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A Equipa de Colaboração Interdisciplinar para Resposta a Situações Sinalizadas para Internamento Compulsivo em Arouca e Santa Maria da Feira avalia os casos sob todas as abordagens possíveis
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A Equipa de Colaboração Interdisciplinar para Resposta a Situações Sinalizadas para Internamento Compulsivo em Arouca e Santa Maria da Feira avalia os casos sob todas as abordagens possíveis

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

A Equipa de Colaboração Interdisciplinar para Resposta a Situações Sinalizadas para Internamento Compulsivo em Arouca e Santa Maria da Feira avalia os casos sob todas as abordagens possíveis

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

O projeto que junta saúde e justiça para orientar casos de doença mental

Em Arouca e Santa Maria da Feira, profissionais das duas áreas reúnem-se para analisar e avaliar perturbações e comportamentos que geram alarme social e situações judiciais. Um projeto único no país.

Os casos colocados sobre a mesa de uma sala no quarto piso do Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga (CHEDV), em Santa Maria da Feira, têm pessoas, histórias, problemas, doença, sofrimento. Todos os meses, uma equipa multidisciplinar reúne-se para analisar várias situações. São, habitualmente, 13 profissionais de áreas diversas: da Psiquiatria do CHEDV, dos cuidados de saúde primários do Agrupamento de Centros de Saúde Feira/Arouca, dos serviços de intervenção nos comportamentos aditivos da Feira, do Ministério da Justiça, da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. Analisam casos de perturbação mental, debruçam-se sobre situações agudas sem critérios para tratamento involuntário. Um trabalho em rede, uma intervenção articulada. Facilita-se a comunicação e poupa-se trabalho.

As situações são bastante diversas. Um episódio de violência doméstica chega ao tribunal, há interrogatório judicial, fazem-se perguntas, ouvem-se respostas, o juiz percebe que o arguido dá sinais de problemas psiquiátricos, provavelmente associados ao consumo de álcool ou drogas. Alguém agride alguém, há perturbação da ordem pública, chama-se a PSP, a vizinhança espreita ou tenta acalmar os ânimos. Não é a primeira vez, os vizinhos sabem quem é o responsável pelos desacatos, os autos começam a chegar ao delegado de saúde. Ou são os vizinhos que fazem queixa ou são os familiares da vítima ou do próprio agressor.

Um homem que fala sozinho, uma mulher que parece alheada do mundo. Doentes perdidos, sobretudo depois da pandemia, alguns sem diagnóstico psiquiátrico definido, outros com suspeita de adições. Há problemas, a comunidade sente que algo não está bem, as queixas vão parar às consultas de psicologia, às assistentes sociais do centro de saúde e das juntas de freguesia.

E outros casos. Tentativas de suicídio, alterações de comportamento, situações agudas de doença mental sem desfecho claro. O doente está ou não sinalizado? Há ou não diagnóstico de transtorno mental? Está ou não acompanhado pelos serviços clínicos?

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É às urgências do Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira, que chegam muitos doentes cujo acompanhamento levanta depois dúvidas e desafios à saúde e à justiça

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

A equipa nasce destas e outras necessidades sociais não resolvidas, associadas a comportamentos problemáticos por gerarem situações judiciais ou alarme social. A primeira reunião aconteceu a 19 de maio de 2020, o nome surgiu pouco depois: Equipa de Saúde Mental para Resposta a Situações Agudas sem Critérios para Internamento Compulsivo. Depois mudou a designação: Equipa de Colaboração Interdisciplinar para Resposta a Situações Sinalizadas para Internamento Compulsivo. O nome mudou, os objetivos não. Facilitar a comunicação entre a saúde e a justiça, avaliar situações sinalizadas na comunidade, agregar informação, definir um plano de atuação comum. A salvaguarda do bem-estar das pessoas referenciadas é a principal preocupação.

Bernardo Gomes, médico de saúde pública, delegado de saúde do ACES Feira/Arouca, está na equipa desde o início. “A saúde mental comunitária é muito difícil de trabalhar, genericamente. Há muito trabalho para fazer, mas sem controlar o que podemos chamar casos mais pesados em termos burocráticos, em termos legais, em termos clínicos, e por aí fora, não temos fôlego para o resto. E é isto que precisa de ser arrumado.”

E é isso que a equipa tenta arrumar, desde setembro de 2020. “Diagnósticos psiquiátricos cuja legitimidade para considerar um tratamento involuntário merecem um olhar muito especializado por parte da psiquiatria, mas também há sempre uma margem de subjetividade e circunstâncias que precisam ser discutidas.”

