1 Álvaro Cunhal publicou um artigo em 1974 intitulado “A Superioridade Moral dos Comunistas” (1) que ainda hoje serve para catequizar jovens ingénuos à causa do Partido Comunista Português (PCP). Dizia Cunhal que o comportamento moral da grande burguesia capitalista se caracterizava pelo “individualismo e egoísmo ferozes”, “indiferença pela sorte dos seres humanos”, “rapacidade, venalidade” e “completa falta de escrúpulos”. Já os comunistas, pelo contrário, distinguem-se pelos seus elevados princípios morais, sendo que o internacionalismo proletário “é fonte criadora de (…) atitudes de generosidade, de coletivismo, de fraternidade entre os trabalhadores” em busca de “um mundo de justiça social e de aperfeiçoamento humano”.

Como sabemos, estas são palavras vãs, destituídas de qualquer fundamento e profundamente hipócritas quando constatamos todo o mal que o comunismo espalhou pelo mundo. Por onde andou o comunismo, grassou a ditadura, a guerra, a pobreza e o exercício do poder por uma casta de dirigentes dos partidos irmãos gémeos do PCP que se julgavam tão superiores aos seus concidadãos que deixavam aqueles que lhes faziam frente no Gulag ou em valas comuns assassinados a sangue frio. ‘Pequenos erros’ de quem não soube aplicar as ideias superiores de Marx e de Lenine, dizem os comunistas portugueses — que ainda hoje apoiam com venda nos olhos, os dentes cerrados e o cérebro vazio regimes ignóbeis como o da Coreia do Norte (ironicamente, uma monarquia comunista).

Mas não é por questões históricas que fui buscar o artigo de Álvaro Cunhal. É pelo presente e pela insistência do PCP na organização da Festa do Avante contra tudo e contra todos — contra o bom senso e uma noção básica de saúde pública e contra a inteligência dos portugueses. Na prática, a persistência do PCP, com uma vitimização ridícula à mistura, só revela a inferioridade moral dos comunistas.

2 Pegando no ângulo de Álvaro Cunhal, é imoral organizar a Festa do Avante quando podemos estar às portas de uma segunda vaga, é imoral arriscar a saúde de cerca de 33 mil pessoas (o limite que a Direção-Geral de Saúde inexplicavelmente impôs como lotação máxima) e é desprezível desafiar a sorte quando a consequência pode vir a ser um surto com origem na Quinta da Atalaia que se pode espalhar rapidamente pelo país — atendendo que virão militantes comunistas de todas as idades e de todas as regiões do país.

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Para um partido que professa a igualdade como dogma para acabar com as classes sociais, a pobreza e a injustiça, é claramente hipócrita querer regras especiais para os seus próprios militantes quando aos restantes portugueses são impostas todas as restrições possíveis e imaginárias. Pior: o PCP exige sem pudor ter um tratamento de favor por parte da Direção-Geral de Saúde (DGS), argumentando que a Festa do Avante é um encontro político, logo não pode ser proibido nem limitado.

A questão é precisamente essa: ao contrário do que os comunistas querem fazer crer, tomando os portugueses como parvos, a Festa do Avante é um festival de música, de gastronomia, de vinhos, de artesanato. Ora, todos os festivais de música foram suspensos por ordem do Governo e as festas e feiras que se costumam realizar em Agosto foram desmarcadas.

Nenhum problema existiria se o PCP insistisse em fazer apenas um comício no palco central da Festa do Avante, sem público e apenas com o Comité Central presente e a respeitar as regras do distanciamento social. Especialistas em coreografias desde sempre, certamente que os comunistas conseguiriam organizar um momento impactante.

3

É verdade que a autorização do 1.º de Maio por parte da DGS torna mais difícil tomar uma decisão de rutura em nome de saúde pública mas não é menos certo afirmar que existe uma benevolência geral em relação ao PCP. Uma benevolência que tem raízes históricas e que tem subjacente a ideia de que os portugueses de todas as idades têm uma dívida para com os comunistas pela luta contra a ditadura.

Ora, eu não tenho nenhuma dívida de gratidão para com os comunistas. E não tenho porque o PCP queria derrubar a ditadura do Estado Novo para impor uma nova ditadura comunista — como aconteceu na URSS, em toda a Europa de Leste e um pouco por todo o mundo. Pensar que o PCP é diferente do PCUS e dos restantes partidos comunistas é a mesma coisa que pensar que o Pai Natal existe.

