1 Enquanto o país está distraído com uma suposta crise político-orçamental — que a concretizar-se levará a eleições antecipadas que não interessam a ninguém e que não alterarão o atual quadro político —, o PSD, o principal partido da oposição que tem a obrigação de liderar uma alternativa ao PS, está a passar por um momento definidor do que vai ser nos próximos anos.

Fortalecido por uma vitória surpreendente no Conselho Nacional (por ter conseguido derrotar Rui Rio num órgão que este supostamente dominava e logo por números esmagadores), Paulo Rangel avançou para uma candidatura a líder do PSD com um discurso forte, muito bem estruturado e com as mensagens certas.

E o que disse Rangel? Teve uma mensagem clara e totalmente contrastante com a liderança de Rui Rio em dois planos:

  • Interno. Prometeu unir e agregar os diferentes pensamentos do partido contra o tribalismo de Rio e, se vencer as eleições, chamará os derrotados (nomeadamente rioístas) para a sua equipa;
  • Externo. Quer fazer uma oposição firme, assertiva e responsável e defende um novo posicionamento do PSD que deixa de estar exclusivamente ao centro, hirto e imóvel, para respeitar aquele que sempre foi o core eleitoral. Do centro-esquerda à direita moderada; dos social-democratas aos liberais, conservadores e cristãos-democratas. Rangel quer, e bem, um ‘catch-all party‘ que lidere uma maioria reformista e termine com a longa estagnação económica desde 2000.

2 O momento mais marcante do discurso de Paulo Rangel foi a evocação do “Portugal não pode parar” — o mote da campanha do PSD para as legislativas de 1987, nas quais Cavaco Silva veio a ganhar a primeira maioria absoluta e iniciou o período de maior transformação económica e social desde o 25 de abril.

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Chamar de forma explícita esse período histórico ‘à conversa’ corresponde à correção de um dos grandes erros do centro-direita dos últimos 30 anos: a desvalorização da herança da governação de Cavaco Silva entre 1985 e 1995.

Vamos ser claros: com a exceção da vitória a 25 de novembro de 1975 das forças moderadas lideradas por Mário Soares sobre o PCP e a extrema-esquerda, que abriu caminho à implementação de uma democracia representativa, não há nenhum período de transformação política, económica e social que se assemelhe aos dez anos dos governos cavaquistas.

O Portugal que existe hoje foi essencialmente estruturado entre 1987 e 1995 — o que, ao mesmo tempo, também é o reconhecimento de que o país, com a exceção da entrada para o Euro (cujas bases foram lançadas por Cavaco), nunca mais voltou a ter reformas tão profundas como aquelas que ocorreram nesses longínquos anos.

Sendo impossível descrever neste artigo tudo o que os governos de Cavaco fizeram, é factual afirmar que não há nenhum setor fundamental da sociedade que não tenha sido reformado. Só alguns exemplos. Infa-estruturas (a rede de auto-estradas e os IP’s e os IC’s revolucionaram a acessibilidade), a Administração Pública (novo sistema de organização e remuneratório), Justiça (o Código de Processo Penal revolucionário de 1987 que permitiu a especialização do Ministério Público), o Planeamento (a criação dos planos de gestão do território, como o Plano Diretor Municipal, e das comissões de coordenação regional), o Ambiente (a criação de uma consciência social sobre essa temática e da respetiva organização do Estado), os Media (privatização da imprensa escrita e liberalização dos mercados da rádio e da televisão) e a Saúde e a Educação — foram tantas a mudanças nestes dois últimos setores que é impossível destacar uma ou duas.

Talvez a base para tudo isto tenha sido a revisão constitucional de 1989 (acordada entre o PS de Constâncio e Sampaio) que concluiu o desmantelamento do período revolucionário (iniciado com a Constituição de 1982 da AD de Francisco Pinto Balsemão) e permitiu a construção de uma verdadeira economia de mercado com a liberalização dos setores fundamentais e o fim da irreversibilidade das nacionalizações — liberalização essa que, por sua vez, é responsável pelos níveis recorde de investimento direto estrangeiro que levaram à criação de emprego sustentável e a um aumento generalizado dos salários.

