Em pleno século XXI, continuamos a assistir a ameaças e ataques à integridade física e mental dos/das cidadãos/cidadãs em função da orientação sexual, identidade de género e características sexuais. A situação agrava-se quando alguns destes comportamentos são reforçados por profissionais da área da saúde mental (neste caso específico, colegas de profissão, mas não só) que deveriam ter na base da conduta profissional níveis de competências essenciais e respeitar um conjunto de orientações, visando garantir as boas práticas, dentro e fora do contexto de consulta.

Apesar de a psicologia ser uma ciência assente em evidências científicas, isso não significa que as opiniões e crenças pessoais de alguns/algumas destes/destas profissionais o sejam. As recentes declarações de algumas personalidades do grande público são um exemplo disso mesmo, sendo que a validade das mesmas em termos científicos é nula. Há várias décadas que profissionais das mais variadas áreas de formação e especialidades, a nível nacional e internacional, se dedicam à investigação científica sobre estas temáticas, com resultados irrevogáveis.

A desinformação é uma arma perigosa, podendo tornar-se fatal e irremediável. O estigma e a exclusão social incidem, sobretudo, sobre grupos marginalizados e minorias, como é o caso da população LGBTIQA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Intersexo, Queer, Assexuais/Aliados/as, Pansexuais e o símbolo ‘+’ para representar outras sexualidades e identidades de género), mais especificamente a população trans e não binária, exposta a níveis de stress e a variáveis externas negativas específicas que conferem um risco acrescido para a sua saúde mental. Contudo, os processos sociais que estão na base das diferentes formas de discriminação funcionam de forma distinta para cada grupo minoritário. Por isso, é muito importante percebermos as especificidades de cada comunidade.

Quando falamos em processos de discriminação e preconceito dirigidos à comunidade LGBTIQA+, estes são facilmente explicados através da tríade dos três i’s: insulto, invisibilidade e isolamento. Basta pensarmos na quantidade de palavras e expressões ofensivas tantas vezes usadas por quem se quer referir a estas pessoas. Conseguem imaginar o esforço sobre-humano que as mesmas têm de fazer, durante uma vida inteira, para encontrarem mecanismos internos, externos e sociais que lhes permitam uma total anulação e rejeição destes insultos?

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Ao contrário de outras características (ex: cor da pele, dos olhos, deficiência física e/ou o sexo biológico), a orientação sexual e a identidade de género não são condições visíveis – isto é, não é (à partida) possível identificar uma pessoa LGBTQA+ a não ser que a mesma o manifeste. No decorrer do desenvolvimento da(s) sua(s) identidade(s), algumas destas pessoas, a determinada altura da vida, têm a necessidade de fazer o coming out (“sair do armário”), mas, em contrapartida, outras preferem manter-se invisíveis para se protegerem do estigma.

De um modo geral, as histórias de vida destas pessoas são marcadas pelo isolamento, devido à dificuldade e medo em assumir quem são, bem como em conhecer e estabelecer relações com pessoas da comunidade (promovendo mecanismos de empatia e de identificação), uma vez que tendem a estar isoladas. Estas três dinâmicas estão diretamente ligadas entre si e retroalimentam-se negativamente, com custos para a saúde mental e deixando marcas profundas em quem as vive.

É por estes (e por tantos outros) motivos que o silêncio é muitas vezes um mecanismo de autodefesa adotado pelas vítimas desta incompreensão social e injustiça moral – como se de uma armadura se tratasse. Contudo, este escudo protetor conduz a uma falsa sensação de segurança e de controlo, uma vez que perpetua a condição de solidão. O medo de serem maltratadas e, em casos mais severos, temerem pela própria vida, leva algumas destas pessoas a rejeitarem a sua própria orientação sexual e/ou identidade de género, por considerarem que aquilo que sentem e/ou que são é algo pecaminoso (peso da religião), mau e/ou negativo para elas e para quem as rodeia (homofobia e/ou transfobia internalizada).