Se existir um surto com origem na Quinta da Atalaia, os cidadãos não exigirão menos do que uma investigação criminal aos dirigentes do PCP que permitiram as festividades. Sendo que, no campo estritamente político, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa não escaparão ao escrutínio. Autorizaram o 1.º de Maio e têm estado a falar baixinho quando deviam opor-se terminantemente à organização do Avante, de forma a influenciar a DGS a agir.

4Há uma questão central nesta história: por que razão os comunistas insistem tanto na realização da Festa do Avante? A resposta é simples: porque precisam das receitas que o evento lhes propicia.

Tal como tantas vezes no passado, os comunistas são profundamente hipócritas. Querem destruir o capitalismo, mas é a partir da maximização do lucro na Festa do Avante que angariam fundos para o resto do ano. Por exemplo, as contas anuais de 2017 revelam que aquele evento permitiu angariar cerca de 900 mil euros nos bilhetes para a entrada (as famosas EP) e mais de 1,2 milhões de euros. São cerca de 2,1 milhões de euros que são pagos sem emissão de fatura (porque a Festa do Avante é um evento político logo não paga IVA nem o PCP paga IRC), nem qualquer outro suporte documental que permita à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos fazer o seu trabalho de fiscalização.

As receitas da Festa do Avante representam 91,2% das angariações de fundos do PCP mas a entidade fiscalizadora dos partidos políticos não tem forma de confirmar se tudo respeita a lei. Basta ler esta reportagem da revista Sábado para perceber a informalidade da Festa do Avante.

O mais extraordinário é que a benevolência que referi há pouco permite mesmo ao PCP financiar-se à custa de ‘dinheiro vivo’. Lembram-se das malas de dinheiro que existiram na política portuguesa para financiar o PS, PSD e CDS — os reacionários e os porcos capitalistas, na ótica dos comunistas puros? Pois bem, a Festa do Avante é uma gigantesca ‘mala de dinheiro vivo’ que são entregues de forma anónima para que nada fique registado.

Imagine que cada um dos 30 mil espetadores da Festa do Avante doa 5 euros cada um — isso dá um total de 150 mil euros. Se forem 100 mil espetadores, dará meio milhão de euros. Agora, imagine um saco do lixo preto com meio milhão de euros lá dentro — essa é a receita em cash do PCP.

5 E guardo o melhor para o fim. Que grande chapada de luva branca deram os mais de 40 comerciantes da Amora que vão fechar as portas entre a próxima 6.ª feira e o domingo face ao perigo sanitário que a Festa do Avante representa! Merecem o meu aplauso de pé porque preferem preservar a sua saúde e a dos seus concidadãos (mesmo a dos comunistas), em vez de ganharem receitas que tanta falta fazem. Recusam aquilo que o PCP quer com a sua festa: dinheiro, ‘guito’, enfim, o malfadado vil metal que faz avançar o capitalismo.

Como dizia a dinamizadora desse protesto, Maria Carvalho, à Rádio Observador, o PCP quer ser privilegiado com regras que estão vedadas aos restantes portugueses. Se os cidadãos da Área Metropolitana de Lisboa têm fortes restrições para se reunir, comer, beber e festejar em família e com amigos, já os camaradas comunistas querem fugir a isso, como se tivessem mais direitos do que o cidadão comum.

Regressando a Álvaro Cunhal. Dizia o líder histórico do PCP que o “oportunismo de esquerda, designadamente o sectarismo, conduz ao desprezo efetivo pelas massas e ao afrouxamento da solidariedade” (1). É precisamente isso que significa a realização da Festa do Avante em plena crise pandémica: um bom exemplo de “oportunismo” e “sectarismo”. Talvez seja recomendável aos comunistas que leiam mais vezes Cunhal.

São os comerciantes da Amora, os “pequenos burgueses capitalistas” (classificação oficial do PCP), que demonstram claramente a inferioridade moral dos comunistas portugueses — uma cada vez mais reduzida seita que caminha sem honra nem glória para a extinção.

(1) O texto original foi publicado revista Problemas da Paz e do Socialismo, n.° l, Janeiro de 1974, Edições «Avante!», 1974, sendo mais tarde editado em livro com o mesmo título.

Texto alterado às 12h25m