Talvez não acreditem, mas nas eleições americanas, Hitler não concorre com Estaline. Sim, Kamala Harris diz que Donald Trump é uma “ameaça à democracia”, e Trump que Harris é “comunista”. Em eleições anteriores, o nível de exagero era mais baixo. Mas só por ter subido, não quer dizer que seja mais credível.
Trump e Harris já governaram os EUA, cada um por quatro anos. Nem por isso os EUA são hoje o III Reich ou a URSS. O que vemos, quando levantamos o véu da polarização, é outra coisa. Os candidatos dramatizam, mas também se amaciam: Trump está mais indulgente com o aborto, e Harris com as armas. No debate dos vices, J.D. Vance e Tim Walz passaram o tempo a concordar (infelizmente, também sobre o proteccionismo). A probabilidade de o governo continuar “dividido” – um partido a controlar a presidência, outro o Congresso – não augura grandes transformações, ganhe quem ganhar.
Quando têm de demonstrar que Trump ameaça a democracia, os Democratas não citam nada que ele tenha feito no governo. Trump não foi um Richard Nixon. Contra ele, vale apenas a recusa de reconhecer que perdeu as eleições de 2020. É péssimo, mas não o singulariza: os Democratas também não admitiram que tinham sido vencidos em 2016. Há dois factos aqui. O primeiro é que não aceitar a derrota passou a ser um hábito na política americana, como já é no futebol europeu. O segundo é que, apesar desse feio costume futebolístico, Barack Obama cedeu o lugar a Trump em 2017, e Trump a Joe Biden em 2021. O segundo facto é, apesar de tudo, mais importante do que o primeiro. A invasão do Capitólio por umas centenas de manifestantes descomandados em 2021 foi lamentável, mas não foi um golpe de Estado. E a esse respeito, os Republicanos poderiam citar a benevolência dos Democratas com a violência política nas ruas em 2020.
Kamala Harris é uma candidata imposta ao eleitorado pela oligarquia do Partido Democrata, que em 2024 arredou Biden tal como em 2020 tinha afastado Bernie Sanders. Não tem força própria. Donald Trump é o contrário: um candidato imposto pelo eleitorado à oligarquia do Partido Republicano. É um excêntrico que o establishment nunca domou. O seu estilo, entre a demagogia e o desleixo, e o seu nacionalismo não foram feitos para agradar aos conservadores que dirigiam o Partido Republicano. Alguns, como Dick Cheney e a filha, nunca lhe perdoarão tê-los tornado irrelevantes. Os activistas evangélicos, porém, reconciliaram-se com Trump, apesar da sua pouca santidade. Não é inesperado. Trump está mais próximo do conservadorismo, do que uma Harris que ainda há quatro anos papagueava os lugares-comuns da extrema-esquerda. E mobiliza um eleitorado que não está ao alcance de outro republicano neste momento.
Quem gosta de responsabilidade orçamental, não terá razão para se entusiasmar com Trump (nem com Harris). Mas para quem se inquieta com o modo como o wokismo restringe a liberdade ou como a imigração descontrolada subverte a coesão social, Trump é uma opção mais razoável do que Harris. Tal como para aqueles que acham importante a direita não se deixar intimidar por uma campanha de demonização que não é muito diferente das que a esquerda conduziu contra Ronald Reagan ou George W. Bush. Qualquer conservador sem medo do que dele pode dizer a esquerda encontra razões para votar em Trump, como qualquer esquerdista para votar em Harris.
Resta o grande tema: a defesa do Ocidente. Foi Trump quem suspendeu a indulgência ocidental com a China e o Irão. Sobre a Ucrânia, tem alimentado a incerteza. Mas a sua imprevisibilidade pode também criar dúvidas a Putin. O facto é este: foi com Obama e Biden que Putin se sentiu à vontade para invadir a Ucrânia, e não com Trump.