Sabemos hoje que o programa criado para apoiar empresas aquando do fim das moratórias, apelidado Retomar, não passou do papel e apenas 2% das verbas da linha Retomar foram utilizadas pelas empresas. É um valor ridiculamente baixo: foram executados cerca de 22,7 milhões de euros, de um total de 1000 milhões de euros inicialmente previstos. Cavou-se um abismo entre as expectativas criadas pelo discurso político e a realidade. Pior: após um discurso repetido sucessivamente, sobre a necessidade de apoiar as empresas neste contexto pandémico, tal fracasso foi noticiado mas não suscitou diagnósticos, indignação, debate público ou, muito menos, qualquer apuramento de responsabilidades. Silêncio quase absoluto.

Vale a pena contar a história desde o início. O apoio foi anunciado pelo então ministro da Economia, Siza Vieira, em Julho de 2021, que salientou a necessidade de apoiar as empresas e assegurou que, através desta linha Retomar, 25% do crédito sob moratória poderia beneficiar de uma garantia do Estado. Feito o anúncio, o apoio foi então lançado em Setembro de 2021 pelo Banco Português de Fomento, com a habitual pompa mediática e política. Após um longo período de contenção da pandemia, com consequências dramáticas para vários sectores de actividade económica, havia sido esta a via encontrada pelo governo para prestar o devido auxílio às empresas, num momento crítico — o fim das moratórias. Durante longas semanas, incluindo na campanha eleitoral das legislativas, este e outros apoios às empresas serviram de exemplo da acção do governo na resposta às necessidades do tecido económico.

Dificilmente por coincidência, cinco dias após as eleições legislativas, no dia 4 de Fevereiro, o Banco Português de Fomento divulga o balanço dos primeiros três meses de vida do Retomar. Até 31 de Dezembro de 2021, a taxa de utilização por parte das empresas havia sido de uns míseros 4% (cerca de 40 milhões de euros). O fracasso estava anunciado. E foi ampliado recentemente, no âmbito da discussão do Orçamento de Estado para 2022, com a revisão em baixa dessa execução para cerca de 2%. Como justificar números tão baixos?

Na verdade, a surpresa seria se os números fossem elevados. Desde o seu lançamento, a linha Retomar havia sido alvo de inúmeras críticas, tanto pelas empresas como pelas instituições bancárias. Por exemplo, a Confederação Empresarial de Portugal avisou, logo em Setembro de 2021, que as regras e os critérios de elegibilidade para as empresas acederem aos apoios estavam mal elaborados e demasiado apertados — isto é, que o próprio desenho do Retomar excluiria uma enorme fatia das empresas que necessitariam destes apoios. Por isso, aquando do balanço de Fevereiro de 2022, a expressão de António Saraiva foi lapidar: “se o funil é apertado, não nos podemos admirar que deixe passar pouca água”. Também nos bancos prevalecia a mesma percepção e Paulo Macedo já havia apontado às restrições que impediriam o acesso a muitas empresas. De resto, um outro problema se anunciava desde o início: recorrer a esta linha Retomar implicaria um registo muito negativo no historial bancário das empresas, com implicações futuras, o que forçosamente afastaria muitas delas. Ou seja, o fracasso constatado nos números a partir de Fevereiro de 2022 foi o desenlace expectável.

Terá o Estado assumido os erros? Obviamente que não. Da parte do governo, silêncio e uma discreta correcção burocrática de verbas, por parte do então ministro das Finanças João Leão, que cortou a dotação inicial em 82% (de mil milhões para 177 milhões de euros). Da parte do Banco Português de Fomento, a interpretação criativa dos factos é tal que até provoca embaraço: de acordo com a instituição, uma tão baixa taxa de utilização não representa um fracasso do Retomar, mas sim a solidez das empresas portuguesas, que não precisaram de recorrer a esse apoio. Por outras palavras: o Banco Português de Fomento acha que está tudo bem porque, afinal, se reconhecesse que estava tudo mal teria de se olhar ao espelho.

Esta poderia ser a excepção, mas tornou-se cada vez mais a regra. Anunciam-se com pompa apoios de milhões de euros, mas introduzem-se critérios de elegibilidade que excluem os principais destinatários. Falham-se as metas, mas o balanço é sempre de sucesso. Os erros são evidentes, mas não há apuramento de responsabilidades. Eis Portugal, o reino da propaganda. E o pior é que, quando a realidade se impõe indisfarçável, é sempre tarde demais — já ninguém quer saber e nada se aprende.

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