Antes de mais, um reconhecimento: graças à pressão iniciada por BE e PCP (através das apreciações parlamentares que submeteram e que esta tarde se discutem em plenário), haverá mais mães e pais com a possibilidade de acompanhar a escolaridade dos seus filhos em ensino a distância. Eis um bom trabalho parlamentar. Agora, a questão é se esses apoios chegarão a tempo — ou se, para não variar, o governo só se comprometerá com o que, afinal, mal terá tempo de cumprir. Há razões para recear o pior.

A injustiça em vigor não é um pormenor. Desde o momento inicial do ensino a distância, em Março 2020, o governo decidiu que os apoios de assistência à família seriam apenas para os que não estivessem em teletrabalho. Por outras palavras, o governo considerou que estar-se em teletrabalho era compatível com o acompanhar do ensino a distância dos filhos sub-12, por exemplo no 1º ciclo do ensino básico (entre os 6 e os 10 anos) — logo estes, que têm menor autonomia, enormes necessidades de aprendizagem e óbvias dificuldades de manuseamento do equipamento. E manteve essa interpretação insustentável até agora, com apertados critérios de elegibilidade. Aliás, continuaria a mantê-la se não fosse a iniciativa de BE/PCP — não foi um acaso a informação de revisão das regras ter sido ontem divulgada pelo governo, véspera de debate parlamentar em que se anunciava uma derrota do governo (porque PSD logo anunciou que também apresentaria propostas nesse sentido). Ora, é um péssimo sinal e até mesmo lamentável que tenha sido necessário uma apreciação parlamentar e chegarmos a Fevereiro 2021 para se corrigir esta injustiça.

Primeiro, é lamentável porque fica (mais uma vez) claro que as opções governativas no combate à pandemia e no apoio à população têm sido orientadas pela prioridade de minimizar os custos orçamentais, com olho na folha de Excel. Em Março 2020, o governo anunciou uma verba de 294 milhões de euros para apoios de assistência à família enquanto vigorasse o ensino a distância, com 750 mil indivíduos elegíveis. Feitas as contas de 2020, gastaram-se apenas 83 milhões de euros para 201 mil beneficiários — tradução: milhares foram excluídos pelos critérios de elegibilidade.

Esta semana, porque pressionado, o governo aceita alargar os critérios, mas sem nunca abdicar do afunilamento: só inclui as crianças do pré-escolar e do 1º ciclo, deixando as do 2º ciclo do básico de fora. Porquê? Porque as primeiras estarão em vias de retomar o ensino presencial — e logo que isso aconteça, o apoio extingue-se. Note-se: se a reabertura das escolas para o ensino presencial no pré-escolar e no 1º ciclo se desenrolar no início de Março, como se espera que venha a ser possível, estaremos novamente a discutir um golpe político sem consequência prática para as famílias. Por um lado, as famílias elegíveis deixarão de precisar do apoio (os filhos no pré-escolar/ 1º ciclo regressam ao ensino presencial). Por outro lado, as famílias com alunos no 2º ciclo permanecerão inelegíveis e excluídas de um apoio que precisam (porque o ensino a distância se manteria no 2º ciclo). Esperemos que o governo não opte por gozar com as famílias.

Segundo, é lamentável porque este modus operandi do governo expõe uma aterradora insensibilidade social. No que podemos estimar, os principais prejudicados por estes critérios de elegibilidade impostos pelo governo terão sido alguns dos mais frágeis e necessitados de apoio. Desde logo, são muitos aqueles cujas funções em teletrabalho são objectivamente incompatíveis com qualquer outra actividade em casa. Por exemplo, quem trabalha em call-centers e está em teletrabalho não pode interromper o seu horário de trabalho para acompanhar um filho em aulas à distância (exemplo, aliás, utilizado pela Provedora de Justiça na crítica ao governo às actuais restrições de acesso). Ora, em média, sendo estas profissões associadas a baixas qualificações e remunerações, estão aqui em causa os alunos e as famílias em contextos sociais potencialmente desfavorecidos — aqueles que deveriam ser a prioridade dos apoios do Estado. Pelas novas regras que o governo propõe, famílias nestas circunstâncias mas com filhos a frequentar o 2º ciclo manter-se-ão sem apoio.

Enfim, o Estado conseguiu tornar o ensino a distância, por definição desafiante, num pesadelo completo para milhares de famílias em contextos socialmente desfavorecidos, adiando investimentos ou afunilando a elegibilidade dos apoios financeiros. Por isso, falhou o seu compromisso na aquisição de computadores. Por isso, falhou o seu compromisso na tarifa social de internet. Por isso, falhou o seu compromisso de apoiar efectivamente as famílias que não conseguem acompanhar a aprendizagem dos seus filhos sub-12, sem exclusões arbitrárias. Esperemos que não falhe, entretanto, o planeamento para o regresso ao ensino presencial. Já se sabia que a factura do ensino a distância seria por definição pesada, sobretudo nos ombros dos alunos em risco de insucesso e das suas famílias. Mas, assim, com este histórico de decisões do governo, esse peso arrisca-se a ser esmagador.

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