Poderá dizer-se quase tudo de Rui Rio. Mas não que não tenha ideias simples e claras, e que não persista nelas. Uma persistência que, aliás, é verdadeiramente irritante, tão ou mais irritante que o otimismo do incumbente que ocupa o lugar que ele ambiciona conquistar nas próximas legislativas. O Sr. Presidente da República poderá estar descansado: ganhe um, ganhe outro, a sua histórica e reativa irritabilidade primo-ministerial continuará a pairar a níveis estratosféricos.

E é precisamente sobre a magna questão da conquista do poder que Rui Rio tem sido mais insistente nas suas ideias. Ideias linearmente simples e muito claras. Translúcidas, podemos dizê-lo. Irritantes para os muitos que gostariam que ele fosse diferente. Menos pardacento, por vezes a confundir-se com o chefe de governo em exercício, e mais contundentemente opositor. Engano, porque a Doutrina Rio acredita que o poder, antes de ser conquistado, tem de ser perdido. Que quem estiver no sítio certo, no lugar certo, à hora certa, tomará naturalmenteconta dele. Que, em Portugal, as eleições se ganham ao centro, por decisão daquelas poucas centenas de milhares de eleitores que oscilam ciclicamente entre o PSD e o PS, o PS para o PSD. Que, para tirar Costa do governo, o PSD não pode deixar o centro, porque, se for para a direita, aqueles eleitores oscilantes não se reconhecerão no partido e manterão o voto no PS ou migrarão para a abstenção. E que para catar esses votos menos centristas e mais de direita não faltam hoje partidos com quem o PSD de Rio facilmente se entenderá, se necessário for. Como, de resto, se viu nos Açores.

Esta estratégia tem uma inabalável condição: ter paciência. Rio sempre disse que de nada valia atacar o PS enquanto o governo estivesse em alta, porque quem o fizesse estaria a ir contra a sensibilidade da maioria dos eleitores e perderia votos com isso. Tudo o que se fizer antes e fora do tempo certo será um inútil dispêndio de energias vitais. Que será transmitindo uma imagem de seriedade e ponderação, até às vezes de «colaboração responsável» com o governo, que conseguirá convencer os eleitores do centro a atravessarem aquela finíssima linha que os fará mudar o seu voto do PS para o PSD. Que seria necessário saber aguardar. Em boa medida, os líderes da direita que o antecederam deram-lhe razão. Paulo Portas, mal viu o que era a geringonça, fez-se evaporar. Passos persistiu por mais algum tempo, mas acabou por ter de abandonar a liderança, deixando o PSD com o pior resultado em eleições autárquicas de sempre e um governo socialista viçoso e duradouro, suportado por uma temível frente de esquerda.

As eleições autárquicas foram, para Rui Rio, o sinal de que a sua estratégia estava correta e a dar os resultados pacientemente aguardados. No seu espírito, era, depois de uma primeira legislatura onde pouco poderia ter sido feito, no começo da segunda que a grande oportunidade poderia surgir. No fim de contas, Costa continuava a gerir um governo de minoria, apoiado por dois partidos que começavam a ter mais a perder do que a ganhar com ele. Cedo ou tarde, no caso, mais cedo do que tarde, a coisa tinha de começar a partir por algum lado. Ora, nada como umas eleições difíceis para pequenos partidos, como as autárquicas, para perder votos e agravar desconfianças. Com a conquista de Lisboa e Coimbra, Rio não as ganhou, mas foi como se as tivesse ganho. Se António Guterres caiu por perder Lisboa a seguir ao Porto, Costa ficou a meio caminho, mas numa circunstância de total imprevisibilidade (as sondagens davam-lhe, em uníssono, a capital, e por muitos votos). De tal modo que, apesar de ter vencido as eleições não conseguiu evitar a queda do seu governo. Mais uma vitória para Rio, que agora tinha, segundo o seu cálculo matemático, a oportunidade de conquistar o poder a António Costa.

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Estava Rui Rio a gozar as delícias autárquicas e o sonoro fim da geringonça, quando Rangel lhe saiu ao caminho. Quem diz Rangel diz o baronato laranja em peso, numa tal amplitude que foi de um seu vice-presidente em exercício, passou pelo candidato lisboeta que ele patrocinara e se elegera, indo até à soleira da porta do Palácio de Belém e ao Presidente da República. Vendo-o nas televisões, aparentemente chocado, argumentando que era agora o tempo certo de assaltar o poder, julguei-o irónico e até com medo de perder a liderança. Enganei-me: o «alemão», como lhe chamam os seus mais próximos, estava mesmo em estado de choque genuíno: “Como era possível”, pensou ele, “que façam uma coisa destas, agora, com Costa em fim de ciclo, quando estamos prestes a ir para o poder?”.

Ao invés de ter fugido e barricado atrás das formalidades estatutárias, como fez o  imberbe líder centrista, Rio foi à luta. Contrariado, porque alegava um prejuízo grande para o partido e para o País, mas foi. Perante um candidato de fraca qualidade, artificial e incapaz de gerar empatia, Rio e os seus comancheros nortenhos, liderados por Malheiro, fizeram o trabalho de formiguinha, enquanto Rangel cantava, ao sol de uma glória efémera, como uma pesporrente cigarra. Na noite dessa vitória surpreendente e imprevista, quando muitos aguardavam a sua ambicionada humilhação, foi vê-los a comemorar no norte, na homeland das autarquias dos arrabaldes portuenses, enquanto Rangel, desenraizado e sem povo próprio, marchou de comboio rumo a Lisboa, à espera que lhe dissessem que tinha ganho a disputa e o laureassem com a coroa de louros imperial.

O élan que Rio ganhou nesse dia, e que, verdade seja dita, já por várias vezes ia estragando com a sua irritante teimosia, tem todos os condimentos para fazer dele o vencedor das legislativas. Autoritário, lutador, homem de ideias claras e simples, coerente, teimoso, competente, trabalhador e honesto, profundo conhecedor dessa ciência esotérica que a direita indígena tanto venera que são as «finanças», eis o seu perfil político. No cinzentismo tecno-burocrático com que se nos apresenta há décadas, foi esta a imagem de si mesmo que Rui Rio paulatina e laboriosamente construiu. No fim de contas, ele é o moderno herdeiro de uma certa tradição da direita nacional, que Eça por antecipação sumariava na gravitas profunda do Conselheiro Gama Torres: Salazar, Cavaco, Rio. Homens de poucas palavras, pensamentos reservados e inquestionável auctoritas. Como se dizia na gíria futebolística do saudoso Jorge Perestrelo, «é disso que o meu povo gosta!». Pelo menos o povo da direita.

Chegará para tirar Costa do poder, como já o fez nos Açores? Ou para obrigar o PS a suportar uma solução de «centrão», como sempre tentou fazer desde que é líder?

Na noite de 30 de Janeiro ficaremos a saber se a doutrina Rio é, ou não é, uma teoria bem sucedida do poder.