O debate em Portugal sobre o envenenamento de Sergei Skripal e as suas consequências tem sido, na minha opinião, algo fragmentário, como se cada analista, todos a merecerem-me o maior respeito, revelasse na conversa pública sobre o assunto um problema de perspectiva.

Há a perspectiva política, que examina os factos ocorridos à luz da relação de forças entre a Federação Russa e o Ocidente, com o grande Império do Meio em pano de fundo já a circular pela Nova Rota da Seda (“Belt and Road initiative”). A essa luz, o Reino Unido surge como a ponta da lança dos interesses ocidentais, num confronto que parece a réplica em continuação da guerra fria, após o breve hiato causado pelo fim do comunismo. O argumento inclui a Síria e as intervenções norte-americana e russa, o Irão e a Arábia Saudita e, como sempre, Israel. Nesta dimensão, também, a Turquia baralha as cartas, com um horizonte de afastamento da NATO que não pode deixar de preocupar o Ocidente.

Há depois a perspectiva militar, que considera o ataque russo uma ameaça à soberania do Reino Unido e, por extensão, aos países das alianças ocidentais (NATO e UE, essencialmente). Dela decorre a necessidade da retaliação, para já pela via explícita da diplomacia, seguindo-se a política, que pode levar a cumprir-se a incompreendida máxima de Clausewitz, “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Fixemo-nos por instantes no seu livro “Da Guerra”, do qual a frase é retirada. Foucault, décadas depois, sugeriu a sequência inversa: a política como continuação da guerra por outros meios. Assistimos a isso no período de confrontação não armada do pós-2ª guerra, salvo as guerras por proxy (intermediários) em distintos cenários bélicos, da distante Indochina à familiar Angola, tocando quase todos os continentes. A confrontação armada não é inevitável mesmo que a guerra decorra por outros meios.

A terceira perspectiva relevante é económica. No sistema económico global, o fornecimento de recursos energéticos pela Rússia à vizinhança alargada – petróleo e gás, fundamentalmente – representa um extraordinário trunfo. A segurança energética determina a política das grandes potências e o realinhamento das alianças tradicionais. No início do ano foi inaugurada a 2ª linha do oleoduto para a China, duplicando o volume de exportações de petróleo bruto da Rússia de 15 para 30 milhões toneladas/ano. A política dos oleodutos alimenta qualquer consideração séria de política externa, sem esquecer a referida Rota da Sede, com que a China confronta, em termos de influência económica, não apenas a Rússia mas o próprio Ocidente.

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Finalmente, a perspectiva geoestratégica recupera conceitos da velha alteridade entre a potência continental e as potências marítimas, mediterrânicas e sobretudo atlânticas. Nos quase 15 anos em que o sistema político internacional foi unipolar, a Rússia submeteu-se às decisões dos EUA, com uma consequência principal: toda a cintura de segurança tradicional do país, do Norte báltico ao extremo asiático (Vladivostok, para simplificar), passando por alguns dos territórios fundadores da nação, como a Ucrânia e as antigas Repúblicas soviéticas da Ásia Central, ficou ameaçada pelo avanço inexorável das Alianças ocidentais (e da China, quiçá…).

São perspectivas válidas, a merecer reflexão e aprofundamento. Sugiro uma quinta razão, menos referida, certamente não a única nem a mais decisiva, mas que talvez facilite a síntese entre os distintos cenários analisados: a dimensão identitária e nacional da Rússia.

