Histórias de luto e sobrevivência |
“Homem, operário fabril, 52 anos, vive em Penafiel. Casado, duas filhas, Sandra e Raquel. A mulher trabalha na Câmara Municipal.” |
A história é fictícia, as palavras podem ser verdadeiras. Este doente pode não existir assim, com estas características, mas na memória de Susana Sousa Almeida há outros que encaixam bem nesta descrição. Ou noutra parecida. E ela lembra-se bem. Lembra-se de todos, garante a psiquiatra do Instituto Português de Oncologia (IPO) Francisco Gentil, no Porto, convidada do último episódio da Série “Do Outro Lado”, que lançámos este fim de semana. |
“Basta ler as primeiras linhas do registo para me virem logo à cabeça. O diagnóstico, o que aconteceu, quando entrou. Algumas coisas depois ficam difusas. Mas do principal não esqueço. Nunca.” |
A médica está habituada a acompanhar pessoas com histórias duras em que o medo e a morte pairam a curta distância entre outras de esperança e superação – felizmente, garante, são mais os segundos casos do que os primeiros. Mas ela, como profissional de saúde nestas circunstâncias, tem de estar preparada para todas. E ajudar os pacientes e as famílias – nomeadamente a prepararem e enfrentarem o luto. |
“Quando o prognóstico não é bom e um doente se aproxima do fim, há barreiras que habitualmente aprendemos a gerir”, diz do outro lado da linha, ao final de um dia de consultas, a propósito da relação que se cria com os pacientes. “E nós temos de saber preparar-nos a adaptar-nos às necessidades de cada um. Há quem consiga reconciliar-se com a família, quem consiga ter conversas difíceis, quem consiga dizer que não quer continuar com os tratamentos. E há outros que morrem como vivem e têm dificuldade em tornar-se outras pessoas. Seja qual for o caso, o que temos a fazer é garantir-lhes tranquilidade.” Ou, como a própria diz no vídeo, “o melhor trabalho que conseguimos fazer é acompanhá-los até ao fim”. |
Assistente graduada sénior de psiquiatria do IPO-Porto, neste vídeo do Mental, a secção do Observador totalmente dedicada à saúde mental, a médica falou sobre o caso de “Pedro”, doente jovem, com um cancro terminal, que acompanhou durante cinco anos e que morreu com a evolução da doença, tendo entretanto desenvolvido uma depressão grave. |
“Custou-me fazer o luto”, diz com a voz que parece tremer algumas vezes. “Mas todos os lutos devem doer.” |
De cada vez que chega uma primeira versão dos vídeos “Do outro lado”, a expectativa antes da primeira visualização é sempre grande. A ideia não é chocar, abanar, impressionar, ficar sem reação. O objetivo é outro: conhecer a visão daquele profissional de saúde. Como aquela história fez aquela pessoa, naquele momento ou mais tarde, mudar de ideias ou reforçar convicções, alterar rumos ou vincar os que já tinha. Mas já sabíamos que o relato da psiquiatra era duro. A jornalista Sofia Teixeira, que conversou com ela ainda antes do verão, já nos tinha avisado. |
E depois… confirmou-se. Chegou aquela descrição tão equilibrada e sensível, tão humana e profunda, tão ponderada e certeira. Não quero revelar demais, prefiro deixar a curiosidade para verem o vídeo de seis minutos e 18 segundos trabalhados pela Sofia, captad0s pela Kimmy Simões e editados pelo realizador Nuno Neves. |
“Mas por cada história que não acaba bem, tenho muitas, tantas, que têm bons desfechos”, diz Susana Sousa Almeida. “Tenho um ‘Pedro”, um ‘Hugo’, um ‘João’. Mas tenho mais de vinte Marias a quem já dei alta. Algumas delas para a vida. E isso ajuda-nos a ter esperança para os que perdemos.” Como o “Pedro” que contamos no vídeo. Que morreu no mesmo ano de quatro outros doentes que eram seguidos pela psiquiatra e cujas histórias, rostos, famílias conheceu tão bem. “E de que me lembro, claro.” |
Em vinte anos de profissão, Susana Sousa Almeida já acompanhou muitos casos. Muitas famílias. E conhece também os mecanismos da doença. Oncologia foi a primeira escolha quando concluiu o internato geral, e passou dois anos e meio a palmilhar os corredores do IPO-Porto a caminho dessa especialidade…. até que percebeu que não seria por ali. O interesse era outro. Um para o qual era tantas vezes chamada: para o contacto com os doentes, para dar más notícias, para os ajudar a percorrer esse labirinto tão apertado e tantas vezes sem saída aparente em que entra um doente oncológico. |
Vai daí, mudou para psiquiatria, mudou para Londres, onde concluiu a especialidade no Kings College, mas não mudou de destino: cinco anos depois, com uma passagem entretanto pelo Hospital Magalhães Lemos, regressou à casa de partida, agora como psiquiatra. |
Professora assistente na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Susana Sousa Almeida é, desde há uns meses, diretora do Serviço de Psiquiatria do IPO-Porto. A médica que não gosta de chamar os doentes pelo intercomunicador – “prefiro ir buscá-los à sala, ver como estão naquele ambiente, se vêm sozinhos, quem os acompanha” – ajuda a formar os jovens profissionais e, também, a reconhecerem os próprios sinais de alerta quando não estão bem. |
“Se não tivermos autocuidado, é muito fácil desenvolvermos um problema de saúde mental” diz a propósito da prevalência de burnout entre as profissões ligadas ao cuidar. Médicos, enfermeiros ou profissionais das forças de segurança estão na linha da frente para esta síndrome cujos sintomas se vão instalando aos poucos e que pode ser verdadeiramente incapacitante. “Temos tudo o que as outras pessoas todas têm. E perdemos doentes, perdemos colegas, perdemos amigos, além de trabalharmos muitas horas. O resultado pode ser perigoso.” |
E isso torna os profissionais mais preparados para se protegerem? Fá-los reconhecer com mais facilidade que podem precisar de ajuda? Nem por isso. Não é por acaso que se diz que os médicos são maus doentes e quem lida com situações duras como os de um hospital especializado em oncologia sabe bem o que isso é. “Temos uma tremenda dificuldade em confiar o nosso tempo a outro colega. A nossa tentação é falar no corredor, parar a medicação, faltar às consultas. E fazermo-nos fortes, claro.” |
Qual a solução para isso? Algumas universidades já reconheceram que o problema existe e tentam criar respostas para o problema. Mas o preconceito continua lá. |
Da próxima vez que for ao médico, seja qual for a especialidade, pergunte-lhe como é que ele/ela se sente. Atrás da bata branca pode estar alguém que precisa de apoio e pode ser que uma palavra ajude a dar o passo. |
Entretanto, pode ver aqui tudo o que temos continuado a publicar no Mental, nomeadamente os outros vídeos da série “Do Outro Lado”. |