Por estes dias todos somos consumidores de conteúdo digital, Facebook, Instagram e vários blogues entram-nos pelos olhos dentro e influenciam-nos em maior ou menor grau. Longe de achar problemática a diversidade, é com um misto de incredulidade e impaciência que assisto à repetição exaustiva do termo “saudável” para designar opções alimentares que nada têm de verdadeiramente saudável, uma vez que se baseiam em modismos e em argumentos falaciosos e não na promoção da saúde ou de verdadeiros benefícios nutricionais.

O que já era amplamente difundido sem o crivo do espírito crítico assume nesta quarentena outra importância. O isolamento das últimas semanas empurrou para a cozinha até quem por norma não gosta de cozinhar. Os entediados e os gulosos são assediados por todo o tipo de pratos “instagramáveis” publicados não só nesta rede social, como nos milhentos grupos e páginas de facebook, uns declaradamente pecaminosos e outros “saudáveis” em maior ou menor grau. Quem escolhe minimizar o impacto da estadia forçada em casa com receitas de “doces saudáveis” tem centenas de receitas de panquecas, tartes e bolos com todo o tipo de alegações nutricionais, uma das mais comuns é “receita saudável de … sem açúcar”, alegação que é frequentemente um logro mesmo que de forma involuntária por parte de quem a partilha. O engano consiste na ideia de que aquele doce pode ser consumido sem grandes restrições porque não contém açúcar branco ou refinado e apenas ingredientes muito saudáveis e nutritivos (o que até pode ser verdade). Como não tem açúcar branco, supostamente, não deixa a glicemia nos píncaros nem faz engordar. Nada poderia estar mais longe da verdade.

Salvo contenha edulcorantes ou polióis, tema muitíssimo controverso, o sabor doce é veiculado pelos açúcares. A primeira grande confusão é ao que chamamos açúcar. Comummente o termo açúcar refere-se apenas ao açúcar branco ou refinado, mas na verdade os açúcares abarcam monossacáridos – glicose, frutose e galactose – e dissacáridos – maltose, sacarose e lactose. O açúcar branco é essencialmente constituído por sacarose, uma frutose e uma glicose ligadas. Os seus substitutos neste tipo de receitas são por norma o açúcar de coco, o mel, o xarope de agave ou os frutos secos não oleaginosos como as tâmaras.

O açúcar de coco, tão na moda nos últimos anos, é simplesmente açúcar, ou melhor, uma mistura mínima de glicose e frutose com muita sacarose. A energia contida em 100g de açúcar de coco é também muito semelhante à contida em 100g de açúcar branco e por esse motivo “engorda o mesmo”.

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Quanto ao mel, ao agave e aos frutos secos não oleaginosos como as tâmaras, têm em comum o facto de, entre outros açúcares, possuírem um elevado teor de frutose. A frutose livre, e dependendo do grau de cristalização (Krause, 2004), tem um poder adoçante superior ao da sacarose. Uma quantidade inferior de frutose tem o mesmo poder adoçante da sacarose, o que é positivo em teoria na medida em que permite usar uma porção menor. Este facto não pode liberalizar de modo algum o consumo excessivo de frutose, açúcar com metabolização diferente da glicose mas ainda assim um açúcar, nem torna um bolo adoçado com mel, agave ou tâmaras num alimento mais “saudável” ou de “dieta”, porque pasme-se, continua a ser um bolo, continua a ser doce e continua a conter açúcares! É até necessário pensar criticamente na efectiva quantidade de açúcares que esse doce terá. De facto pode possuir um teor inferior mas a diferença tende a ser pequena e dificilmente justifica a substituição relativamente ao açúcar branco. Ou pelo contrário, acabar por conter um teor superior de açúcares pois quem fez a receita acabou por colocar mais por achar que era inofensivo. Quanto ao conteúdo energético, e apesar de um pouco inferior relativamente ao açúcar branco, não é possível classificar mel, agave ou tâmaras como alimentos de baixa densidade energética. Quando incluídos em receitas “saudáveis” significa que basicamente se somaram mais calorias.

