Ausente em grande medida do debate público e, em particular, do debate pré-eleitoral – a exemplo de outros temas centrais para o nosso futuro (Europa, situação internacional, defesa e segurança, para citar apenas os mais relevantes) – o impacto crescente que a revolução tecnológica em curso irá ter nas nossas vidas ao longo das próximas décadas, com o desenvolvimento acelerado da inteligência artificial (IA) e da robotização, não tem merecido particular atenção.

Entre nós, o assunto veio rapidamente “à superfície” na sequência das declarações proferidas há poucas semanas pela diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva – referindo que mais de metade dos atuais empregos, em particular nas economias avançadas e também nalguns países emergentes, serão “afetados” ou “impactados” pela revolução em curso – mas, mais rapidamente ainda, parece ter caído de novo no esquecimento.

Por que motivo o tema tem passado à margem do debate público e da campanha eleitoral? Há razões para estar preocupado com o futuro do emprego? O que significa, em concreto, dizer que mais de metade (60%, para ser mais preciso) dos empregos serão “afectados” ou “impactados”? O que devíamos fazer para antecipar as mudanças e enfrentar o desafio?

A esmagadora maioria das pessoas está focada nos problemas mais imediatos e prementes e procura sobretudo respostas para aqueles com que se confronta diariamente (saúde, habitação, pensões, educação, salários) e tende a não valorizar preocupações que vê como mais distantes ou cujos contornos não estão suficientemente definidos. Para muitos, sobretudo os mais velhos, a preocupação central não é tanto o futuro do emprego, mas o das suas pensões de reforma (porque já são pensionistas ou porque o serão dentro de poucos anos…). Para os mais jovens, o futuro do emprego é certamente mais importante. Mas a preocupação é relativa, seja porque se consideram mais bem preparados para os desafios da revolução tecnológica (erradamente, a meu ver, na maioria dos casos…), seja porque o futuro é algo distante e o mundo uma interminável janela de oportunidades, sobretudo para lá das nossas fronteiras.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sobra o universo daqueles que hoje têm entre 40 e 55 anos, no qual muitos se consideram, com ou sem razão, ora ainda suficientemente “jovens” para se adaptarem à evolução do mercado de trabalho, ora já demasiado “velhos” para mudar.

É verdade que a evolução da Humanidade conduziu, ao longo dos tempos, a alterações muito significativas nas condições de trabalho e no “desenho” das profissões, algumas delas verdadeiramente disruptivas (basta pensar, por exemplo, na chamada “revolução industrial” nos séculos XVIII e XIX ou no desenvolvimento das novas tecnologias de informação na viragem do último século). Mas, ao contrário das anteriores, o impacto e os efeitos da revolução tecnológica em curso no emprego – e no mercado de trabalho – far-se-ão sentir num prazo claramente mais curto e serão, provavelmente, ainda mais disruptivos. Tal não significa, necessariamente, que iremos assistir a uma contração ou destruição do emprego em termos globais, mas sim que os empregos e as profissões terão uma alteração profunda na sua matriz (o que trará consigo a destruição de empregos e postos de trabalho, mas também a criação de novos).

Naturalmente, haverá profissões que, pura e simplesmente, vão desaparecer ou em que o número de empregos disponíveis tenderá a ser residual, enquanto outras nascerão ou terão relevância acrescida (cientistas, engenheiros e analistas de dados; especialistas em cibersegurança, segurança de dados, automação e IA; engenheiros e técnicos de robótica; marketing digital e criadores de conteúdo…). Empregos cujos níveis de retribuição serão substancialmente diferentes dos atuais (para melhor ou para pior, consoante os casos). Atividades cujo exercício passará a exigir competências significativamente distintas daquelas que hoje reconhecemos como adequadas para a função.

Embora se antecipem mudanças mais profundas do que as verificadas nas últimas décadas, a verdade é que já vimos assistindo nos últimos 25 anos (em Portugal, tal como na generalidade dos países que nos são próximos, em termos geográficos ou de modelo económico) a uma alteração significativa da “distribuição” do emprego pelas diferentes profissões para um volume total de emprego (VTE) substancialmente idêntico.