Cavaco recebeu em 1985 um país com uma taxa de inflação a rondar os 20%, em que as taxas de juro atingiam os 30% e um défice público de 11% do PIB. As suas políticas levaram a um crescimento médio anual do PIB acima dos 4% (chegou a crescer 7,86% em 1990), o PIB per capita quadruplicou (de 2.305 euros em 85 passou para 8.879 euros em 95) e a inflação baixou para 4,2% em 95. O nosso PIB per capita em 1995 correspondia a 81% da média da União Europeia (os dados existentes começam precisamente em 95), enquanto que em 2020 a projeção é de apenas 77% da média da UE.

E não, os fundos europeus da CEE não explicam tudo. Basta consultar os dados da Pordata para perceber que os dois governos Guterres receberam proporcionalmente mais dinheiro europeu, não tiveram uma crise mundial como a de 92/93 (pelo contrário, tiveram melhor conjuntura) e não atingiram nem metade dos resultados de Cavaco.

Os resultados da governação cavaquista são inequívocos e indesmentíveis. Foi um período perfeito? Não, não foi. Houve erros graves na interação com os restantes poderes do Estado, os setores das pescas e da agricultura foram seriamente prejudicados com a entrada na Comunidade Económica Europeia (por via do tratado de adesão que tinha sido negociado pelo Governo do Bloco Central, é certo) e o nível de corrupção foi preocupante.

3 E porque digo que Paulo Rangel está a corrigir um grande erro? Porque desde sempre que o centro-direita se deixou condicionar com a narrativa dos “governos de maioria absoluta absolutista” criada pela esquerda, quase como se estivéssemos perante um Executivo autoritário e ilegítimo — e não perante o primeiro-ministro mais votado nos quase 50 anos que já temos de democracia e o que mais fez crescer economicamente e socialmente o país.

A menorização dos resultados extraordinariamente positivos do cavaquismo sempre foi a estratégia da esquerda que contou, inclusive, com a cumplicidade de uma certa direita elitista e snob do “Independente” de Paulo Portas.

Entre as meias brancas e a timidez transformada em arrogância, tudo serviu para atacar Cavaco — e esse “tudo” ainda hoje ajuda a definir uma parte importante da esquerda portuguesa porque se resume à seguinte ideia: o homem não tinha o direito natural de liderar o país. Porquê? Por que não tinha feito as coisas certas:

  • Não pertencia à classe social certa. ‘Apenas’ tinha a origem social de 90% dos cidadãos de um país desgraçadamente pobre e miserável na maior parte do séc. XX.
  • Não tinha lido os livros certos e muito menos tido a educação literária que se impunha, como se ler Baudelaire, Balzac, Flaubert, Stendhal, Tolstoi ou Dostoiévski fosse condição mais importante para governar um pais do que dominar as ciências económicas ou jurídicas.
  • Pior: não era frequentador assíduo do São Carlos ou da Gulbenkian e muito menos estava nos círculos jornalísticos.

Enquanto esta mesma esquerda aristocrática tudo perdoou a Mário Soares (e muito foi necessário perdoar), tudo cobrou (e ainda cobra) a Cavaco Silva da forma mais despudorada possível. E mais extraordinário: conseguiu impor à direita a forma como deve olhar para Cavaco, que é o seu líder histórico — como Rangel acaba por reconhecer no seu discurso.

Aliás, esta é uma distorção que algum dia terá de ser resolvida. Enquanto a direita reconhece desde há muito, o papel inquestionável de Mário Soares na construção da democracia, uma parte importante da esquerda, com o seu espírito de superioridade e revanchista, sempre fará tudo para denegrir e atacar a legitimidade histórica do cavaquismo.

4 É por tudo isto que a evocação do sucesso do cavaquismo por parte de Paulo Rangel tem importância. Até porque além da evocação explícita, Rangel começou o seu discurso contra as elites aristocráticas e imobilistas, que levam a “elevados níveis de reprodução” e promovem a “promiscuidade”, “endogamia”, “clientelas” e a “cultura da ‘cunha’, da cumplicidade e do compadrio.”

