|
|
|
O título desta newsletter é roubado a uma expressão ouvida há muito tempo. Que, na verdade, era bem mais longa. Começava com o acordar, de manhã e quase terminava na mais pequena e mundana das atividades do dia a dia. “Quase” porque o final estava reservado para a mesma palavra com que termina este título: “viver”. Era uma luta constante para viver. |
Já lá vão mais de duas décadas e as palavras ecoam ainda na memória. Era assim que aquela amiga descrevia os dias. Uns melhores, outros piores, todos em luta. |
O alívio, dizia, tinha chegado com o diagnóstico. Depois de muitos anos a sentir-se diferente, distante, ausente e incompreendida, num buraco escuro onde às vezes só acalmava se se magoasse a si própria, sabia finalmente que aquele não pertencer, aquele não encaixar tinha um nome: sofria de perturbação borderline. |
Não que fosse mais fácil viver com aquilo. Aliás, viver era o mais difícil. Mas soube na altura não estava sozinha. Que havia mais quem passasse por aquilo. E, se a internet não era ainda o que é hoje, disponível num telemóvel na palma da mão, pelo menos podia falar com médicos sobre o que a angustiava. E percebia que não falava estrangeiro. |
O havia também o olhar da mãe. Um olhar desalentado. Desapontado. A mãe que durante anos tinha tentado compreender a filha mas sem sucesso. A coisa não tinha ido lá com conversas. Nem com castigos. Nem com palmadas. Nem a cortar a mesada. Nem com ameaças disto ou aquilo ou a ideia de “vais mas é viver com o teu pai”. A coisa só lá tinha ido com alguém de bata branca a explicar que a perturbação de personalidade borderline é uma das mais duras doenças mentais que pode haver, que pode afetar quase seis por cento da população, que é mais prevalente nas mulheres, que muitos profissionais de saúde não a reconhecem e muitos psiquiatras não têm experiência no tratamento. E que 60 a 70% dos doentes levam a cabo tentativas de suicídio. |
Talvez se há vinte anos já estivesse em funcionamento o primeiro projeto integrado do SNS dedicado a doentes borderline e respetivas famílias, de que falámos nesta reportagem, a coisa tivesse sido mais fácil para a minha amiga. E para a mãe dela. |
O Programa de Intervenção em Perturbação de Personalidade Borderline, do Hospital de São João nasceu em 2013 e, até hoje, já recebeu aproximadamente 220 pacientes. Atualmente, 140 estão em acompanhamento — e, claro, 95% são mulheres. |
O projeto inclui consultas individuais, psicoterapia em grupo, hospital de dia, internamento residencial e apoio a famílias e é único no país. Apoia doentes como Teresa, que conversou com a jornalista Sara Dias Oliveira e com o fotógrafo Rui Oliveira, a quem contou que “isto é um buraco sem fundo”. Ou “Ana”, que descreveu o “vazio enorme, a tristeza sem fim, drogas como automedicação, cortes no corpo, surtos psicóticos”. Ou David, que “tinha gostos impróprios para a idade, mais agressivos, dificuldade em fazer amizades”. Ou Alice, a mãe de David, que está reconhecida à equipa porque “o grupo [de terapia] ajudou-me a lidar com a doença do meu filho, a perceber o que sente sem o julgar, sem ralhar”. |
A reportagem foi publicada no fim de semana passado. No mesmo dia enviei-a para a minha amiga, com quem já não falava há muito tempo. “Vou enviar para a minha mãe”, respondeu-me com um sorriso eletrónico. |
Não foi a primeira vez que abordámos este tema no Mental, a secção do Observador totalmente dedicada à Saúde Mental. A 19 de novembro, na rubrica Sair do Labirinto, o psicólogo Daniel Crujo, que tem mais de vinte anos de experiência a acompanhar pacientes com esta patologia, falava do “difícil ‘mau feitio’ que provoca sofrimento, com toda a instabilidade e angústia presente na vida dos doentes e das pessoas que o rodeiam. |
Em julho, o psiquiatra João Carlos Melo partilhava, numa entrevista da série Do Outro Lado, o caso de uma doente borderline que inventava sintomas para ser cuidada pelos médicos. |
E, em maio passado, a jornalista Sofia Teixeira já tinha escrito um explicador sobre esta perturbação de personalidade, com oito perguntas e respostas sobre uma das doenças mentais mais incompreendidas. Na altura, o mesmo João Carlos Melo dizia que “a atitude mais eficaz é a compreensão do sofrimento da pessoa e a aceitação de que o seu comportamento é uma manifestação direta disso, por muito agressivo que pareça”. Parece claro, escrito assim. Mas não é. Que o diga a mãe do David. Ou da minha amiga. |
No Mental, além desta doença, abordamos uma série de outras que durante anos foram varridas para debaixo da atenção mediática e às quais fomos acrescentando camadas de estigma e incompreensão. A pouco e pouco estamos a tentar destapá-las. |
E, já agora, perdoem a falta de modéstia mas alguma coisa devemos estar a fazer bem. É que estamos de parabéns, no Mental. Duplamente de parabéns: |
- O Observador recebeu cinco prémios do Observatório de Ciberjornalismo, um deles alusivo à secção. Na categoria Narrativa de Vídeo Digital, o júri escolheu o vídeo da psiquiatra Susana Sousa Almeida, que partilhou como foi tratar um jovem com um cancro terminal que decidiu esperar pelo fim e como lidou, ela própria, com o luto que se seguiu.
