As derrotas provocam desunião, na medida em que há pouco à volta de que unir. À direita, após as derrotas de 2019, o resultado da instrospecção mostrou essa desunião. A polarização dos debates internos, as diferenças aparentemente irreconciliáveis entre facções, os ataques de carácter, as suspeitas (e as tentações) de dissidência, o vincado contraste ideológico. Toda essa autópsia expôs algo terrível para os partidos da área política não-socialista: não é apenas o eleitorado nacional que se encontra distante da direita; são também os militantes que estão longe dos partidos tradicionalmente representantes dessa área.
A reeleição de Rui Rio, depois de dois dos piores resultados da história do PSD, não representa somente uma mudança na cultura institucional de um partido acostumado a triturar líderes perdedores. A criação de uma ‘sala de espera’ para o poder não é, aliás, necessariamente negativa para os futuros líderes dos sociais-democratas. Mas aquilo que a vitória de Rio contra Luís Montenegro simboliza é, sobretudo, o profundo distanciamento entre a elite decisora do PSD dos últimos anos, a quem o país deve muito, e o sentimento das suas bases partidárias. Nas anteriores diretas, em que a bancada passista apoiou largamente Santana Lopes, tal já havia transparecido: não há passismo sem Passos.
Surpreendentemente, o mito de Rui Rio enquanto político – economista, trabalhador, coerente e ganhador – não foi desfeito no seu primeiro mandato. Apesar de ter trabalhado pouco (dentro e fora do partido), de ter sido pouco coerente (com uma oposição errática a António Costa), de ter perdoado demasiados colaboradores (das presenças falsas no parlamento às carrinhas de votos nas concelhias) e de ter vencido um só ato eleitoral (a Madeira) em três idas às urnas, os militantes do PSD continuam a olhar para Rio como tudo o que ele não foi mas ainda diz ser.
Uma breve conversa com os operacionais dos call-centers das últimas diretas mostra-o. Rio tem uma vice-presidente que processou o governo de Passos Coelho, mas há múltiplos militantes que ainda se revêem igualmente em ambos. Existe, hoje, um fosso gigante entre essas sensibilidades – muito próprias, muito diversas e muito resilientes no interior do partido – e as figuras que ambicionam e financiam protagonismo no PSD. A surpresa generalizada dos opositores de Rui Rio ao resultado da primeira volta foi um exemplo claro disso mesmo. Quem quiser ter futuro no PSD tem de preencher esse fosso; não alargá-lo.
A consciencialização de que a personalidade política de Rio é, na verdade, um mito muito bem construído ao longo de anos pode ter chegado às redações e a alguns académicos que o apoiaram, mas não alcançou os homens e mulheres que têm um cartão do PSD. Se os quase 28% de Rio nas legislativas provaram a resistência do PSD enquanto marca, os 53% de Rio nas diretas demonstraram a resiliência de Rio enquanto mito. A pergunta evidente é quanto tempo conseguirá Rio preservar ambos (a marca e o mito), sendo que as desculpas dos primeiros dois anos – a guerrilha interna e a proximidade à era da troika – começarão a prescrever.
No CDS-PP, que conheço melhor, o facto de uma campanha assumidamente de ruptura, com o apoio de ex-líderes regressados (entre outros), reunir tamanho sucesso junto das bases centristas também revela um desencontro entre os rostos mais recentes e as crenças mais profundas. Mas isso, creio, merece outro texto. E não há pressa nenhuma.