Partir da “revolução social” promovida pelo cavaquismo, que “sonhou e lançou as bases da criação de uma grande e forte classe média”, para construir um projeto reformista e mobilizador que derrote António Costa e crie as condições para que todos os portugueseses possam “subir na vida”, independentemente da sua origem social — é um sinal evidente de que Rangel quer assumir sem complexos o legado da governação cavaquista.

Outro ponto importante do seu discurso é o ênfase que colocou na ideia das duas décadas perdidas desde 2000 que significam a estagnação e o empobrecimento relativo a países europeus nossos concorrentes direitos, que tinham sido realçados pelo artigo de Cavaco Silva no Expresso.

Não são só os socialistas (Guterres e Sócrates) que são responsabilizados. Indiretamente, e apesar das atenuantes de terem tido de lidar com o procedimento de défice excessivo em 2002 deixado por Guterres e com a bancarrota provocada por Sócrates em 2011, Durão Barroso/Santana Lopes (2002/2005) e Passos Coelho (2011/2015) também acabam por ser criticados. A importância dada à palavra “esperança” é um sinal de que Rangel também aprendeu com os erros do passismo.

5 Houve igualmente outro momento de contraste face a Rui Rio que me agradou particularmente. Refiro-me à defesa firme do Estado de Direito e de princípios estruturantes como a separação de poderes, o que significa que o PSD de Paulo Rangel defenderá a independência do poder judicial e a liberdade de imprensa sem restrições.

Rio desbaratou completamente todo o património de Passos Coelho na defesa da independência do poder judicial, nomeadamente na luta contra a corrupção — de que a nomeação da procuradora-geral Joana Marques Vidal por parte do Presidente Cavaco Silva, por proposta da ministra Paula Teixeira da Cruz, foi o melhor exemplo. Não só desbaratou, como queria (e continua a querer) transformar-se no Viktor Orban português, controlando o poder judicial e ameaçando regularmente os jornalistas com mais regulação para os ‘pôr na linha’.

Paulo Rangel disse sem espinhas que isso nunca acontecerá. Recuperou assim a herança de Passos de respeitar o livre funcionamento dos mecanismos de freios e contra-freios que qualquer democracia representativa tem de ter. Rangel faz bem porque é a única forma de o PSD afastar de vez o risco reputacional claro que o mandato de Rui Rio sempre comportou.

6Dado o pontapé de saída, veremos se Paulo Rangel, que parte claramente como favorito, terá concorrência na corrida à liderança. Continua a existir a hipótese de Jorge Moreira da Silva avançar para uma candidatura, tal como o Expresso noticiou este sábado. Atendendo às suas capacidades políticas e executivas, seria sempre um bom contributo para uma campanha mais esclarecedora.

E ainda há a ponderação que Rui Rio está a fazer — uma ponderação que não deixa de ser estranha quando o atual líder do PSD considera que foi o vencedor “político” das autárquicas. Acresce que Rio sempre gostou de auto-elogiar a sua coragem pela candidatura vitoriosa à Câmara do Porto em 2001 contra “as sondagens” e os jornalistas.

Agora que se transformou num dos poucos líderes social-democrata a perder um Conselho Nacional, está a pensar em fórmulas matemáticas que providenciem uma resposta sobre se deve avançar com uma recandidatura.

Se Rio tem a clara convicção (como tem) de que a sua estratégia é a mais correta, se persiste (como persiste) em não reconhecer minimamente os erros crassos que cometeu desde que chegou à liderança o partido em 2018 e se está tão convencido (como sempre esteve) de que o posicionamento ideologicamente diversificado defendido por Rangel está errado, então só tem uma opção: recandidatar-se e ir a jogo.

Isso, sim, será um exemplo de coragem política. Se não for, será exatamente o oposto.

Texto alterado às 11h59 para corrigir várias gralhas