Qualquer cidadão que actualmente aceite fazer parte de um júri que avalia propostas em concursos públicos ou for designado gestor de um contrato público, tem de subscrever uma declaração de inexistência de conflito de interesses, na qual afirmará não estar abrangido por qualquer conflito de interesses relacionados com o objecto ou com os participantes no procedimento em causa e que dará imediato conhecimento a quem o designou, se a qualquer momento tiver conhecimento da participação no procedimento em causa, de algum operador económico relativamente ao qual possa existir um conflito de interesses.
Cumpre esclarecer que a existência inicial ou a qualquer momento do procedimento, de conflito de interesses é uma situação objectiva e não depende da avaliação subjectiva por parte do declarante sobre a sua honradez e independência. Ainda que seja a pessoa mais integra do mundo, ou não há objectivamente possível conflito de interesses, ou a pessoa simplesmente não pode aceitar a incumbência.
As situações de conflitos de interesses surgem na vida profissional com mais frequência do que comummente se julga e podem constituir casos extremos de puro impedimento previsto e tipificado na lei ou resultam dos usos e costumes pacificamente aceites por todos. É óbvio que um professor não deve avaliar e classificar um seu familiar; é evidente que quem vai avaliar o licenciamento de um projecto num Município, não o deve fazer, se o requerente for um familiar seu; será absurdo que uma empresa de auditoria designe para auditar uma determinada entidade, um dos seus colaboradores que por coincidência, até é familiar do detentor ou do administrador da entidade a auditar. Os exemplos serão centenas.
Não é por acaso que quando alguém testemunha num Tribunal, uma das primeiras perguntas feitas pelo Juiz é se a testemunha tem algum interesse no processo em questão ou é parente do acusado ou do queixoso. Com isto o Tribunal não está a duvidar da honradez do depoente, mas quer ter noção da sua independência objectiva face às partes, pois tal facto conta para a ponderação do resultado do seu depoimento.
Na realidade, para qualquer pessoa que tenha família, as opções de carreira que decide tomar – entre estas a aceitação de cargos governativos – certamente têm repercussões, nos restantes membros do seu agregado.
Não é necessária a publicação de alguma norma, para que os membros do agregado familiar de um membro do governo, saibam que devem guardar reserva sobre o que casualmente ouçam ou tomem conhecimento, ainda que involuntariamente, sobre matérias que o seu familiar governante tem necessidade de trazer com ele para casa.
Não é surpresa para ninguém que os familiares de um membro do governo, estejam relativamente mais condicionados no seu comportamento público, sob pena de criarem constrangimentos e em casos extremos até conduzirem à demissão do seu familiar das funções governativas. Em 1977, num governo do Dr. Mário Soares, o ministro da Indústria demitiu-se porque o seu filho participou no assalto a um Banco. Não tinha de o fazer, porque o seu filho era maior e vacinado, mas a ética que perfilhava a isso o motivou.
Por conseguinte, quem aceita um cargo governativo tem de ponderar e partilhar com os seus familiares, as consequências para a vida corrente de cada um, da tomada dessa decisão.
Na própria sociedade civil, estas questões éticas e de transparência são colocadas permanentemente nos departamentos de compliance. Não deve aceitar o lugar de administrador em qualquer entidade pública ou privada, uma pessoa que tem conhecimento que o seu cônjuge, filho ou irmão, é dono de uma empresa que é um habitual fornecedor ou concorrente a fornecimentos dessa entidade. Portanto ou obtém o acordo do familiar que não mais concorre a esses fornecimentos ou simplesmente não aceita o lugar, para não prejudicar o familiar. Em pouca coisa da nossa vida existe o melhor de dois mundos e em questões de ética e transparência, ou escolhe um ou escolhe o outro. Não há alternativa à obrigação de optar.
Um membro do governo não pode cair na suspeição de existência de qualquer tipo de favorecimento a familiares, independentemente de — avaliada a “suspeição” em concreto — se vir a demonstrar que não existiu qualquer compadrio ou amiguismo. Mas é exactamente porque não é possível avaliar cada situação em concreto, que o familiar ou as suas empresas, simplesmente devem abster-se de qualquer tipo de relacionamento comercial e muito menos candidatar-se a subsídios dependentes da tutela do seu familiar governante. Cada situação vista por si, pode até ser profundamente injusta, mas aquilo que hoje se designa por compliance, visa assegurar preventivamente a manutenção da integridade e reputação de uma instituição, empresa ou órgão político.
Até ver, só exerce funções políticas e cargos de administração pública ou privada, electivos ou de nomeação, quem a isso se dispuser. Não existe conscrição para ser ministro, como existe para um soldado russo ir combater para a Ucrânia. Só existem convidados e se estes entendem, que a aceitar o convite, fica ele ou fica a sua família, sujeita a condicionalismos específicos que não pretende, tem bom remédio: não se candidata ou não aceita a nomeação.
Apresenta-se muitas vezes contra esta posição aqui expressa o argumento da impossibilidade de contratar ou convidar pessoas qualificadas com tantas restrições deste teor.
É um argumento descaradamente falacioso. De facto, é sempre na confiança pessoal do chefe de governo, do partido ou na carreira partidária, que reside o critério de escolha dos titulares de cargos políticos e não nas qualificações, que mesmo quando existam, são meramente subsidiárias. E se dúvidas houvesse sobre isto, a deputada socialista Isabel Guerreiro é disso prova bastante.