Não se trata aqui da Rússia soviética, revolucionária e internacionalista, a despeito da narrativa nacionalista estrita (e estreita) imposta por Estaline a partir dos anos 30, mas da velha Rússia do baptismo de Rus, de 988, quando em Kiev Vladimir o Grande aceitou a conversão do seu povo ao cristianismo de rito bizantino. Em 2005, o historiador Nicholas Riasanovsky, no livro “Russian identities: a historical survey”, fez assentar a formação da identidade russa nessa antiquíssima fundação e nos séculos que se lhe sucederam, de certa forma negando a origem moderna da Nação teorizada por autores como Hobsbawn, Anderson e Anthony Smith. Mas interessa-me mais outra tese expendida no livro: a de que a experiência soviética, os anos entre 1917 e 1989, foram um desvio no percurso histórico da afirmação da identidade e nacionalismo russos. Uma ruptura da continuidade da história iniciada em Kiev, sujeita depois à dominação mongol – dos Tatares –, até à sua expulsão definitiva por Ivã o Grande; da unificação sob Ivã o Terrível à longa dinastia Romanov de Pedro e Catarina a Grande, passando por Napoleão e pela inexorável decadência que levou à Revolução bolchevique. Não é uma tese evidente, pois para muitos analistas o Estado soviético foi responsável pela consolidação de uma identidade multiétnica e pelo desenvolvimento económico e militar do país.

Eu, pelo contrário, considero que patriotismo e crença ortodoxa, fundados nos velhos baluartes de uma identidade secular de um país que cobre mais de um nono da área terrestre do planeta, são a essência da reconstrução pós-soviética, que devolve à Rússia a sua histórica identidade. Herdeira de um dos dois maiores e mais poderosos exércitos do planeta, dona de importantes jazidas de petróleo e gaz natural (50% das suas receitas), não demorou mais de dez anos até que começasse a superação do trauma da queda do Muro e do fim da URSS.

Mas se a identidade russa não é soviética nem nunca foi, também não é Ocidental nem nunca o será. E o que conta é a sua zona de influência imediata na era pós-soviética, cujo domínio a Rússia (e Putin) estão dispostos a recuperar nem que seja pela força. O objectivo é restaurar a “Nação Russa”, identitária, nacionalista, ortodoxa, unindo-a numa grande comunidade civilizacional. Ora esse objectivo depara aos olhos dos russos com um obstáculo perturbador: a expansão dos interesses ocidentais, isto é, outra vez, da Nato e da UE. Em Danang, no final de 2017, Putin expressou a estratégia da Federação: “Como um grande poder eurasiático (…) apoiamos a ideia de formar uma zona de comércio livre Ásia-Pacífico. (…) o projecto de criação da zona de livre troca deve ser desenvolvido tendo em conta a experiência da implementação dos formatos chave de integração na região da Ásia-Pacífico e da Eurásia, incluindo a União Económica Eurasiática (…)”. A luta de influência entre Rússia e UE, com a sua política de parceria a leste e celebração de acordos de integração económica, já levou à perda pela Ucrânia (o berço de Rus) da Crimeia e de uma parte do seu território. A presença da NATO às portas da Rússia ameaça agravar o conflito.

A Europa, os EUA e as alianças ocidentais podem e devem defender-se. O envenenamento por agentes químicos do agente duplo Sergei Skripal e da filha é um degrau mais nessa escalada, a que aliás se seguiu a imediata subida de outros, como a expulsão em massa de diplomatas. Mas as razões para a presente situação são múltiplas e complexas. De política pura (do poder, portanto), económicas, militares, geo-estratégicas e identitárias. Essa complexidade, a não ser compreendida, levará inevitavelmente os líderes ocidentais a cometer demasiados erros e a adoptar políticas seja timoratas seja precipitadas. Já se vislumbram algumas consequências dessa dupla e contraditória insuficiência, seja na questão síria, seja no risco eventual de saída da Turquia da Nato. O urso russo pode e deve ser confrontado mas não é aconselhável encurralá-lo. Permitam-me concluir com uma frase de Winston Churchill, por estes dias tão em voga, dita num discurso radiofónico em Outubro de 1939:

“Não consigo antecipar a acção da Rússia. É uma adivinha, embrulhada num mistério, dentro de um enigma; mas talvez haja uma resposta. A resposta é o interesse nacional da Rússia”. Será fácil, afinal?