Talvez não pareça óbvio que, no espaço psicoterapêutico, durante as consultas, também eu sinta uma certa angústia e, admito, por vezes, um impulso de “salvar” a outra pessoa, que deve ficar contido. Quando recebo pessoas vítimas de relações tóxicas, isso invariavelmente acontece-me.

Poderíamos pensar em sentido clássico e dizer que estou a projetar as minha próprias vivências e dificuldades na pessoa que recebo em consulta. Todos nós – homens e mulheres – já experienciámos alguma relação tóxica, amorosa ou outra. E eu não sou exceção. Mas não é disso que se trata quando os meus sistemas de alarme se ativam, nesses casos.

Um dos grandes fatores de alerta é que, quase sempre, as pessoas que me procuram sentem-se muito culpadas e põem a hipótese de serem elas “a pessoa tóxica a precisar de tratamento”, enquanto me descrevem um parceiro volátil, pouco empático e emocionalmente perigoso, sem que, muitas vezes, estejam bem consciencializadas disto.

Os alicerces de manipulação estão estabelecidos e, com eles, o terrorismo emocional. Se está a viver esta situação, o seu bem-estar emocional, e até mesmo o físico, vão sofrer um abalo vertiginoso.

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“A nossa relação não se explica, Dra. Tenho a certeza de que estávamos destinados, porque embora seja tão difícil, às vezes, é também tão intenso… um conto de fadas. Nem imagina, tínhamos os mesmos gostos e interesses, completamente compatíveis. Fazíamos planos grandiosos, queríamos as mesmas coisas… Poucas pessoas viveram algo assim. É verdade que as coisas agora são mais complicadas… Mas o amor verdadeiro é assim, não é? Tudo perde o valor e temos de abdicar para vivermos a nossa relação da vida… E quando estamos destinados é natural que passemos por muitas provações. Por ser tão custoso é que eu tenho a certeza de que nos pertencemos.”

(transcrição de caso real)

Não! Não! O amor não é muito difícil, nem nos vem testar.

O amor não nos obriga a deixar para trás a pessoa que somos e a vida que temos. O amor também não é um conto de fadas, nem é natural que um parceiro ou parceira seja, aparentemente, em tudo parecido connosco – cada ser humano é único, tem direito à sua individualidade e o que deve ser verdadeiramente sedutor e mágico é precisamente a diferença que descobrimos no outro.

Enquanto pessoa, mulher e psicoterapeuta, é minha convicção que o amor dá trabalho. As relações exigem investimento e cuidado, respeito e afetos, é certo. Porém, não estamos a falar de amor quando uma relação anula um dos parceiros, lhe retira o respeito e a dignidade e o instrumentaliza, em ciclos constantes de atração – terrorismo emocional – rejeição.

E é assim que começo a sentir a tal angústia de que falava no início: quando recebo pessoas no consultório que começam por me explicar isso, indicando-me todos estes sinais de alarme, sem que compreendam o que estão a viver realmente. Quando me descrevem uma relação tóxica, traumática, com características abusivas, em escalada de agressividade, onde só há espaço para um e para as suas próprias motivações e desejos. E, ainda assim, não é incomum a pessoa que escuto não ter a realização (ou não a ter totalmente) de que esta relação é destrutiva.

A destruição proporcionada pelas relações tóxicas pode ser, e habitualmente é, de vários níveis. Tudo começa com o distanciamento dos amigos e da família e com um sentimento de ansiedade e alerta constantes, em que a vítima aceita a culpa de a relação “já não ser um sonho tornado em realidade”, e toma para si a responsabilidade de “melhorar”, de “dar mais à relação”, de satisfazer o parceiro para que tudo volte a ser “como antes”.

Da minha experiência clínica, este é o verdadeiro “terrorismo emocional”: a busca por um relacionamento saudável, numa relação que nunca o foi e não poderá vir a ser. E esta impossibilidade gera uma derrocada no bem-estar das mulheres e homens que se enredam em relações como estas.

O que vem a seguir é a demolição: desorganiza a sua vida diária, perturba os sus afetos, retira o seu poder pessoal, deixando-o paralisado para cuidar de si, do seu trabalho, dos seus projetos pessoais e para compreender que aquilo que está a viver não é amor e afastar-se.

