É, no mínimo, intrigante conceber a ideia de que “um dos mais relevantes [monumentos] do megalitismo europeu” (palavras da Direcção Geral do Património Cultural, não minhas) tenha estado entregue a um anonimato quase total durante 55 longos anos – desde a altura em que foi descoberto pelo investigador Henrique Leonor Pina. Como é que ousamos colocá-lo numa escala de importância europeia, sem que sequer haja garantias de que a sua fama já tenha ido além das fronteiras do concelho de Évora? É claro que, ainda que muitíssimo tardia, a iniciativa de atribuir um centro interpretativo ao Cromeleque dos Almendres tem de ser louvada. Afinal de contas, mais vale tarde do que nunca. Mas o grande problema é que esta triste história com final feliz esconde mais do que o até aqui escondido Cromeleque: esconde também alguns sintomas alarmantes que a nossa cultura, cada vez mais digitalizada e impessoal, tem vindo a experimentar – já lhes tendo mesmo tomado o gosto.

Vale a pena salvaguardar que, daqui em diante, na maioria das vezes, uma referência a quaisquer aglomerados de pedras será sobretudo uma alusão a aglomerados de pessoas. Parece-me pouco provável que o comum cidadão esteja ciente disso, mas o Cromeleque dos Almendres é atrevidamente cognominado de “Stonehenge português”. Por outro lado, parece-me muito provável que esse mesmo cidadão não precise de googlar “Stonehenge” para saber do que se trata. A comparação entre ambos os monumentos é, no entanto, tudo menos descabida: quando construídos, ambos foram alinhados de modo a que os seus eixos imaginários coincidissem com os eixos dos pontos cardeais, e com os solstícios e equinócios; o Cromeleque dos Almendres tem cerca de 95 menires observáveis, face aos 93 do Stonehenge; em termos de idade, o monumento português já cá anda há aproximadamente sete mil anos, dois milénios a mais do que o seu camarada britânico; além de tudo isso, o Alentejo é o local na Europa onde existe a maior concentração de monumentos megalíticos, logo atrás da Bretanha.

Ora, todos estes factos deixam-nos, inevitavelmente, com uma série de interrogações. Porque é que uma visita ao Stonehenge custa, em média, 19 libras, e “um dos mais relevantes [monumentos] do megalitismo europeu” pode ser visitado gratuitamente? Porque é que, no ano passado, o Stonehenge recebeu cerca de 1,3 milhões de visitantes, e “um dos mais relevantes [monumentos] do megalitismo europeu” contou somente com algumas centenas? Mais: porque é que o Stonehenge tem lugar praticamente cativo nos ambientes de trabalho pré-definidos do Windows e “um dos mais relevantes [monumentos] do megalitismo europeu” é escassamente representado por meia dúzia de fotografias de baixa resolução nos motores de busca? Como antes referi, as respostas a estas perguntas não se encontram gravadas em pedras da pré-história, mas sim em mentes e comportamentos humanos da pós-modernidade.

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O que é feito da nossa capacidade para reconhecer o valor daqueles que nos rodeiam, expressando-o por palavras ou gestos? Ter-se-á extinguido ou como que ficado soterrada à espera da intervenção dum arqueólogo, que poderá levar séculos a chegar? Atribuir mérito aos outros requer, quase invariavelmente, que nos despojemos dos nossos próprios méritos – e isso custa-nos, para não dizer mesmo que nos dói. Mas atenção que o reconhecimento e o elogio não são, por si só, fabricantes de qualquer tipo de virtuosismo – ou seja, o valor patrimonial, cultural e até artístico do Cromeleque dos Almendres é absolutamente independente da existência ou não de um centro interpretativo que lhe faça jus. Como tal, o que cada um de nós vale – e todos valemos garantidamente alguma coisa – não é determinado pelo fluxo de palavras elogiosas que nos são dirigidas. Podemos até nem estar conscientes dele, mas o nosso valor está algures dentro de nós, por vezes, só à espera de ser escavado, trazido à superfície e colocado à vista de todos.

O que é interessante perceber é que, neste complexo processo de reconhecer e ser reconhecido, ambas as partes envolvidas podem sair a ganhar. Lembro que, não se tratando de um produtor de virtuosismo, o elogio tem poder mais do que suficiente para ser um estimulante de virtuosismo. Quem o recebe, além de se aperceber que possui um bem que antes desconhecia, recebe um combustível para aprimorar esse bem e começar a descortinar outros. Quem o oferece, além de exercitar o músculo da humildade, oferece ao elogiado o espaço e a oportunidade para que este o surpreenda com todo o seu potencial. Tendemos muito mais a ser bons para aqueles que reconhecem que o somos, não é verdade? A Câmara Municipal de Évora elogiou o Cromeleque dos Almendres, escancarando ainda mais as portas ao turismo, e o Cromeleque dos Almendres vai retribuir-lhe o gesto, mais cedo ou mais tarde.

Por outro lado, este episódio põe o dedo noutra ferida aberta da nossa sociedade: a ferida da alienação – que vai desde o caminhar pela rua de olhos no passeio ou em ecrãs, esbarrando em ombros, postes de iluminação e por vezes até capôs de carros, até ao esfarelar de cartões de crédito em compras que produzem felicidades instantâneas para encobrir frustrações duradouras. Pelo meio, transformamos supostos diálogos em monólogos shakespearianos, ou porque falamos demais e não nos apercebemos que o outro precisa de falar, ou porque deixamos que o outro fale como se não houvesse amanhã por termos a cabeça noutra parte. A verdade é que aprendemos a estar sem ser preciso estar fisicamente, aprendemos a converter sorrisos em onomatopeias escritas (como ahahah) ou siglas estrangeiras (como lol), aprendemos a saber das notícias, boas e más, sem ter de perguntar por elas, como se fotografias e descrições maquilhadas fossem realmente esclarecedoras… Enfim, aprendemos a ilhar-nos. Infelizmente, pelo meio, passam-nos ao lado vários “monumentos do megalitismo europeu” todos os dias, esquecendo-nos de que não é na busca constante por novas novidades – passo o pleonasmo – que está o valor arqueológico, mas sim na persistência em desvendar novidades nas coisas e pessoas que para nós já são velhas e ultrapassadas.

O último sintoma que aqui conseguimos diagnosticar é, na verdade, uma mera extensão dos anteriores. Quando não nos sujeitamos, de forma intencional, a ouvir e interpretar, tanto os outros como a nós próprios, sujeitamo-nos a extrair conclusões falaciosas e, muitas vezes, extremamente nocivas nos relacionamentos de que somos parte. Como não paramos para ouvir e interpretar, não conhecemos. Ora, o desconhecido gera medo, o medo constrói muros de estereótipos, os muros de estereótipos incitam à intolerância, a intolerância mata a comunicação e, depois, a nós. Está nas nossas mãos evitar este cenário catastrófico. Até porque a história que nos trouxe aqui não é uma história de morte, mas de nascimento (do novo centro interpretativo do Cromeleque dos Almendres). É urgente que comecemos a construir centros interpretativos ao redor dos outros e permitir que façam o mesmo connosco. É urgente que sejamos mais arqueólogos uns dos outros do que arquitectos. E, já que falamos de monumentos megalíticos: que não tenhamos corações de pedra.

Notícia original:
Diário do Sul, 5 de Junho de 2019.