- Essa mesma rubrica, a que chamámos Do Outro Lado, na qual a jornalista Sofia Teixeira e o realizador Nuno Mendes conversam com psicólogos e psiquiatras que relatam um caso que tenha sido particularmente marcante ao longo da sua carreira, foi reconhecida com o segundo lugar no Prémio de Jornalismo em Saúde Mental, promovido pela Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental. No mesmo evento, a rubrica Sair do Labirinto recebeu uma menção honrosa.
|
Obrigado a si por nos ajudar a continuar a fazer este trabalho. |
|
|
Reportagens
|
|
Saúde Mental
|
|
No momento de dar apoio à mãe de uma bebé vítima de paragem cardiorrespiratória, a psicóloga Sónia Cunha, grávida de oito meses, foi obrigada a confrontar-se com as suas próprias emoções.
|
|
|
|
Hospital de São João
|
|
Consultas, psicoterapia em grupo, hospital de dia, internamento residencial, apoio a famílias. No Hospital de São João funciona o único programa integrado do SNS de tratamento para doentes borderline.
|
|
|
|
Saúde Mental
|
|
Não é fácil diagnosticar a perturbação da personalidade borderline, uma doença mental que provoca muita instabilidade e angústia – ao doente e aos outros. O psicólogo Daniel Rijo explica porquê.
|
|
|
|
Doenças
|
|
O corpo e a mente estão em permanente relação e influenciam-se um ao outro. Isso significa que os fatores psicológicos e as nossas emoções podem provocar sintomas ou doenças físicas.
|
|
|
|
Saúde Mental
|
|
Representada em filmes e livros e associada à organização, à arrumação e à “mania das limpezas”, é uma das doenças mentais com mais estereótipos.
|
|
|
|
|
Saúde Mental
|
|
O criador do primeiro serviço médico móvel nos EUA para tratar doentes mentais sem-abrigo e coordenador do acompanhamento psicológico às vítimas do 11 de Setembro fala sobre estigma e saúde mental.
|
|
|
|
Saúde Mental
|
|
Em Arouca e Santa Maria da Feira, profissionais das duas áreas reúnem-se para analisar e avaliar perturbações e comportamentos que geram alarme social e situações judiciais. Um projeto único no país.
|
|
|
Opinião
|
|
|
Direitos humanos e inclusão: parte significativa da população LGBTIQA+ tem maior probabilidade de desenvolver uma perturbação mental. Como se diz em psicologia, o que não vira palavra, vira sintoma.
|
|
|
|
A convergência entre a cultura/artes e a saúde mental constitui uma realidade em expansão e aprofundamento, incluindo-se a prescrição cultural nessa visão multissectorial e holística.
|
|
|
|
Empresas que implementam práticas de gestão de stress não promovem apenas aspetos de saúde mental, também desbloqueiam a criatividade e a produtividade, criando um círculo virtuoso de bem-estar.
|
|
agenda
|
|
por falar em saúde mental
|
|
|
|
|
|