À medida que a rede de ligações familiares dentro do governo emerge, ficou indesmentível a colonização do Estado que o núcleo do PS aplica sem contemplações. Estão hoje no governo, como estiveram ontem em câmaras municipais e no parlamento, como estarão amanhã em organismos ou empresas públicas por nomeação – o seu percurso pode eventualmente ter mérito, no sentido em que desempenham as suas funções com aceitável competência, mas as suas oportunidades profissionais são unicamente definidas pela militância e pertença a famílias de poder dentro do aparelho partidário. Há sempre quem alegue que cada caso é um caso, com as suas devidas justificações curriculares. Mas tantos casos juntos não tem justificação: é um modus operandi de captura do poder, cada vez mais endogâmico e estreito – marido, mulher, pais, filhos, sobrinhos e afilhados. E que é, aliás, evidentemente nefasto num regime democrático – que, por definição, defende igualdade de oportunidades e rompe com modelos de governo monárquicos ou aristocráticos, nos quais as filiações familiares definem o acesso ao poder.

É inútil listar as implicações e discuti-las. Já muitos escreveram sobre isso e, de resto, essas implicações são de tal modo evidentes que justificam o enquadramento legal existente para impedir favorecimentos e contratação de familiares na administração pública. Da mesma forma que se tornou inútil rebater as explicações e justificações que alguns dos decisores políticos partilham – porque, lá está, são demasiados os casos para não ser visto como uma prática enraizada. Muito menos valerá a pena perder um minuto com as mentiras de Carlos César, que personifica o vazio ético do PS.

Útil é entender que o ponto central é político e de largo espectro: a distribuição de familiares por funções públicas e políticas pertence ao projecto de poder do PS, que sempre usou o Estado para colocar os seus mais próximos (amigos ou familiares) – quanto mais espalhado estiver um grupo político na máquina do Estado, mais difícil será retirá-lo de lá. É legal? Obviamente que sim – as nomeações políticas usufruem de uma ampla liberdade. É legítimo? Obviamente que não – ao abrigo do critério da “confiança política”, converte-se o exercício de funções públicas num mecanismo de colonização do Estado. Chamem-lhe nepotismo, cronyism, amiguismo ou favorecimento – há de tudo. E engana-se quem julgar que o problema começou ontem.

Diz-se que o poder corrompe e que muito poder corrompe muito. Ora, o PS não é moralmente inferior aos demais partidos com assento parlamentar – todos, à escala do poder que foram tendo, têm o seu cadastro no tema das nomeações partidárias (incluindo familiares). Acontece é que o PS foi, nos últimos 25 anos, o partido que mais tempo governou e o partido que governou com melhores condições económicas, sociais e políticas – e, portanto, com mais oportunidades de se instalar. E, ainda por cima, trata-se do partido que historicamente sempre tratou o regime como se este lhe pertencesse por direito – uma apropriação que está longamente documentada, desde a exploração dos recursos do Estado à rejeição da legitimidade política da direita. Ou seja, mais do que os outros partidos, o PS tem anos e anos disto: a agir como sendo o dono disto tudo e a fazer do governo um clube de amigos do primeiro-ministro.

É, aliás, nesse comportamento que o PS de António Costa não se distingue do de José Sócrates – que, sempre que o deixaram, colocou os seus mais próximos em lugares estratégicos, convertendo o exercício do poder numa oportunidade para aumentar a sua influência. E as semelhanças não acabam aí. Também a indiferença com que o país olha para tudo isto é exactamente a mesma. Sim, agora está tudo chocado com as ligações familiares no governo – porque o descaramento é de tal ordem que já nem se procura disfarçar. Mas onde estavam, por exemplo, quando António Costa colocou o “melhor amigo” a negociar a reversão da privatização da TAP, sem contrato e em nome do Estado português, para, no final, o nomear administrador da TAP? Ou quando os filhos desse “melhor amigo” de António Costa foram contratados para gabinetes de governo ou empresas sob alçada do Estado? O problema é e sempre foi o mesmo – para família ou amigos do PS, as portas do Estado estão abertas.

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