As instituições em Portugal são “pilhérias organizadas funcionando publicamente”, escrevia Eça em 1871. Evito, em princípio, generalizar excessivamente sobre Portugal e os portugueses, mas confesso que há momentos em que a coisa é irresistível e por estes dias a frase de Eça parece-me tão sólida e inabalável como uma demonstração matemática.

Vejamos. Oitenta por cento dos votos dos portugueses que habitam em outros países da Europa foram directamente das urnas para os caixotes de lixo. Tudo começou com PS e PSD a acordarem entre si uma ilegalidade: os votos da Europa seriam válidos mesmo que não acompanhados de uma fotocópia do cartão do cidadão. Acontece que a lei estipula expressamente que os votos não podem contar sem a tal fotocópia. O PSD depois voltou atrás. Mas já era tarde demais. Oitenta por cento dos votos, com ou sem fotocópia, tinham sido depositados nas mesmas urnas e era impossível distingui-los. Houve protestos. O Ministério da Administração Interna emitiu um comunicado onde manifestava, sem mais, a sua melancolia. Perante a enormidade do disparate, o Tribunal Constitucional decidiu unanimemente que a votação deverá ser repetida, atrasando por meses a tomada de posse do novo Governo. Prevê-se uma abstenção enormíssima nesta nova votação.

A Assembleia da República prepara-se aparentemente para negar ao Chega a vice-presidência a que ele constitucionalmente tem direito. Inventam-se rodriguinhos para justificar a ilegalidade do acto. Os rodriguinhos passam por uma litania de superioridade moral que torna pestíferos os eleitores do terceiro partido mais votado nas eleições. A Assembleia da República irá portanto, através deste procedimento discriminatório, negar, com virtuosos sentimentos e auroral boa consciência, a legitimidade da representação.

A Polícia Judiciária captura, no seu quarto, um miúdo de dezoito anos, que, segundo informação do FBI, havia confessado nas “redes sociais” a intenção de matar indiscriminadamente vários colegas na Universidade. Sucedem-se versões contraditórias sobre os planos e sobre o “arsenal” de armas que guardaria no seu quarto e questiona-se legitimamente se a intenção era real ou apenas a fantasia de um miúdo com problemas. Não importa. A comunicação social declara, ufana, que temos “terrorista”. Não um terrorista de extrema-esquerda, com provas dadas, como os das FP-25, nem um terrorista islâmico, como vários que por cá passaram ou por cá nasceram. Upa! Upa! Um terrorista “à americana”. O júbilo de ter um “terrorista” assim não se conta. As televisões enchem-se de uma chusma de psicólogos que explicam o verosímil perfil do miúdo, o João. O país mergulha, atónito, à pala do João, no oceano da terminologia psiquiátrica. É sempre bom aprender.

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A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género acusa um concorrente do “Big Brother dos Famosos”, o antigo presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, de “violência doméstica” contra uma outra concorrente do programa, a Liliana, aparentemente sua namorada. Uma influencer, autodesignada por “A Pipoca Mais Doce”, apoia energicamente a denúncia, no que é acompanhada por Joana Mortágua, do Bloco, que vê no programa “machismo e o pior do capitalismo” (uma pessoa pergunta-se o que é que para ela é o melhor – acontece-me a mesma coisa quando o PC fala de “capitalismo de casino”: que outro capitalismo recolhe os favores do PC?). De qualquer maneira, eu já tinha antecipado um triste fim para o Bruno, quando, num zapping, tinha apanhado, há uma ou duas semanas, uma discussão entre ele e outros concorrentes em torno do misterioso tema “quem fez o arroz?”. Os sinais não podiam enganar-nos quanto ao destino do homem que outrora era acusado de comandar um bando de terroristas e cujas conferências de imprensa, longas de horas, ocuparam, durante mais de um mês, todas as televisões. A decadência é assim, e por cima disso, lá veio para a televisão a habitual chusma de psicólogos com a nobre missão de escalpelizar o seu carácter. A ERC já se meteu ao barulho e ameaça investigar a TVI, que emite o tal Big Brother.

O Presidente da República recebeu a nossa vitoriosa selecção de Futsal e aproveitou para nos instruir, como só ele sabe, sobre os mistérios da portugalidade. Segundo a sua voz autorizada, forte de estudos históricos e etnográficos, apesar de “em Portugal, ao primeiro desaire, a ideia [ser] mudar tudo o que se pode”, há momentos em que os arcanos da alma portuguesa se revelam no seu imaculado fulgor. Quais são eles? Quando chega “o instante decisivo onde se ganha ou se perde. Aí [somos] muito portugueses, heróicos nos momentos cruciais”. Cesse, de facto, o que a musa antiga canta. Ele próprio, de resto, nos dá frequentemente o magnífico exemplo desta nossa excelsa virtude, quando, por exemplo, num jantar de gala no Eliseu, canta, acompanhado por vários artistas integrados na sua comitiva, o peito ilustre lusitano, sob a forma da “Grândola, vila morena”. O momento foi oportuno e a escolha musical foi judiciosa, até porque, se a sua opção tivesse o nosso hino, os franceses poderiam pensar que era a Marselhesa mal cantada.

Francamente, esta sucessão de episódios grotescos parece-me a confirmação plena da afirmação de Eça segundo a qual as instituições em Portugal são “pilhérias organizadas funcionando publicamente”. Pilhérias, além disso, que servem como instrumento de uma conspiração generalizada destinada a destruir sistematicamente tudo o que possa sobrar de patriotismo em Portugal.