Podemos confiar nos tribunais e nos juízes portugueses, aqueles que representam o pilar do poder judicial do regime democrático? Dizer que ‘sim’ é optar por fechar os olhos à gravidade do que, recentemente, se descobriu acerca da cedência à corrupção e manipulação de vários juízes. Dizer que ‘não’ é, contudo, uma generalização abusiva e injusta. E se a incerteza parece a resposta possível, ela é só por si inquietante: a desconfiança que recai nas instituições políticas retira-lhes legitimidade, vitalidade e eficácia. Ou seja, num momento decisivo para o regime democrático e em vias de um ex-primeiro-ministro ser julgado por corrupção, a própria Justiça ficou em xeque. Sim, com o espaço mediático preenchido pela ameaça à saúde pública que representa o COVID-19, não se tem atribuído a devida importância à frágil saúde do regime — neste caso concreto, à descredibilização dos juízes e do sistema judicial. Mas dificilmente se encontrará um combate presente mais definidor do nosso futuro. E só uma reacção determinada e inequívoca salvará a face da Justiça.

Problema: essa reação determinada e inequívoca não aparece em lado nenhum. É certo que houve investigação e apuramento de factos, levando ao conhecimento público casos de viciação de sorteios com vista à manipulação das decisões judiciais sobre determinados processos. Mas é igualmente certo que esses factos se reportam a ocorrências de há 6 ou 7 anos e que, agora, o processamento dos casos nos circuitos da Justiça se arrastará durante anos — como é a norma. Essa lentidão crónica da Justiça portuguesa é transversal e grave, todos o sabemos. Mas torna-se dramática quando arrasta consigo a própria credibilidade do sistema judicial, incapaz de afastar incertezas sobre a sua idoneidade.

A duração é, de qualquer modo, a ponta do icebergue. O mais inquietante é mesmo a timidez das respostas políticas e institucionais a estes casos de enorme gravidade, que não demonstram uma vontade clara em esclarecer e limpar o sistema judicial. Desde logo, o ministério da Justiça sacudiu as mãos do assunto, remetendo o tratamento do caso para o Conselho Superior da Magistratura (CSM). Ora, o CSM agiu, é certo, mas sem grande vigor: instaurou processos disciplinares aos juízes que foram alvo destas investigações, o que não é uma suspensão nem os impede de exercer funções — o mesmo sucedeu, há tempos, com o juiz Rangel, que permaneceu no activo enquanto investigado e suspeito de corrupção. E, reconheça-se, a única consequência prática disto tudo (a demissão de Orlando Nascimento das funções de presidente do Tribunal da Relação de Lisboa) aconteceu por pressão interna do presidente do CSM e não impede que o juiz continue a exercer naquele tribunal. Olhe-se para onde se olhar, isto não são as instituições a funcionar à altura da gravidade do caso.

No plano político, as reacções chegam a ser ridículas. O Presidente da República afirmou que a Justiça reagiu “rápida e exemplarmente”, o que é tão desfasado da realidade que dispensa comentários. Por seu lado, entre os partidos, a reacção foi de silêncio absoluto. Já sabemos como os deputados e o governo se refugiam no mote “à Justiça o que é da Justiça” quando as coisas apertam, de forma a não terem de se manifestar. Mas o facto é que, quando é a própria Justiça a ser posta em causa, o assunto assume dimensão política de primeira ordem. Ou seja, em vez de silêncio, os deputados deveriam estar a exigir uma resposta política implacável ou, na sua ausência, a preparar uma réplica pela via parlamentar. Sim, claro, há separação de poderes — mas isso não significa que cada um dos três poderes esteja isento do escrutínio dos restantes. A separação de poderes é condição essencial de uma república madura e impõe que os poderes executivo, legislativo e judicial se vigiem entre si.

A Justiça está doente, tem várias insuficiências e uma falta de meios que amputa a sua eficácia. Essa é, em grande medida, uma situação resultante de opções políticas. Por isso, o desafio maior é mesmo a gritante ausência de respostas e de vontade política, que nos últimos anos tornaram evidente que ninguém quer curar o sistema judicial. Ora, como é das leis da vida, quem não se trata acabará eventualmente por morrer da doença.

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