Três anos, 120 casos analisados e avaliados na área de influência do CHEDV, dos concelhos da Feira e Arouca. Mais de 90% são homens. A patologia mental grave e a patologia aditiva são as situações mais frequentes. 

Na prática, o que aquele grupo de pessoas faz é criar condições para que, sem grandes perdas de tempo ou procedimentos administrativos, os casos sejam analisados e discutidos de acordo com a especificidade de cada paciente. Cada situação. Cada história. “Todos os atores comunitários têm hipótese de falar entre si, discutir casos, e hipotética ou concretamente, formarem-se na área específica porque, na verdade, a área da saúde mental é complexa não só pela circunstância propriamente dita da doença, da parte da especialidade da psiquiatria e da abordagem da psicologia, mas também em termos legais e em termos de circuitos”, diz o médico.

As situações são, na sua maioria, sinalizadas na comunidade. Cristina Gama Pereira, médica psiquiatra do CHEDV, fala da dinâmica da equipa. “Por exemplo, em situações de violência doméstica associada ou não a patologia mental, associada ou não a consumo de substâncias, tentamos perceber como é podemos orientar esta situação. E vice-versa. Na justiça também há algumas questões de como é que podemos acompanhar casos que estão sinalizados, se já têm acompanhamento, se não têm acompanhamento, como podemos agilizar.”

Agarrar os que estão em território de ninguém

Três anos, 120 casos analisados e avaliados na área de influência do CHEDV, dos concelhos da Feira e Arouca. Mais de 90% são homens. A patologia mental grave e a patologia aditiva são as situações mais frequentes. Muitas sem diagnóstico definido. Muitos são casos pesados de doença e de carga social.

“O problema são os que estão em território de ninguém”, diz Ana Sousa, psicóloga do ACES Feira/Arouca. “Os vizinhos dizem que, às vezes, o homem fala sozinho, mas ele nunca veio a uma consulta psiquiátrica, já chegaram umas coisas ao tribunal, mas não há nada, e ninguém ‘apanha’ estas pessoas. Quando não há patologia estão nestes vários hemisférios e são essas que nos vão aparecendo.”

Ana Cláudia Nogueira, juíza de instrução criminal durante nove anos no Tribunal de Santa Maria da Feira, agora juíza desembargadora do Tribunal da Relação de Lisboa, faz parte da equipa inicial, esteve na génese, e partilha a sua experiência. “Ouvia diariamente arguidos em interrogatório que vinham detidos por crimes relacionados com violência doméstica. A maior parte, não sendo eu médica psiquiátrica ou psicóloga, tinha sinais de perturbações mentais, e mais de 90% adições, sobretudo álcool, mas também estupefacientes.”

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As situações não são muito diferentes das que ocorrem um pouco por todo o país, seja esta ou aquela comarca, este ou aquele agrupamento de centros de saúde, esta ou aquela comunidade, esta ou aquela pessoa. A diferença é que aqui houve uma conjugação de esforços no sentido de juntar os vários atores que têm um papel na receção, encaminhamento, tratamento e reinserção destas pessoas.

“Nessa fase, em que já tudo falhou, chegam à barra da justiça e nós temos algumas medidas de coação que podemos implementar, nomeadamente a sujeição a tratamento psiquiátrico e a sujeição a desintoxicação”, diz a juíza. “Mas eram medidas que, muitas vezes, ficavam no papel por falta de articulação com as estruturas de saúde. E não tínhamos uma resposta rápida para que a situação não evoluísse e não passasse de uma medida não detentiva para uma medida de prisão.”

Agora esses e outros casos são colocados em cima da mesa e discute-se a saúde mental de forma abrangente. Simplificam-se burocracias, desbloqueiam-se processos, desfazem-se possíveis equívocos.

O projeto é inovador, único no país, garantem. “Tem sido uma aprendizagem, as instituições mostram as dificuldades que têm no dia a dia e a partilha ajuda a desbloquear”, diz Bernardo Gomes, que acredita que, com este modelo de trabalho, o sistema flui. “É uma forma de trabalho em rede para resolver, de forma mais eficiente possível, situações que se poderiam arrastar do ponto de vista burocrático. E, nesse caminho, aprendemos juntos. É uma espécie de semente de articulação interinstitucional.”

"A saúde mental comunitária é difícil de trabalhar. Sem controlar os casos mais pesados em termos burocráticos, legais, clínicos e por aí fora, não temos fôlego para o resto. E é isto que precisa de ser arrumado."
Bernardo Gomes, médico de saúde pública e delegado de saúde

No tribunal, a juíza Ana Cláudia Nogueira já viu muitas pessoas em descontrolo. “É claro que aparecem detidas, é natural que estejam descompensadas, damos esse desconto, mas aparecem em claro desequilíbrio mental ao ponto de o percecionarmos claramente”.

