Quem não se lembra de O Mandarim, de Eça de Queiroz?! Nesse conto, o amanuense do ministério do reino e hóspede na pensão de D. Augusta, Teodoro, apesar de não crer em Deus, nem no diabo, acredita numa lenda que lhe garante que, com um só toque de campainha, pode matar, na China, um riquíssimo mandarim e herdar a sua imensa fortuna. Fá-lo e todas as desgraças se abatem sobre ele. Moral da história: às vezes, as decisões que parecem simples e boas, revelam-se complexas e trágicas.

Quando o Papa Francisco se encontrava de visita pastoral aos países bálticos, o Vaticano surpreendeu o mundo com o anúncio de um acordo provisório entre a Santa Sé e as autoridades chinesas, celebrado no passado dia 23, em Pequim. Sobre o teor desse pacto pouco se disse, mas o suficiente para que se saiba que pretende a unificação dos católicos desse país, bem como o reconhecimento da Igreja católica pela China.

Como é sabido, na China coexistem duas comunidades católicas: a formada pelos bispos, padres e leigos que pertencem à associação patriótica, que é controlada pelo partido comunista chinês; e a clandestina, que é fiel ao Papa e perseguida pelas autoridades oficiais. A reconciliação entre os católicos ‘oficiais’ e ‘clandestinos’ é o tema principal da Mensagem do Papa Francisco aos católicos chineses e à Igreja universal, do passado dia 26-9-2018.

São João Paulo II e Bento XVI, este nomeadamente pela sua Carta aos Católicos Chineses, de 27-5-2007, tentaram, em vão, a reunificação de todos os católicos chineses, mas sem abandonar aqueles que, até à data, pagaram tão duramente pela sua fidelidade a Roma. O acordo, agora alcançado pelo Papa Francisco, foi obtido na base do reconhecimento dos bispos afectos à associação patriótica e que estavam em situação irregular.

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Segundo o direito canónico vigente, a ordenação episcopal sem mandato apostólico é formalmente válida, mas punida com a excomunhão automática, que recai tanto sobre os bispos ordenantes como sobre os ordenados. Portanto, um padre ordenado bispo, sem ordem pontifícia, é verdadeiramente bispo, mas está fora da Igreja católica enquanto durar a excomunhão que sobre ele recaiu, por ter sido ordenado sem a devida autorização papal. Mas, como é óbvio, o Santo Padre pode, em qualquer momento, levantar essa excomunhão e integrar esse bispo na hierarquia eclesial, como bispo diocesano, ou com outra função adequada à sua condição episcopal (auxiliar, ordinário castrense, presidente ou secretário de um dicastério, núncio apostólico, etc.).

Foi o que agora aconteceu, como o próprio Papa declarou na sua referida carta: “decidi conceder a reconciliação aos restantes sete bispos ‘oficiais’ ordenados sem mandato pontifício e, tendo removido todas as relativas sanções canónicas, readmiti-los na plena comunhão eclesial”.Como posteriormente declarou oCardeal Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, todos os bispos chineses estão agora, formalmente, em comunhão com o bispo de Roma o que é, certamente, uma óptima notícia.

Não são conhecidos os termos do pacto agora estabelecido entre a Santa Sé e a república popular da China em relação à nomeação de bispos, uma questão particularmente sensível para a Igreja e para o Estado. No pontificado de Bento XVI tinha-se chegado a um consenso sobre esta matéria: seriam as autoridades políticas a nomear os bispos, entre três candidatos propostos pelo Vaticano. Xi-Ping não só não manteve este acordo verbal, como intensificou a perseguição contra os católicos, nomeadamente demolindo igrejas, interditando peregrinações religiosas, encerrando sitescatólicos e proibindo aos filhos dos fiéis chineses a assistência à missa e à catequese. O Papa garantiu que a Santa Sé terá sempre uma palavra a dizer no que respeita à nomeação de bispos, muito embora as autoridades chinesas também intervenham nesse processo. Assim aconteceu também na península ibérica, como recordou Francisco, sob os regimes autoritários de Salazar e Franco.

Do acordo agora alcançado entre o Vaticano e Pequim decorreu a aceitação, pelo Papa, dos sete bispos ‘patrióticos’, nomeados pelo governo chinês, e que agora foram integrados na Igreja católica e reconhecidos como legítimos bispos, bem como o afastamento de dois bispos ‘clandestinos’. Não será fácil, para os fiéis que pagaram tão cara a sua fidelidade à Igreja e ao Papa, aceitar alguém que foi nomeado e ordenado à revelia da Santa Sé, e que deve ao partido comunista chinês o seu estatuto episcopal. A submissão dos católicos ‘clandestinos’ aos bispos ‘patrióticos’ é um enorme sacrifício que lhes é agora pedido, em nome da unidade da Igreja católica na China, pelo Papa a que sempre foram fiéis.

Mas também os bispos ‘patrióticos’, agora readmitidos na Igreja católica, têm uma difícil missão a cumprir: “peço-lhes – escreveu o Papa Francisco – para expressarem, por meio de gestos concretos e visíveis, a reencontrada unidade com a Sé Apostólica e com as Igrejas espalhadas pelo mundo, e para, não obstante as dificuldades, se manterem fiéis à mesma”. Não consta, ainda, que nenhum desses bispos tenha feito essa declaração, que é contrária aos princípios da associação patriótica, que defende uma igreja nacional, apenas submetida às autoridades políticas chinesas e, portanto, independente de Roma.

Ante as cedências da diplomacia vaticana e a exiguidade de contrapartidas, há quem diga que, mais do que uma reconciliação, tratou-se de uma verdadeira capitulação. O discurso oficial insiste na necessidade de um primeiro gesto de ‘boa vontade’, que estabeleça um clima propício às negociações agora encetadas. É neste sentido a referida carta do Papa Francisco aos católicos chineses, que reconhece os méritos dos ‘clandestinos’, mas procura estabelecer um clima de confiança que permita à república popular da China ultrapassar os seus preconceitos contra a Igreja católica. Depois de normalizadas as relações entre as autoridades políticas e eclesiais, será possível acertar os aspectos em que agora foi imperioso ceder.Como escreveu o Papa Francisco, “este acordo introduz elementos estáveis de colaboração entre as autoridades do Estado e a Sé Apostólica, com a esperança de garantir bons pastores à comunidade católica”.

Ninguém deve duvidar das boas intenções do Papa Francisco, muito embora não seja infalível em matérias que não são de fé, nem de moral. Decerto, também os seus colaboradores estão animados pelos melhores sentimentos. Mas há sempre o perigo de que algum amanuense da secretaria de Estado, qual Teodoro, toque a campainha errada e, o que parecia uma fabulosa bênção, se converta numa dramática maldição.