Se analisarmos os dados relativos ao período compreendido entre 1998 e o final de 2022 (ver Pordata e estatísticas do INE), verificamos que o número total de empregos em Portugal, no início e no fim desse período, é praticamente o mesmo (4,85 milhões em 1998; 4,88 milhões em 2022). O que se alterou, nalguns casos de forma drástica, é o número de pessoas empregadas nas diferentes categorias de profissões/setores de atividade e o respetivo peso percentual no VTE.

Assim, na categoria “especialistas das atividades intelectuais e científicas” o peso no VTE subiu, nos últimos 25 anos, de 6% (297 mil) para 22% (1.087 mil). Na “agricultura, pescas e floresta” desceu de 12% (577 mil) para 2% (110 mil). Na “indústria e construção” desceu de 23% (1.100 mil) para 13% (623 mil). No “trabalho não qualificado” desceu de 13% (620 mil) para 8% (397 mil). Nos “técnicos e profissionais de nível intermédio” subiu de 8% (370 mil) para 12% (570 mil).

A análise destes números ilustra de forma percetível a dimensão das mudanças na matriz do emprego em Portugal e a percentagem significativa de empregos destruídos/empregos criados ao longo dos últimos 25 anos, sem que o VTE se tenha alterado de forma visível.

Iremos assistir a um fenómeno substancialmente idêntico com o desenvolvimento crescente da IA?

Provavelmente sim, mas aqueles que se têm debruçado sobre o tema apontam mais dúvidas do que certezas, invocando sobretudo dois argumentos: a dimensão da resistência à mudança nalguns setores de atividade, sobretudo fundada em preocupações de natureza ética, cultural ou operacional e a natureza tendencialmente transversal do impacto da IA, que não se limitará – como as anteriores vagas de automação ou de introdução das tecnologias de informação – a afetar empregos rotineiros ocupados por pessoas com baixas ou médias qualificações, para passar a abranger igualmente – ou mais até… – empregos que requerem altas qualificações, até agora “imunes” à automação (ver, por todos, o documento “Gen-AI: Artificial Intelligence and the Future of Work”, IMF Staff Discussion Notes, SDN/2024/001, disponível aqui e o “Future of Jobs Report 2023”, World Economic Forum, disponível aqui).

Antecipar quais os empregos cujo futuro está mais dependente do desenvolvimento da IA (e da robótica) implica analisar não apenas o respetivo grau de exposição (i.e., a potencial sobreposição entre as aplicações de IA e as capacidades/competências requeridas para o exercício de determinada função), mas também o nível da potencial complementaridade entre essas aplicações e a intervenção humana. O impacto será tanto mais significativo, quanto maior for a exposição e menor a complementaridade. Será o caso, por exemplo, dos empregos nas áreas do telemarketing, do atendimento ao cliente e dos serviços postais e de entregas, nas linhas de montagem e na manufatura de produtos indiferenciados e de uso corrente e até nos meios de comunicação)

Noutros casos, a exposição é elevada, mas também a complementaridade o é. Vejamos, por exemplo, o caso dos juízes e dos advogados, duas profissões em que as “ferramentas” de IA podem desempenhar de forma mais rápida e eficiente determinadas funções que atualmente são maioritariamente – quando não quase exclusivamente – asseguradas pelos próprios (análise documental e textual, pesquisa de legislação, doutrina e jurisprudência, identificação de padrões de comportamento, para dar apenas alguns exemplos).

Mas a complementaridade é também significativamente elevada (mais no caso dos juízes do que no dos advogados…), porque a sociedade dificilmente aceitará que a responsabilidade da decisão (uma sentença judicial ou, no caso dos advogados, a definição da estratégia num determinado contencioso ou a representação num julgamento ou numa negociação contratual) seja delegada numa “máquina” ou num “software” não sujeito a supervisão e controlo. Haverá espaço (tendencialmente crescente) para a IA, com consequentes ganhos de produtividade e rapidez num conjunto importante de tarefas, mas não desaparecerão os juízes, nem os advogados (o respetivo número tenderá a estabilizar e, progressivamente, a diminuir, à medida que as suas funções se forem concentrando nos domínios em que a sociedade “obriga” à intervenção humana).

