Há quarenta e cinco anos que as direitas se queixam de que as esquerdas as tratam como “anti-democráticas”, isto é, sem direito à luz do sol em democracia. Dirão: um problema da esquerda, que, enquanto auto-proclamada vanguarda do progresso e da virtude, se habituou a tratar outras opiniões como expressão de atavismo ou de ideias sinistras. Mas não é só à esquerda que o pluralismo causa problemas digestivos, como se viu no último congresso do CDS.

Na noite de sábado, o ex-ministro António Pires de Lima subiu ao palanque para, agarrando num vocábulo avulso (“quadrilha”), acusar um candidato de deficiência ou falta de “cultura democrática”. Os apoiantes do  candidato não apreciaram, e reagiram. O que serviu aos que estavam do mesmo lado de Pires de Lima para dar por provada a imputação.

O candidato assim acusado por Pires de Lima era Francisco Rodrigues dos Santos, que aliás veio a ganhar o congresso. Ora, Rodrigues dos Santos  (se a sua ficha na Wikipedia estiver correcta) inscreveu-se na organização juvenil do CDS em 2007, ano em que o partido voltou a ser dirigido por Paulo Portas. Foi presidente da Juventude Popular desde 2015, enquanto Paulo Portas e depois Assunção Cristas lideraram o CDS. Em 2015, esteve no governo, como adjunto no gabinete do ministro Luís Pedro Mota Soares, outro dirigente do CDS. Mais: em 2017, a direcção do CDS, presidida por Assunção Cristas, propôs Rodrigues dos Santos como candidato à Assembleia Municipal de Lisboa, e em 2019 como candidato à Assembleia da República.

Que devemos concluir, portanto, se as acusações de Pires de Lima forem verídicas? Primeiro, que o CDS é um partido que não dá  “cultura democrática” aos seus militantes e dirigentes, e portanto que os valores da democracia não são os do CDS. Segundo, que as direcções do CDS presididas por Paulo Portas e depois por Assunção Cristas aceitaram que a sua organização de juventude fosse dirigida por um indivíduo sem a necessária “cultura democrática”, a quem se dispuseram a promover à Assembleia Municipal de Lisboa, Assembleia da República e Governo de Portugal.

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António Pires de Lima foi presidente do Conselho Nacional do CDS. Que pensar do CDS, quando um ex-dirigente diz isto do seu próprio partido? Que pensar de Paulo Portas, de Assunção Cristas e do próprio Pires de Lima? Durante anos, o Partido Comunista e a extrema-esquerda trataram o CDS como um partido “fascista” (a sua maneira de dizer que lhe faltava “cultura democrática”), e como tal chegaram a impedir a sua actividade e a exigir a sua ilegalização. Está Pires de Lima a confessar que afinal tinham razão?

É óbvio que não. Simplesmente, na passada noite de sábado, quando Pires de Lima discursou, a candidatura que ele apoiava estava em risco de ser derrotada no congresso. Através de Pires de Lima, falaram o desespero, a desorientação e também o cinismo de um grupo que dirige o CDS há cerca de 20 anos e que se via na iminência de perder o seu brinquedo partidário. Nesse momento, valeu tudo, incluindo legitimar o tipo de estigmatização a que as esquerdas sujeitaram o CDS e todos os seus dirigentes, de Freitas do Amaral a Assunção Cristas. Bastou os seus lugares estarem em risco para que aqueles que durante anos lutaram por ser respeitados deixassem de se respeitar a si próprios.

As acusações de falta de “cultura democrática” contra a direita começaram como parte do esforço das esquerdas para se tornarem donas do regime. O caso de Pires de Lima mostra que hoje fazem parte do arsenal de toda a oligarquia, à esquerda mas também à direita, sempre que sente ameaçadas as suas posições e influências. Vamos certamente assistir à multiplicação de “fascistas” e de “populistas”, não porque haja mais “fascistas” e “populistas”, mas porque os que mandam há muito tempo estão com medo de deixar de mandar.