Faz amanhã um ano que tudo mudou. Não é que se tivesse ficado a saber algo que não se sabia. Toda a gente é obrigada a saber que a humanidade é capaz do pior e do melhor e que, quando quer o pior, costuma ser muito eficaz no modo de o atingir. O que mudou foi algo que está para lá do conhecimento teórico que os livros de história, por exemplo, nos transmitem ou do mal ao qual aprendemos a dar nomes que o fixam na linguagem – “nazismo”, “comunismo” – e que, fixando-o, de uma certa maneira nos isolam dele, tornando-o um objecto para o pensamento. O que mudou foi que, subitamente, tivemos um acesso directo à própria coisa que se deu a nós mesmos em toda a sua evidência. E a evidência foi tão plena que era quase inacreditável.
O que mudou não foi o termos descoberto que há amigos da liberdade e inimigos da liberdade. Mais uma vez, isso já o sabíamos muito bem. Conhecemos perfeitamente os argumentos de uns e de outros e podemos traçar a sua evolução ao longo dos tempos. Podemos compará-los e até compreender o medo que o fardo da liberdade inspira a alguns. O que mudou foi termos percebido que quando os inimigos da liberdade iniciam uma cavalgada furiosa contra os seus amigos, os habituais procedimentos que nos servem para lidarmos com as coisas políticas, nomeadamente o diálogo e o uso de argumentos, perdem qualquer significado. O uso das palavras para convencer o outro deixa de fazer sentido. Só há uma solução: combater.
Ninguém são de espírito duvida que a mentira sempre foi uma arma política e até que certas sociedades vivem em boa companhia com a mentira que o Estado propaga. A defunta União Soviética foi disso um duradouro exemplo. A maioria das pessoas tende naturalmente a adaptar-se àquilo que é necessário para sobreviver, por mais alucinada que a mentira seja. Nada de novo aqui, portanto. O que é verdadeiramente novo é o facto de a mentira nos chegar agora sem qualquer espécie de acompanhamento que lhe dê alguma forma de verosimilhança, por mais ténue que seja. Vem em estado puro, incontaminada por qualquer preocupação de disfarce. Como se a sua finalidade não fosse sequer a de nos enganar, mas antes a de nos mostrar ostensivamente que é possível dizer o que quer que seja e que o discernimento e a razão são incapazes de contrariar a perversa liberdade que essa possibilidade oferece.
E o que é novo não é a capacidade de repetir a mentira por aqueles que são inimigos da liberdade e desejam a vitória daqueles que a prometem destruir. Durante várias décadas, o PCP negou a existência do Gulag e gabou os extraordinários feitos de uma das mais monstruosas sociedades que o homem criou, a que Cunhal chamou “o Sol da Terra”. O que é novo é que agora a mentira, prodigiosa de inverosimilhança, é repetida sem a justificação tradicional da obediência a um ideal, por mais nefasto que seja. Agora a repetição da mentira faz-se sem outro motivo que não seja o declarado amor pelo poder bruto e brutal e o ódio à liberdade.
Não é a primeira vez, é claro, que um povo combate heroicamente pela sua liberdade face a uma invasão estrangeira. Temos normalmente dessa luta uma visão romântica que pretende sublinhar o sublime do gesto e dos vários sacrifícios que o acompanham, mesmo quando há ainda memória da dureza da realidade desse combate. O combate, certamente, não é novo. O que é novo hoje é a exposição nua e crua da dor que é parte intrínseca dele, da espécie de maldição que leva à heroicidade e à coragem de afrontar todos os perigos.
Não é a primeira vez que as democracias se unem para combater ditaduras. Aconteceu exemplarmente na Segunda Grande Guerra. E aconteceu outras vezes, de forma mais ou menos violenta. Mas é novo o facto de assistirmos à unidade crescente das democracias nessa luta e à atenuação das diferenças que naturalmente as separam umas das outras, bem como a diminuição relativa da importância dos conflitos que cada uma encontra no seu seio. O que está em jogo é demasiado importante para que tais conflitos concentrem em demasia a nossa atenção.
Há, portanto, coisas novas desde a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin a 24 de Fevereiro de 2022. Mas haverá mesmo? Num certo sentido, tudo o que atrás disse precisa de ser qualificado, porque não se trata em nenhum dos casos de uma novidade absoluta, mas de uma novidade relativa. É novo – para nós. É novo – na nossa experiência. É novo – para a única realidade que conhecemos directamente. Mas esse tipo de novidade vale como um absoluto que nos obriga a levar a nossa situação absolutamente a sério. Não é um pedaço de história destinado a sumir-se no tempo. É a nossa realidade. E, enquanto durar, não há outra. Tudo o que há de essencial está em jogo.