Como se diz em psicologia «o que não vira palavra, vira sintoma» ou «quem cala somatiza». E o que é que isto significa? Silenciar as emoções não faz parte de uma boa higiene mental e a curto, médio e/ou longo prazo trará problemas para a saúde de modo global. A somatização [https://observador.pt/explicadores/o-que-sao-sintomas-psicossomaticos-9-perguntas-sobre-as-emocoes-que-provocam-dores-fisicas/] é um conjunto de sintomas físicos que produzem mal-estar e tem origem em conflitos internos que são, muitas vezes, provocados pelo evitamento, pelo silêncio e pelo medo da confrontação com sentimentos geradores de sofrimento. Nas doenças psicossomáticas o indivíduo manifesta a angústia, a dor e a ansiedade (entre outras) de diferentes formas (ex: enxaquecas, comichão/urticária, gastrites/úlceras, náuseas, diarreia e até tensões musculares, etc) – tudo isto, a somar às condições psicológicas previamente existentes.

A vivência de experiências de rejeição e violência severas manifesta-se muitas vezes por sentimentos, atitudes e (re)ações associadas à baixa autoestima, ao fracasso pessoal, à insegurança, ao sentimento de incompetência e de inferiorização generalizadas. Uma parte significativa desta população tem uma maior probabilidade de desenvolver uma perturbação mental (sobretudo, do humor – quadros depressivos – e de ansiedade), bem como comportamentos autolesivos e ideação suicida. Isto é resultado do descrédito, da indiferença, da invisibilidade, da rejeição, do preconceito e da discriminação (as verdadeiras doenças sociais) que estas pessoas sofrem ao longo do ciclo vital, não só por parte da sociedade civil, mas, também, muitas vezes, dentro da própria família e do grupo de pares.

Tenho ouvido, sobretudo em contexto escolar que, ultimamente, se fala demasiado sobre esta comunidade. Que “qualquer dia, o alfabeto não é suficiente” (sic), a propósito da sigla LGBTIQA+. Que estão fartos/fartas de marchas. E que “essas pessoas só querem dar nas vistas e depois queixam-se que são discriminadas” (sic). O facto de estas considerações existirem justifica, por si só, a necessidade de continuarmos a falar (e muito) sobre estas questões. A existência de uma realidade que nos é distante não significa que não tenhamos responsabilidade moral e social sobre ela. E ignorá-la ou invisibilizá-la só perpetua mecanismos de discriminação que comprometem e adiam todas as mudanças necessárias.

Se continuamos a evocar estes temas, a procurar um sentido de pertença e de identificação (em letras, pronomes e/ou lugares), a marcharmos e a sermos quem realmente somos (de uma forma, mais ou menos, irreverente) é porque continua a ser primordial e indispensável fazê-lo. Cada vez que o fazemos estamos a celebrar e a honrar o que já se conquistou a tanto custo, a homenagear quem ficou pelo caminho na luta, a representar quem ainda não conseguiu uma oportunidade e um lugar para ser quem realmente é, mas, também, a relembrar que ainda há muitas conquistas, no horizonte, por afirmar. Com o crescimento dos discursos de ódio, um pouco por todo o mundo, assumir que as liberdades, direitos e garantias das pessoas LGBTIQA+ estão assegurados é só uma ilusão. E, enquanto assim for, nunca será demais falarmos sobre tudo isto.

É, então, fulcral continuarmos a construir uma consciência social menos opressora e mais igualitária face a esta população e a todas as outras minorias. O mundo está em constante evolução e a diversidade, em todos os seus prismas, não deve ser, de forma alguma, ignorada. Não podemos, jamais, permitir que a nossa posição de privilégio nos impeça de ver para além de nós próprios/próprias.

Em suma, é o dever de todos/todas nós contribuir para uma sociedade mais inclusiva, igualitária e respeitadora dos Direitos Humanos e lutar contra a invisibilidade, o preconceito e a discriminação. E, em última instância, permitir a todos/todas serem quem, genuinamente, são, de forma livre.

Sara Forte é psicóloga e sexóloga clínica. Tem uma especialização em Igualdade de Género e Psicopatologia do Adulto ao Idoso e experiência em exclusão e diversidade social, sexologia clínica, terapia de casal e Direitos Humanos. É técnica de apoio à vítima e formadora especialista em questões LGBTIQA+ (tema sobre o qual é também ativista).

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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