Nestas páginas virtuais chamei a atenção em janeiro de que poderíamos enfrentar o regresso da guerra de conquista em grande escala à Europa. A agressão do Kremlin avançou a 24 de fevereiro. Não tenho dúvidas de que a data ficará nos livros de história e de que o desfecho deste conflito pesará no futuro que teremos na Europa e no Mundo.

Uma guerra sem nada de especial?

Sobretudo na América Latina, em África, na Ásia há muito quem questione: o que tem esta guerra de especial? Não há tantas outras guerras por todo o Mundo? O que tem a guerra da Ucrânia de especial, face à do Iémen ou da Etiópia, exceto ser na Europa?

Uma guerra é definida na literatura académica como um conflito armado com pelo menos mil mortos em combate por ano. Uma guerra não é, portanto, por definição, um jogo virtual, mas um choque violento que produz real destruição e morte. Dizia Heródoto, apesar do culto dos heróis guerreiros tão difundido da Grécia Antiga, que na paz os filhos enterram os pais e na guerra são os pais a enterrarem os filhos. Todas as guerras são, portanto, igualmente trágicas no seu custo em vidas. Mas nem todos os beligerantes são iguais: o direito internacional, através da Carta das Nações da Unidas de 1945, faz uma clara distinção entre invasor e invadido, entre conquista ilegal e legítima defesa legal. E nem todas as guerras são iguais nas suas implicações para a ordem e a segurança globais. Esta guerra na Ucrânia faz parte dum fenómeno cada vez mais raro desde 1945: as guerras entre Estado, que são menos de 18% do total dos conflitos armados, o restante são guerras intraestratais, isto é, no interior dos Estados e que não mexem em fronteiras. Mais, é a única a ser abertamente uma guerra de conquista visando anexar território.

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Um mundo mais desglobalizado e regionalizado

Até percebo que muitos na América-Latina, em África, na Ásia digam que não lhes importa particularmente uma guerra na Europa, não é um conflito na sua região, não é um problema prioritário e já têm muitos outros mais próximos e mais urgentes. É um exemplo dum regionalismo pragmático que mostra a importância crescente das regiões na geostratégica e geoeconomia mundial. Uma importância que tem crescido com a crise da globalização de que vemos sinais desde a crise económico-financeira de 2008, acentuados pela pandemia de Covid-19 e agora pela guerra económica provocada pela invasão russa.

O que já não faz nenhum sentido à luz deste argumento é que depois critiquem os europeus por darem atenção prioritária a uma guerra em grande escala na sua região e que forçou milhões de outros europeus a fugir. Aliás, a conclusão lógica desta atitude “regionalista” face à invasão da Ucrânia seria que africanos, americanos, asiáticos assumissem a principal responsabilidade pela resolução de guerras e outras crises humanitárias nas suas regiões. Infelizmente, nem sempre têm sido muito eficazes nesses esforços. Agora é claro que a expetativa de que todas as guerras e crises sejam resolvidas por intervenções de europeus e norte-americanos é altamente problemática.

A ideia de que o Ocidente quer ou pode ter um peso decisivo na guerra no Iémen ou na Etiópia é reveladora de um eurocentrismo ultrapassado, desvalorizando o papel crucial dos atores locais. Revela também um fraco entendimento do Mundo em que vivemos, cada vez mais fragmentado, regionalizado e contestado por várias potências emergentes, regionais e globais. Claro que há problemas globais, pelo que o regionalismo não pode resolver tudo, mas tem o seu papel na construção da segurança internacional, e ele é expressamente reconhecido no capítulo VIII da Carta da ONU. É, aliás, com base nele que se legitima a criação da Aliança Atlântica.

O regresso do direito de conquista

Uma das múltiplas tragédias das guerras é que elas raramente afetam apenas uma região do Mundo, sobretudo quando envolvem grandes potências. Vemos isso no enorme impacto económico global do conflito na Ucrânia, da inflação até à crise alimentar. Mas não são apenas as implicações económicas globais da invasão russa que nos devem preocupar a todos por todo o Mundo. Volto a sublinhar o que torna esta guerra especial: a Rússia embarcou na primeira guerra abertamente de conquista e anexação de território desde 1945. Claro que os EUA tomaram várias opções questionáveis desde o final da Segunda Guerra Mundial, algumas das quais critiquei no passado, inclusive recente, mas nunca, como resultado das suas ações militares nestas décadas anexaram qualquer território.

A invasão russa da Ucrânia, se for vitoriosa na conquista e anexação de partes do território ucraniano, recorrendo, para quem os quer ver, a evidentes subterfúgios eleitorais e jurídicos, representaria o regresso das anexações territoriais imperiais. Seria a normalização da guerra de conquista que a Carta das Nações Unidas ilegalizou e de que não víamos um exemplo flagrante desde o final da Segunda Guerra Mundial.

O que é espantoso não é haver quem diga que a Ucrânia é longe e não lhe interessa. O que é censurável é que muitos dos que passam a vida a denunciar alegados imperialismos e militarismos, agora, fechem os olhos e calem as ambições de conquista imperial do Kremlin. Não podem alegar desconhecimento. Há poucos dias Putin disse com todas as letras que o seu modelo nesta campanha é o czar Pedro I. Tal como o grande imperador russo, alegou Putin, ele “só” está a “recuperar” território imperial russo perdido! O senhor do Kremlin deixou, portanto, bem claro que considera a Rússia um poder imperial a quem é legítimo (re)conquistar territórios que, no passado, foram seus. Há poucos países no Mundo que, no passado, não tenham feito parte de um império mais vasto e, portanto, que não fiquem vulneráveis face a uma eventual consagração desta doutrina neoimperial. Se a Rússia sair vitoriosa nesta campanha de conquista iremos todos viver num Mundo muito mais perigoso.