Diferente será, certamente, o impacto noutras profissões jurídicas (p. ex. assessores nos tribunais, assistentes, paralegals) cuja função é acessória ao processo de decisão e poderá ser realizada pelas ferramentas de IA (pesquisa, análise de documentação e dados, etc.) de forma mais eficiente.

Situação idêntica (de impacto diferenciado, consoante a natureza concreta da intervenção humana) deverá verificar-se, também, nas profissões da área da saúde e do transporte. Se a inteligência artificial (e a robótica) irão desempenhar – e já o estão a fazer… – um lugar de relevo nessas áreas, não se antevê que a sociedade venha a prescindir, num futuro mais ou menos distante, da intervenção e supervisão humanas (médicos cirurgiões, pilotos de avião, para citar apenas dois exemplos que parecem mais óbvios).

O que devemos então fazer para antecipar as mudanças e enfrentar o desafio?

Parte do caminho a percorrer desenvolve-se, naturalmente, nos planos legislativo e regulatório e visa, em primeiro lugar, assegurar a segurança, a confiança e o uso responsável da IA, com o objetivo de salvaguardar o respeito dos direitos fundamentais e dos valores jurídicos, éticos e culturais. Trata-se de um processo que está em curso e de que são exemplos recentes a Executive Order on the Safe, Secure, and Trustworthy Development and Use of Artificial Intelligence, assinada pelo Presidente Biden em 30/10/2023, e o Regulamento Inteligência Artificial, sobre o qual a presidência do Conselho e o Parlamento da UE chegaram a um acordo provisório, em 9/12/2023, após a análise e discussão da proposta apresentada pela Comissão Europeia em abril de 2021.

Mas as alterações mais significativas – e os correspondentes desafios – ocorrerão, certamente, (1) no “redesenho” do mercado de trabalho, (2) na resposta à necessidade de ajustamento da mão-de-obra induzida pela revolução tecnológica e pelo seu impacto nas organizações e (3) na atenuação das desigualdades que poderão ser potenciadas pela significativa disparidade dos níveis de produtividade entre setores mais ou menos expostos à IA e/ou ao grau de complementaridade entre a IA e a intervenção humana, com fortes riscos para a coesão social.

O primeiro – o “redesenho” do mercado de trabalho – obrigará, provavelmente, a uma maior segmentação da legislação aplicável às relações laborais (tema que desenvolverei noutra ocasião). Já hoje é possível identificar um conjunto de setores/profissões em que a aplicação de certas disposições da legislação laboral revela desadequação à realidade atual e em que, objetivamente, a prática se afasta cada vez mais de um modelo que, em grande medida, ficou “preso” ao século XX. Num futuro próximo, essa divergência irá acentuar-se nos setores mais expostos à IA e deverá conduzir à adoção de regras específicas.

O segundo – a necessidade de ajustamento da mão-de-obra induzida pela revolução tecnológica e pelo seu impacto nas organizações – exigirá uma forte aposta no sistema educativo (ainda tão “agarrado” a modelos de outros tempos…), na formação profissional e na capacitação e/ou requalificação de pessoas empregadas e desempregadas que terá de abranger, também, não apenas os quadros médios e superiores das empresas e organizações, mas igualmente os seus dirigentes. Trata-se de um desafio cujas respostas – nos planos do desenho, da coordenação e do financiamento – vão muito para além do Estado e suas agências ou do sistema público de ensino e formação profissional, devendo abranger igualmente empresas e associações empresariais, a academia e organizações da sociedade civil.

Por fim, os riscos associados a um provável aumento das desigualdades, pondo em causa a necessária coesão social, têm de ser cuidadosamente antecipados. Embora os estudos já desenvolvidos tendam a demonstrar que a geração de riqueza e os ganhos de produtividade gerados pela revolução tecnológica venham a ser significativos, iremos assistir, inevitavelmente, a fenómenos de disrupção no mercado de trabalho, que precisam de ser acautelados, e a um aumento da desigualdade na distribuição de riqueza (entre setores e profissões, nos níveis de remuneração do capital e do fator trabalho e mesmo entre países e blocos económicos) que, se não for devidamente prevenido, será um fator de instabilidade e polarização crescentes.

Julgo que já estamos atrasados. Mas mais vale tarde do que tarde demais…