A «questão russa» está longe de ser de agora. Antes e depois da tomada do poder pelos chamados «bolcheviques», i. e., os pretensos «maioritários» do antigo partido social-democrata liderados por Lenine, há uma questão russa – etno-cultural, digamos – que precede e, aparentemente, ainda hoje prossegue através das mudanças de regime político desse imenso país.

Com efeito, nem as vastas obras de Tolstoï e Dostoïevski chegam para dar conta da trágica história das múltiplas Rússias por eles em grande parte vividas, desde o czarismo histórico até ao revolucionarismo de 1905 e, finalmente, às revoluções de 1917, primeiro a democrática em Fevereiro, provocada pelo fracasso militar da Rússia perante a Alemanha, e logo a seguir, em Outubro, a implantação do «bolchevismo»…

Até à queda da «cortina de ferro» 74 anos mais tarde, iniciada com o derrubamento do «Muro de Berlim» em fins de 1989 e consumada dois anos mais tarde, com desiguais abolições das várias ditaduras existentes nos diversos países europeus capturados pelos partidos comunistas no rescaldo da 2.ª Guerra Mundial, como se tem visto ultimamente… O mais renitente desses partidos foi o da antiga URSS. Quanto à Rússia Branca, ainda hoje fiel à revolução de ‘17, tem acompanhado a nova Federação Russa no ataque à Ucrânia.

Em suma, apesar da aparente «abertura» da era Gorbachov, a Rússia nunca chegou a abandonar desde então um sistema político autoritário, assim como não desapareceu a temível polícia secreta do tempo do KGB. Apenas mudou de nome. Foi aí, como é sabido, que Vladimir Putin fez a sua ascensãoentre a polícia e a política desde 1975 a 1991, até se fazer eleger presidente da actual Federação Russa durante duas décadas em vias de continuação.

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É este o sinistro ponto em que se encontra actualmente o sistema político russo, ancorado como está na tradição ditatorial soviética e protagonizado hoje por um indivíduo com o pior passado político possível assim como a delirante ambição de presidir no futuro à reconquista do império de Staline! Pior e mais perigoso é difícil, para não dizer impossível. Não estamos longe de um novo Hitler com quem tem, entre outras semelhanças, a paranoia de esmagar tudo o que lhe faz frente e de arrasar peça a peça o mundo real das pessoas, das casas, das ruas…

Lamentavelmente, em alternativa a Putin, só se fala dos «siloviki», ou seja, «os duros». Trata-se do núcleo de antigos «colegas» de Putin, entre os quais Nikolai Patrushev, outro antigo membro do KGB e hoje chefe máximo das polícias, de quem se fala como possível sucessor do actual «czar das Rússias»… Continua, porém, a faltar quem ponha termo à paranoia de Putin bem como às ameaças de guerra nuclear que ele não cessa de proferir desde o primeiro minuto da invasão da Ucrânia.

Entretanto, parece faltar também no país de Putin uma sociedade minimamente coesa e dotada de vontade e experiência para lidar com a actual monstruosidade política. Segundo argumenta uma analista russo-americana como Masha Gessen em The Future Is History: How Totalitarianism Reclaimed Russia (2017). a sociedade russa produzida por décadas de repressão política, económica e cultural não só não terá adoptado os comportamentos sociais vigentes nas chamadas democracias capitalistas, conforme se poderia imaginar, como permaneceu até agora «traumatizada pela tóxica herança» da tirania soviética e pela interiorização social da obediência…  como nem no meio-século salazarista nos aconteceu.

Se não quisermos perder a lucidez perante a tragédia em curso, temos de perceber que estamos mais perto de uma terceira guerra mundial do que de uma paz rápida e equitativa, assim como não podemos ocultar o preço que a Europa e os Estados Unidos estão a pagar pelas armas fornecidas à Ucrânia e, sobretudo, pelas gigantescas e suspeitas operações económicas estabelecidas a longo-prazo entre a Alemanha e a Rússia sob a responsabilidade de uma Angela Merkel que passou de santa a bruxa em menos de 24 horas e assim continuará até ao resto dos seus dias.

À nossa modesta escala, Portugal parece não ter escapado à tentação de espiar por conta da Rússia os ucranianos fugidos, crianças sobretudo, aos sistemáticos bombardeamentos russos. Numa situação como aquela que estamos todos a viver sem remédio, é não só impossível como inútil pretender fugir às indiscutíveis acusações de espionagem em favor da Rússia – por pequenas que sejam – de uma câmara municipal da Outra-Banda.

Algo parecido já ocorrera aliás na Câmara de Lisboa durante o mandato de um ministro do actual governo. Desta vez foi uma secretária de Estado do PS quem parece ter sido surpreendida por uma doença desconhecida 24 horas depois de se saber, através de uma das vítimas da espionagem, aquilo que estava a suceder na Câmara de Setúbal… Por mais que tais comportamentos sejam banalizados, a verdade é que a imigração ucraniana não cessa de ser vítima do Estado português: não nos fica nada bem.