde e tem grandes grupos a serem vacinados”.

Pequeno salto em frente. A 19 de outubro, dia em que se iniciava a segunda fase de vacinação contra a gripe (depois de utentes dos lares, grávidas e profissionais de saúde e do setor social serem vacinados), acabado de ser vacinado, Marcelo procurava respostas para uma “preocupação” que sentia ser partilhada por boa parte da população: “Haverá vacinas em número suficiente para todos aqueles que queiram vacinar-se e estarão disponíveis em tempo útil?” A certeza, transmitida de seguida em declarações aos jornalistas, era dada pelo próprio Presidente da República, depois de Marcelo recolher garantias junto da ministra da Saúde — que estava mesmo ali ao lado. “Até à primeira semana de dezembro — portanto, a partir deste momento, pouco mais de meados de outubro e durante o mês de novembro —, progressivamente, todos os que queiram vacinar-se serão vacinados.”

Marcelo dava o “exemplo”, sendo também ele vacinado numa Unidade de Saúde Familiar em Lisboa, e lançava um apelo a todos aqueles que tivessem dúvidas sobre a importância da vacinação, para que deixassem as reticências de lado e fossem “vacinar-se até ao final da primeira semana de dezembro”.

“Todos os que queiram vacinar-se serão vacinados”, garante Marcelo Rebelo de Sousa

O repto de Marcelo Rebelo de Sousa tem um contexto. A preocupação das autoridades de saúde passava por vacinar o máximo possível e, dessa forma, reduzir uma eventual pressão redobrada sobre os serviços de saúde, mais tarde, com a acumulação da assistência médica a casos de doentes com complicações decorrentes da gripe e de doentes Covid-19.

Mas essa garantia dada pelo Presidente teria implicações futuras para Marcelo. Na entrevista à SIC, o chefe de Estado foi confrontado com a confiança pública que transmitiu em outubro acerca da vacinação e, nesse momento, a resposta foi uma espécie de empurra para o lado. “Eu disse exatamente o seguinte: ‘segundo diz a senhora ministra da Saúde —que estava ao meu lado —, há vacina para todos aqueles que se queiram vacinar e a vacinação está pronta até dezembro’”. Já vimos que a declaração de Marcelo não foi, ipsis verbis, aquela que acabaria por usar nos estúdios da SIC, na semana passada. Mas Marta Temido estava, de facto, ao lado do Presidente da República e seriam precisas algumas semanas para que uma autoridade de saúde desmentisse este quadro.

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O próprio secretário de Estado Ajunto da Saúde apelava, nesse momento, “serenidade” e à “tranquilidade” da população porque, dizia Lacerda Sales, “com certeza, toda a gente vai ser vacinada”.

Ainda nesse dia em que o Presidente da República foi vacinado, a ministra da Saúde falou, sim, em números. E os números distribuíam-se desta forma: dois milhões de vacinas adquiridos pelo Serviço Nacional de Saúde, a que se juntavam 500 mil doses adquiridas pelas farmácias.

Como parte dessa ação de sensibilização do Governo para a campanha de vacinação contra a gripe — a que o Presidente da República se juntou —, Marta Temido destacou ainda a entrada em ação das juntas de freguesia e das farmácias comunitárias.

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Só mais tarde, o discurso de Marta Temido assume um tom em tudo diferente do otimismo de Marcelo Rebelo de Sousa. Em entrevista ao podcast do PS, no final de novembro, a ministra da Saúde foi perentória: “Não há mais vacinas disponíveis no mercado mundial”. E dizia mais. “É importante que as pessoas percebam que só deve vacinar-se quem tem critério. Eu não me vacinei, alguns tê-lo-ão feito sem critério”, justificou Temido. E ensaiava uma parte da explicação para a escassez de doses no mercado nacional. ““O que é facto é que este ano tivemos uma procura de pessoas que normalmente não procuram vacinar-se, desde logo dos profissionais de saúde que este ano têm aderido massivamente à vacinação e que, em anos anteriores, não se queriam vacinar”.

Mas, nesse momento — a duas semanas do final dessa fase da campanha de vacinação—, estava já criada junto da população uma determinada expectativa — para usar a expressão de Francisco Ramos — que acabaria por não ir ao encontro da realidade no terreno.

E não houve, até esse momento, por parte do setor farmacêutico, sinais públicos de que tudo estava encaminhado e que a campanha de vacinação decorria sem sobressaltos.

O que se ouviu, pela voz da presidente da Associação de Farmácias de Portugal, Manuela Pacheco, foi um alerta para os níveis de procura que já nesse momento as farmácias estavam a sentir. “Alguns colegas reportaram uma procura de reserva cinco vezes maior do que em 2019”, notou exatamente nessa mesma data, 19 de outubro, em declarações recolhidas pelo jornal Público.

Conclusão

A declaração de Francisco Ramos não tem sustentação. Publicamente, todos os sinais de que tudo estava a correr e ia correr como previsto na campanha de vacinação contra a gripe sazonal foram transmitidos por responsáveis políticos. Nunca o setor farmacêutico surge a dar voz a um cenário ideal a este respeito.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos

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