Converso com muitas pessoas – sim, é verdade que são mais as mulheres que têm este tipo de vivências na relação com alguns homens – que me descrevem um sentimento de alienação de si mesmas e do mundo, já não se lembram do que lhes dava prazer antes de esta relação lhes abalroar a vida. Esqueceram os planos e objetivos, não têm sonhos, nem qualquer convicção de que os mereçam e não conseguem estar em círculos sociais. Sobretudo, não se sentem minimamente confiantes de si mesmas e, por isso, parece-lhes impossível, conquistarem o que quer que seja nas suas vidas. As suas essências, as suas identidades estão retalhada, vazias de energia, mortificadas.

Lembro uma mulher que conheci que passou meses deitada no sofá e saía apenas para cumprir obrigações básicas. Quase não interagia com ninguém e, por isso, ninguém tinha oportunidade de perceber que o comportamento dela estava “diferente”, que o seu peso tinha alterado e que raramente dormia mais do que três ou quatro horas. Este zombie que ela parecia ser naquele momento, ainda sentia que esta relação lhe estava destinada, que se o relacionamento terminasse ia perder a única oportunidade de amar e ser feliz. “Quando é que vou ter a oportunidade de encontrar a minha alma gémea outra vez?”

Parece confuso, não é? Pois é assim que estas pessoas se sentem: muito confusas, emocionalmente dormentes, apáticas, sem gosto pela vida, isoladas. Tão angustiadas e amedrontadas que lhes parece impensável tomar as rédeas das suas vidas e tomarem decisões (de qualquer tipo), aproveitarem novas oportunidades e, frequentemente, pedir ajuda.

“Eu estou louca, não estou?”

Esta é das questões mais dolorosas que já ouvi — há poucas coisas tão dilacerantes como alguém deixar de se reconhecer, sentir que os seus valores e princípios foram quebrados e que os seus comportamentos não refletem quem julgavam ser. É muito doloroso quando alguém já não confia no seu próprio julgamento, tem vergonha de si mesma e sente que toda a infelicidade e conflito que vê à sua volta é por sua culpa.

Em muitos casos, todos estes sintomas existem mesmo após o fim da relação, pois comportam-se como um quadro de stress pós-traumático. Ou seja, eventos da relação ou sentimentos espoletados por ela podem ser revividos se houver algum gatilho para tal, reativando o elevado sofrimento proporcionado pela relação, mesmo quando já está definitivamente terminada.

Esta permanência de sintomas, esta resposta pós-trauma, pode explicar o que algumas pessoas sentem e que as fazem questionar se “estarão ‘estragadas’ para sempre?”. Muitas vezes instala-se um padrão de ansiedade em que as vítimas evitam conhecer pessoas novas, sentem dificuldades em confiar nos outros e consideram-se incapazes de voltar a partilhar a intimidade, embora interiormente desejem muito recuperar e voltar a sentir que se identificam com os seus afetos e é possível reconstruir a identidade e a relação com o mundo cá de fora.

No fundo, o que me fez chegar a este tema é a necessidade e a vontade de dizer que viver e terminar uma relação tóxica é um desafio qualitativamente diferente daquele que conhecemos quando vivemos e terminamos relações que consideramos saudáveis. Não existe “apenas” um luto, ou tristeza ou necessidade de reajustar o que conhecemos da nossa rotina. O que fica, na maioria das vezes, é um sentimento de desamparo enorme que desponta do mundo interno da vítima porque ela nem em si sente que pode confiar, já que não se reconhece. Permanece também a dúvida e a dificuldade em tomar decisões, estabelecer novos planos e, mais ainda, concretizá-los. Não ficam memórias boas para lembrar, ficam ruínas, e uma vida para restaurar.

Mas a restauração é possível, acontece. Embora, tal como o amor, exija muito trabalho. Exige, porque também é amor, por si.

Diana Cruz é psicóloga clínica e terapeuta, doutorada em Psicologia Clínica da Família. Tem-se dedicado sobretudo à atividade clínica mas também à investigação e publicação na área da psicologia e saúde mental. É autora de Não É Amor, é Uma Relação Tóxica (ed. Manuscrito).

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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