A mais que reconhecida eleição de Joe Biden lançou o Partido Democrata numa luta interna entre moderados e radicais, coisa que ainda não começou a sério entre os republicanos. Até agora, a resposta de Biden é uma lição para americanos e europeus: os radicais afastam eleitores e prejudicam o bom governo. E enfrentam-se. Mas a guerra não está ganha.

Poucos dias depois das eleições americanas, nascia um site sinistro. O Trump Accountability Project pretendia, nas suas próprias palavras, garantir que nenhum membro da Administração Trump obtinha propostas para publicar livros, participar em programas de televisão ou trabalhar na iniciativa privada, tirando de alguma forma partido da experiência política tida. Qualquer pessoa com um módico de respeito pela liberdade só pode ficar horrorizada com a ideia e quem sinta um mínimo de repulsa por saneamentos políticos achará profundamente ofensivo o convívio, mesmo que distante ou apenas insinuado, com a iniciativa. Mas ela existiu e teve pelo menos algum incitamento da congressista Alexandria Ocasio-Cortez (AOC). A boa notícia, porém, é que poucos dias depois, invocando a vontade de estarem alinhados com a ideia de reconciliação nacional do presidente-eleito Joe Biden, o site e o projecto fecharam portas.

Claro que ninguém com espírito crítico acredita que os autores mudaram de convicções ou de vontade persecutória. Simplesmente, a atitude de Biden tornou aquele discurso e aquele projecto intoleráveis no actual círculo de poder dos democratas. E é essa uma das grandes diferenças entre Biden e Trump. O presidente-eleito põe na ordem os radicais do seu partido, o presidente em funções acicata os do seu lado. Um procura moderação, o outro procura radicalização.

Nas últimas semanas, as notícias de movimentações dentro dos partidos Democrata e Republicano são disso reveladoras.

Nos republicanos, Ted Cruz, que em 2016 se recusou a apoiar Trump, agora dá voz ao discurso do presidente sobre as eleições. A vontade de lhe herdar o eleitorado é maior do que os princípios que então fingiu ter. Sobram alguns moderados e sensatos, que apelam ao respeito pela verdade eleitoral e pela regular transição. Ainda são poucos.

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Do outro lado, as informações que chegaram aos jornais sobre as reuniões entre os congressistas democratas eleitos também contam uma história, mas bem diferente. AOC veio dizer que os seus colegas moderados não sabem usar as redes sociais, onde a própria é uma estrela, e mobilizar os jovens cheios de causas. E que essa é uma das razões do insucesso nas eleições para o Congresso. Já os democratas moderados, que venceram onde os lugares são verdadeiramente disputados, explicaram à ala radical do partido que mencionar a palavra “socialista” ou legitimar o discurso de “defund the police” era inaceitável e receita para maus resultados em lugares onde o eleitorado é oscilante e teme a radicalização do partido democrata. Vencedores nesses círculos, tinham a razão eleitoral do seu lado.

O que se está a passar na América é uma boa lição para a Europa. Há quem lidere, combatendo os radicais do seu lado, no caso americano à esquerda, e vença. E quem anime um discurso polarizador e de ódio que está a levar à quase exaustão as instituições democráticas. No caso, a direita trumpista.

Do lado de cá do Atlântico, a coisa não é tão clara. Em Espanha, Sanchéz convive bem com um orçamento aprovado com uma sobrevivência do braço político da ETA que o Podemos lhe impõe. Já Macron sugou o voto socialista, sem ceder um milímetro perante a esquerda radical. Assim como o novo líder do britânico Labour está a reabilitar o partido. À direita, Merkel é um bom exemplo. A CDU alemã mais depressa fará uma coligação com o Verdes do que com a AfD. De resto, Sebastian Kurz, na Áustria, já o fez. Mas, por outro lado, o PPE ainda convive com Órban, que assumidamente não defende a democracia liberal, que é parte da matriz do Partido Popular Europeu.

A Democracia vive da convicção de que há alternativas de que não gostamos mas que são legítimas e cabe aos eleitores escolher, num ambiente livre e salubre. E que quem diaboliza os adversários, ou quem pensa diferente, na verdade só aceita o processo quando gosta do resultado. Biden vai ter problemas com os seus radicais. Nós teremos de ter com os nossos.