Desde as últimas eleições legislativas, em 2019, que tema dominou a agenda política? A resposta é inequívoca: foi a pandemia da Covid-19. Nos últimos dois anos, nada se afirmou mais importante nas nossas vidas colectivas do que a contenção deste vírus. O que, na arena política, significou discutir a organização dos serviços de saúde para responder às necessidades da população num contexto adverso, a logística (e as opções de prioridade) da vacinação massiva da população ou a adequabilidade das restrições de circulação implementadas. Ou, ainda, avaliar o impacto das medidas na população (no tecido económico, nas escolas ou no bem-estar mental), a clareza das orientações das autoridades de saúde ou a protecção das instituições democráticas nestes tempos excepcionais.

Passámos dois anos nisto. Aliás, é ainda nesse ponto que estamos. Olhe-se aos últimos 30 dias: os grandes debates focaram-se exclusivamente na contenção da pandemia. Fosse nas prioridades definidas para a vacinação da população com uma terceira dose (populações de risco, crianças, professores). Fosse na testagem massiva da população até ao período de convívios natalícios (e na escassez de auto-testes ou falta de vagas para marcação de testes antigénio nas farmácias). Fosse nas novas restrições, alterando as regras para acesso a lares e a restaurantes (nos dias das festas de Natal/ Ano Novo) e encerrando discotecas. Fosse no alarmismo perante números recordes de infecções e, depois, na constatação de que, apesar disso, estamos muito mais protegidos do que antes. Fosse, por fim, na busca tardia de soluções para garantir que os cidadãos em isolamento (em virtude de infecções ou contactos de risco) possam votar nas eleições legislativas de dia 30.

Antes ou agora, os temas relacionados com a pandemia monopolizam as nossas atenções. Para onde quer que olhemos, permanecem à frente do nosso nariz. Mas, subitamente, eis que surge uma enorme excepção: a campanha eleitoral. Seja o atraso actual na vacinação (terceira dose) ou o balanço sobre a contenção da pandemia desde 2020, foram pontuais as referências à Covid-19 nos debates. Os líderes partidários até fugiram do tema do momento: o acesso dos cidadãos em isolamento às urnas de voto. Por exemplo, no debate entre António Costa e André Ventura, a questão foi trazida pelo jornalista José Adelino Faria e não pelos líderes partidários, que fizeram o possível para a chutar para longe (Ventura ilibou-se de responsabilidades enquanto deputado, Costa simplesmente mudou de assunto).

Esta ausência tem significado. É como se, durante os 25 minutos dos duelos entre líderes partidários, a realidade ficasse suspensa e a pandemia já não existisse. Repare-se: isto vai além do problema de discutir o acessório em vez de olhar para os desafios reais do país — como assinalei na semana passada. Isto é um alheamento deliberado do que marcou e marca a governação nesta legislatura, como se estes debates acontecessem num mundo sem Covid-19. António Costa, recandidato a primeiro-ministro, prepara-se para encerrar o ciclo de debates televisivos sem que os adversários o responsabilizem pelas várias falhas na contenção da pandemia em dois anos. Quais? Os atrasos na vacinação da terceira dose, o caos do planeamento destas eleições legislativas, o encerramento das escolas básicas durante períodos excessivos (em contraciclo com os restantes países europeus), ou o descalabro na gestão da pandemia no inverno passado (que colocou Portugal nos recordes internacionais negativos). É extraordinário.

O que explica esta ausência? Podemos especular. Talvez seja a habilidade do governo em converter determinadas decisões difíceis numa alegada escolha dos epidemiologistas — as restrições foram quase sempre apresentadas como cientificamente inevitáveis, em vez de opções políticas (como o foram). Talvez seja o facto de (quase) todos os partidos sentirem co-responsabilidade em determinadas falhas — é difícil entender como é que, em dois anos, o parlamento não alterou a lei eleitoral, de modo a permitir maior flexibilidade para os cidadãos votarem. Talvez seja que os partidos não vejam motivos para criticar a acção do governo — Mariana Mortágua, do BE, até lembrou que o seu partido viabilizou todas as medidas propostas. Enfim, talvez seja tudo isso em conjunto. Mas, seja lá o que for, há um elefante na sala e responsabilidades para apurar. E, mesmo que os partidos não o queiram admitir, os eleitores não são cegos.

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