E, desta forma, acredita a magistrada, o trabalho faz-se onde faz mais falta: ao nível da prevenção. “Isto vai ter um efeito que deveria ser estudado, de diminuição da reincidência, por exemplo. A partir do momento em que as pessoas estão acompanhadas, estão compensadas. Essas situações diminuíram do lado da justiça, o que tem um efeito altamente benéfico não só para o serviço de justiça, mas também para a sociedade que deve tratar as coisas na raiz.”

Adaptar a linguagem, perceber os tempos

Há respostas para vários tipos de patologias e diagnósticos. Muitas delas depressões major e perturbações bipolar. O hospital de dia de Psiquiatria do CHEDV garante encaminhamentos diferenciados, diz Vanessa Pais, psiquiatra da unidade, que destaca as mais-valias da equipa tanto na noção dos constrangimentos, como na gestão dos recursos. “Essas limitações existem de todos os lados, na parte do tribunal, na parte social, na parte clínica, e no acompanhamento que, muitas vezes, esbarra com a vontade do doente.” A nova lei da Saúde Mental, que entrou em vigor em agosto deste ano, veio ajudar a clarificar algumas situações que antes se tornava difícil analisar ou sobre as quais era difícil tomar decisões. Mas, claro, sentados à mesma mesa, os profissionais encontram outros caminhos.

“Quando estamos a falar de pessoas que não têm critérios para tratamento compulsivo — ou involuntário, nos dias de hoje — isso continua a ser uma questão: os doentes podem não querer. Perceber que, muitas vezes, não é possível ir por ali – não porque não haja um empenho das instituições, não porque não haja um empenho dos profissionais, mas sim porque, efetivamente, há limites e é preciso pensar de outra forma – foi muitíssimo importante.” No fundo trata-se de encontrar estratégias e, quando não as há, pensar porquê.

Cristina Gama Pereira (psiquiatra), Ana Cláudia Nogueira (juíza), Bernardo Gomes (delegado de saúde) e Ana Sousa (psicóloga) fazem parte da equipa que junta outros nove profissionais

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De que se fala quando se fala em determinadas situações? A linguagem da saúde é hermética, a da justiça também. A justiça trabalha de uma maneira, a saúde de outra. A comunicação de uns não é a comunicação de outros. Por isso a equipa tenta encontrar uma linguagem comum. Como se faz a referenciação de um doente? O tribunal pede acompanhamento psiquiátrico baseado em que aspetos? Como se faz a avaliação de um problema mental? “As primeiras reuniões foram muito interessantes. Houve necessidade de encontrar, primeiro que tudo, uma linguagem comum para nos entendermos, para comunicarmos”, lembra a juíza Ana Cláudia Nogueira.

Mas havia — e há — também a questão dos tempos. Os timings das instituições não coincidem. O tempo da comunidade, que tem o vizinho do lado a causar distúrbios, é um. O tempo do tribunal, que determina uma pena para ser cumprida, é outro. O tempo para hospital dar uma resposta, e assumir acompanhamento ou tratamento, é outro. Se termina o tempo da pena e o doente ainda não foi visto, perde-se esse timing. O tempo do profissional de saúde para motivar um doente para tratamento de forma voluntária pode demorar. “Se não houvesse esta comunicação, perdia-se este timing”, lembra a psicóloga Ana Sousa.

A justiça trabalha de uma maneira, a saúde de outra. A linguagem de uns não é a linguagem de outros. Por isso a equipa tenta encontrar um caminho comum. Como se referencia um doente? O tribunal pede acompanhamento psiquiátrico baseado em que aspetos? Como se avalia um problema mental?

A equipa começa a abrir mais portas, convidou as forças de segurança, PSP e GNR, a falarem de dificuldades, limitações, formas de atuar. E vai continuar a fazê-lo. O grupo quer reunir dados epidemiológicos que permitam conhecer a situação da região e que ajudem a definir estratégias futuras, nomeadamente ações específicas na área de saúde pública. Quer também  fazer formação interdisciplinar. “A saúde não quer ser uma força armada, não quer ser uma força policial, nós não servimos para isso, nós servimos para a saúde”, diz a psiquiatra Cristina Gama Pereira.

E o que acontece aqui, nestes dois concelhos, nesta comunidade é perceber-se que há questões de saúde que têm influência em questões de justiça. “E, para isso, estamos cá para ajudar.”

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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