O índice glicémico (IG) um pouco inferior destes alimentos relativamente ao açúcar branco é utilizado com frequência como argumento para defender o seu consumo. Não obstante a importância do IG, este é um péssimo indicador se usado de forma cega. Um IG inferior não é suficiente por si só para justificar o consumo de determinados alimentos.

O derradeiro argumento prende-se com o conteúdo mínimo em micronutrientes e oligoelementos que mel, agave ou o açúcar de coco contêm. E sim, relativamente ao açúcar branco ou refinado, estes alimentos têm mais um pouco mais de nutrientes mas é altamente discutível se um conteúdo vestigial é suficiente para recomendar a substituição quando os micronutrientes em causa estão amplamente distribuídos por outros alimentos.

Convido quem tenha tempo e paciência a calcular o conteúdo energético e nutricional de algumas versões “saudáveis” de doces e bolos sem açúcar e comparar as mesmas com as versões não “saudáveis”. Desagradáveis surpresas esperam o leitor, principalmente se a receita em questão for constituída por azeite, farinha de amêndoa, coco ralado, óleo de coco, polvilho e toda a espécie de farinhas de cereais sem glúten, mas que contêm um teor de hidratos de carbono muito aproximado à banal farinha de trigo ou farinha de trigo integral. Haveria aliás muito a dizer sobre a utilização falaciosa do termo “saudável” para alimentos como óleo de coco, entre muitos outros, ou sobre a também comum alegação “sem glúten” em receitas “saudáveis” destinadas a não celíacos, mas cuja explicação merece muito mais que um ou dois parágrafos. Ainda sobre a comparação entre as versões, é frequente que o valor energético da receita “saudável” seja igual ou mesmo superior à versão não “saudável”. O mesmo tende a acontecer para os teores em hidratos de carbono e açúcares e não menos importante, para o teor lipídico.

Obviamente muitas destas receitas são usadas no contexto da gestão de peso causando grandes desafios a quem não tem consciência do conteúdo energético real dos ingredientes e come amiúde estes alimentos sem saber que são muito equivalentes em energia, e dependendo da receita, em nutrientes, a um bolo ou doce comum.

Não há heróis nem vilões em alimentação. Até o maior dos guilty pleasures, aquela bomba de açúcar e gordura, tem um impacto relativamente inócuo na saúde quando inserido esporadicamente no contexto de uma alimentação rica, variada e equilibrada. Do mesmo modo, até alimentos saudáveis e nutricionalmente ricos, cujos exemplos clássicos são o azeite ou frutos secos oleaginosos como a amêndoa e a farinha de amêndoa, quando consumidos de forma desproporcionada prejudicam mais do que beneficiam.

Especificamente quanto aos açúcares, não é possível dizer que os substitutos do açúcar branco atrás mencionados sejam melhores opções ou opções mais “saudáveis” porque todas elas são na realidade constituídas por outros açúcares. A regra geral para todos eles é moderar/restringir a quantidade diária ingerida. Quem gosta, faz questão ou não se importa de pagar mais por produtos cujos benefícios nutricionais são muito relativos ou mesmo questionáveis, deve fazê-lo com a percepção clara que estas opções não são melhores nem piores, são simplesmente açúcar.

A má notícia para os aborrecidos e gulosos desta quarentena é que do mesmo modo que não se fazem omeletes sem ovos também não se fazem doces ou bolos sem açúcar, sem farinha (s) (contenham ou não glúten), e sem uma fonte de gordura, seja ela azeite, frutos secos ou o polémico óleo de coco. Se é verdade que a culpa é péssima companheira quando comemos, não é vivendo na ignorância ou no autoengano que enriquecemos ou melhoramos verdadeiramente a nossa alimentação. A ideia romântica de “comer de forma saudável” está minada se não soubermos o que comemos de facto. Somos livres de comer amêndoas seja num bolo ou in natura, de ingerir ou não glúten, de adicionar açúcar branco ou qualquer outra opção, de fazer receitas diferentes porque gostamos ou porque queremos variar, ou mesmo de adoptar um regime alimentar alternativo, deste que haja consciência que estas mudanças não se tornam automaticamente em opções mais ou menos “saudáveis”. Em última análise, comer de forma saudável consiste no equilíbrio entre os nutrientes ingeridos e o conteúdo energético dos alimentos, independentemente das preferências ou opções pessoais de cada um.