Um dia, estou certo, alguém achará tudo isto muito curioso. O Partido Socialista é poder em Portugal há vinte e cinco anos. Em 2020, continuamos a ver no governo os mesmos — ou os seus assessores e descendentes — que chegaram com António Guterres em 1995, e que estiveram com José Sócrates entre 2005 e 2011. Num quarto de século, ocuparam o Estado, agravaram a dependência da sociedade em relação ao poder político, e passaram a controlar, como mais ninguém na história deste regime, o que é feito e dito no país. Desde 2015, governam amparados pelos fãs das ditaduras de Cuba, Coreia do Norte e Venezuela. Ao princípio, repetiram os chavões do que o trabalhismo inglês chamava a “terceira via”. Agora, as suas “ideias” consistem em gastar o dinheiro europeu para financiar um Estado inviável, e em deixar passar a agenda do radicalismo norte-americano que, à esquerda, substituiu o marxismo soviético. O resultado é um país envelhecido e estagnado, mas já com eutanásia e cada vez mais arrependido de alguma vez ter tido importância na história do mundo. Em vinte e cinco anos, ainda contribuíram para a crónica do regime com um primeiro-ministro acusado de corrupção, num caso em que aparecem implicados, em diferentes momentos, gestores de bancos e empresas, juízes de tribunais superiores, e professores universitários. O que dá ideia de que malhas se tece o império socialista em Portugal. No entanto, somos todos convidados a não reparar nisto, e a achar muito “radicais” aqueles que, violando as regras, por acaso reparam.
É pena, porque este país socialista coloca um interessante desafio intelectual. É possível uma democracia com uma sociedade fraca e dependente do Estado, e um Estado dependente de ajudas externas, ou por outra palavras: é possível uma democracia sem verdadeira autonomia dos cidadãos e da sua comunidade política? É possível uma democracia com um Estado ocupado há um quarto de século por um mesmo grupo partidário, sem perspectivas de alternância, a não ser em caso de catástrofe? É possível uma democracia onde o poder é sustentado por partidários confessos de ditaduras? É possível uma democracia com instituições minadas por suspeitas de amiguismo e de corrupção? É possível uma democracia onde décadas de estagnação económica e de constrangimentos financeiros tiraram qualquer relevância a propostas de governo alternativas? É possível uma democracia onde, por tudo isto que ficou dito, mais de 50% dos eleitores já não parecem acreditar que valha a pena votar? É possível uma democracia onde, com esse nível de abstenção, o governo pode perpetuar-se confiando apenas no voto fiel da minoria de clientes e beneficiários do poder, como nos regimes não democráticos do passado português?
E se uma democracia não é possível assim, como devemos chamar a um regime com estas características? Talvez que, por pudor ou à falta de melhor palavra, se lhe tenha de continuar a chamar “democracia”. Mas que não haja ilusões: aquilo a que ainda chamamos democracia parece demasiadas vezes um vazio à espera de qualquer outra coisa, que bem pode ser, num dia de mais azar, um ditador. Não um ditador como os dos anos 1930, de uniforme militar, mas como os de hoje, que até fazem eleições (que ganham sempre, claro). Com Sócrates, entre 2005 e 2011, este regime já quase teve o seu Lukashenko. Nesse tempo, a crer na acusação judicial e no que disseram outros magistrados e políticos, não terá havido apenas corrupção, mas uma conspiração do poder para destruir o Estado de direito, constranger órgãos de comunicação, perverter o sistema de justiça, e sabotar outras instituições como a presidência da república. Terá sido provavelmente a maior ameaça à democracia desde 1976. Mas só faliu por causa da crise da dívida pública, já que nem eleições, nem a luta parlamentar, nem a pressão de outras instituições o conseguiram apear. Não é assim nas democracias que funcionam: Nixon foi forçado a demitir-se.
Desde o início que o regime nos tem contado uma grande mentira: que as democracias são derrubadas de fora, por quem não está no poder. Não. As democracias são e foram sempre derrubadas de dentro, pelos que, no poder, as empobrecem, as viciam, as degradam, ao ponto de delas não ficar mais do que a fachada que, um dia, cairá no meio da indiferença geral.
Agora, o mais curioso nesta história é isto: perante a degradação do regime, fomentada por quem nele manda, os portugueses são convidados a ter muito medo de … André Ventura. É André Ventura, deputado solitário na Assembleia da República, que ameaça a nossa liberdade. É André Ventura, à frente de um partido de congressos caóticos, moções patetas e intenções de voto de 7%, que põe em perigo as nossas instituições. É André Ventura, que não pode fazer um comício sem ser cercado pela polícia e pela violência da extrema-esquerda, que justifica o nosso alarme e indignação. É André Ventura, que nem vai à televisão, o único político que os jornalistas estão à vontade para monitorizar e criticar. Sim, André Ventura pode ser tudo o que dele dizem. Não vou discutir isso agora. Mas desculpem se, mesmo assim, não me parece que seja o principal problema da democracia em Portugal. Desculpem se me preocupam muito mais os antigos e actuais membros do governo acusados e suspeitos de ilegalidades, os juízes que vendiam acórdãos, os empresários e gestores que fizeram fortunas com as “amizades” dos políticos, os apoios parlamentares do governo cujo ideal é Cuba e a Venezuela, a economia estagnada, a dependência das ajudas europeias, o desprezo dos donos do poder pelo pluralismo ou a sua raiva contra quem pensa de outra maneira (todos “radicais”, “fascistas” ou “múmias”), etc. André Ventura é hoje uma espécie de manto com que o rei se cobre para ninguém reparar que vai nu. Mas vai, e não há-de ser bonito de se ver.