Neste tempo de Páscoa, o PSD continua a atravessar uma Via Sacra que, embora dolorosamente longa, se espera possa conduzir à eleição de um novo líder, não pelos trágicos idos cesaristas de Março, mas nos mais auspiciosos dias de Junho.

Durante este extenso período, Rui Rio continua a governar o partido, agarrado ao argumento formal de que foi ainda há pouco eleito para um mandato de dois anos, como se depois disso não tivesse havido uma maioria absoluta do PS, obtida no final de uma penosa governação socialista, bloquista e comunista de seis anos.

Este foi o principal legado da convicção, sustentada pelo ainda presidente laranja, de que, com exceção do consulado “neoliberal” passista, o PSD nunca tinha sido e nunca mais voltaria a ser um partido aberto à direita liberal e conservadora. E da tática que ele seguiu de se encostar e mimetizar o Partido Socialista, para lhe ir buscar votos que visivelmente não conseguiu convencer, porque os consumidores preferem, a preços constantes, o original às imitações.

Mas não foi esta a única herança pesada que Rui Rio deixará ao PSD. Precisamente à sua direita, aí estão dois partidos em franco crescimento, um liberal e outro conservador, pasme-se!, a ocuparem o exato espaço político que o Dr. Rio, o Dr. Pacheco Pereira e a Dra. Ferreira Leite enjeitaram, em nome de um hipotético esquerdismo de Francisco Sá Carneiro, o homem que levou o CDS e os monárquicos para o governo de Portugal. Entretanto, na Assembleia da República ficam vinte ativos deputados para os próximos quatro anos e meio, que noutras circunstâncias seriam provavelmente do PSD.

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Acontece que o Dr. Rui Rio, neste compasso de espera para o seu regresso à vida civil, está a tomar decisões que por muitos anos comprometerão o futuro do seu partido e do espaço político à direita do PS. Entre elas, a mais grave será a marginalização do Chega e da Iniciativa Liberal, tratando-os como dois párias do regime, e não como o terceiro e o quarto partido que os cidadãos portugueses escolheram em eleições livres e democráticas. Refiro-me, naturalmente, a rejeição dos candidatos a vice-presidentes da Assembleia da República que esses partidos propuseram e, pior do que isso, à anunciada não eleição de representantes seus para o Conselho de Estado, um órgão consultivo do Presidente da República que ainda hoje conta com duas personagens, eleitas nessa mesma Assembleia, que pertencem, ou pertenceram, a partidos que querem Portugal fora da Nato e do Euro, e que manifestam posições mais do que dúbias sobre a guerra na Ucrânia.

Ora, se o veto para as vice-presidências se pôde escudar no voto livre de cada um dos deputados (como se a maior parte deles fosse verdadeiramente livre a votar no Parlamento…), argumento que a ambiguidade da Constituição permite utilizar, o mesmo já não se passa com os representantes no Conselho de Estado. Diz, a esse respeito, o artigo 163º, al. g), da Lei Fundamental que: “Compete à Assembleia da República, relativamente a outros órgãos: Eleger, segundo o sistema de representação proporcional, cinco membros do Conselho de Estado”. Parece não subsistirem aqui grandes dúvidas de que esses cinco representantes escolhidos pelo Parlamento o deverão ser em razão dos resultados da expressão da soberania popular, e não das simpatias, antipatias ou conveniências circunstanciais dos partidos e dos líderes que controlam as maiorias parlamentares. De facto, se o Conselho é de “Estado” e se nele tomam assento deputados da Nação para transmitirem ao Presidente da República a sensibilidade daqueles que representam, nesse número devem comparecer todos os partidos com significativa expressão parlamentar. Ficarem ausentes aqueles que representam as terceira e quarta forças políticas escolhidas pelos portugueses é grave, mesmo até duvidosamente democrático.

E quais são os fundamentos para isto? A conversa do “extremismo do Chega” francamente já não cola, porque já há muito se percebeu que o Partido Socialista não só não tem qualquer receio do partido de Ventura, como até sente algum conforto com a sua progressiva expressão eleitoral. De resto, se esse argumento fosse real, se o PS e o PSD tivessem genuíno receio do radicalismo do Chega, só tinham uma solução para estancar o seu crescimento: amaciá-lo, retirando-lhe o capital de reclamação que o tem feito crescer, atraindo-o para o centro do sistema que esse partido diz combater. É pois muito óbvio que, enquanto a IL não terá ganhos significativos com esta marginalização, porque não tem crescido no queixume e com o ressentimento dos descamisados, o mesmo não se passará com o Chega, que se alimenta exatamente disso. Logo, todas estas decisões só contribuirão para reforçar a retórica de Ventura e, obviamente, para fazer com que o Chega cresça mais ainda.

Não duvido que António Costa e o seu inner circle no PS estejam bem conscientes disto. A estratégia não é, de resto, propriamente nova, já que o velho François Mitterrand fez coisa parecida com o patriarca da Front Nacional, o Sr. Jean-Marie Le Pen: deixou criar, incentivou até, as condições para o crescimento da extrema-direita francesa, de modo a limitar eleitoralmente os partidos gaulistas, republicanos, liberais e conservadores, em suma, a direita democrática.

Descontando o facto de que a estratégia do socialista francês ter sido tão bem sucedida que a sua herdeira se arrisca a ser eleita presidente de França nas eleições que se disputarão neste domingo próximo, o mais lamentável é que Rui Rio encaminhe o PSD, que ele deixará em breve de governar, para uma estratégia socialista que só poderá prejudicar o partido que ainda dirige. Na verdade, o sonho do Partido Socialista de António Costa é ter dois partidos médios concorrentes à sua direita a canibalizarem-se reciprocamente, que não ultrapassem somados muito mais de 30% dos votos parlamentares, e que venham a diminuir com o tempo, tal e qual fez com o Bloco e o PCP. Pois é mesmo essa erosão eleitoral que o crescimento do Chega já provocou e poderá continuar a provocar ao PSD, visto tratarem-se de dois partidos que constituem um verdadeiro vaso comunicante. Embarcando em mais este ardil do PS, o PSD poderá condenar-se definitivamente a insignificância.

Por conseguinte, eu diria que é de suma importância que os dois candidatos mais prováveis à vitória nas próximas diretas social-democratas, Luís Montenegro e Jorge Moreira da Silva, ainda que não possam decidir sobre o sentido de voto do grupo parlamentar laranja nesta matéria, não deixem de o procurar condicionar para um voto mais inteligente e oportuno para os interesses do seu partido. Fazendo-o com a legitimidade de quem quer liderar um partido concorrente do PS com vocação futura de chefia do governo, e não um mero competidor do Chega de André Ventura na disputa pela chefia da oposição.