É sabido que o fundamental da técnica dos ilusionistas passa por focar a nossa atenção naquilo que nos parece importante, enquanto o que é de facto importante se desenrola mesmo à frente dos nossos olhos sem que, no entanto, foquemos nisso a nossa atenção. Às vezes, mesmo tendo consciência disso, somos incapazes de focar a nossa atenção fora daquilo para o qual estamos a ser direcionados. Talvez por razões que se prendem com o nosso passado animal e com a necessidade de nos protegermos dos predadores, a nossa atenção é sempre dirigida para aquilo que tem uma variação rápida, enquanto o que tem uma variação lenta passa por nós sem ser detetado.
Lembrei-me disto quando, há uns dias, o bispo de Leiria-Fátima declarou aos órgãos de comunicação social que os 400 mil novos pobres gerados pela Covid deviam passar a ser desígnio nacional. Há vários pontos pelos quais podemos pegar nestas afirmações do bispo, sendo que é uma nova versão, em modo compreensivelmente menos popular, da famosa frase da Profª. Susana Peralta dos burgueses do teletrabalho.
O primeiro ponto é que os 400 mil novos pobres já fizeram parte do desígnio nacional, ou melhor dizendo, foram tomados em conta e ignorados. Na verdade, toda a gente sabia que a consequência óbvia de limitar uma economia é a geração de pobres. Não se sabia o número exato, mas sabia-se que seriam muitos. A razão pela qual não os fomos vendo é que eles foram crescendo muito mais lentamente do que os contágios e toda a nossa atenção estava sobre estes últimos. Racionalmente não podemos dizer, no entanto, que não sabíamos que eles agora aí estariam. Note-se que não estou a dizer que as opções foram certas ou erradas, estou a dizer que o fenómeno era mais do que conhecido à partida quando as decisões foram tomadas. Enquanto levávamos com os números da doença todos os dias, não levámos com o fecho de empresas, acumulação de dívidas e perdas de empregos.
O segundo ponto é que em 2019, 17% da população portuguesa, sensivelmente 1.800.000 pessoas, estavam em situação de carência económica, isto é, quatro vezes e meia a quantidade que foi criada agora. Não estou a dizer que o bispo acha que estes 400 mil são melhores que os quase dois milhões que já existiam; estou a dizer que, como toda a gente, o bispo focou a sua atenção naquilo que estava a variar depressa. Obviamente, na cabeça do bispo, os novos 400 mil não são nem melhores, nem piores que os outros e por isso não podem ser desígnio nacional ou objeto de contribuição extraordinária dos “burgueses do teletrabalho”, deixando os outros esquecidos a um canto.
Agora, há algo que, à boa maneira lusitana, parece estar a ser ignorado de forma propositada. Se era previsível que ignorar a pandemia traria consequências, o que é menos previsível é que não se esteja a ver um momento de fazer as contas finais e nisso, quer o bispo, quer a Profª. Susana Peralta, estão repletos de razão.
Durante este período de exceção ia sendo interpelado por vários amigos – digamos que sou a pessoa defensora dos processos científicos no círculo – que insistiam comigo que não podíamos deitar abaixo a economia porque os prejuízos em termos humanos seriam maiores do que aqueles que a epidemia provocaria. Fui sempre respondendo que isso ninguém sabia e que, por isso, havia quem tivesse que tomar decisões, sendo que as contas teriam que ser feitas no fim e essas decisões auditadas para entendermos se, com a informação que estava na posse de quem decide, a decisão foi boa ou má.
Mas no meio de tudo isto, importa reparar num detalhe: houve uma situação de estado de exceção – ainda existe a situação, mas sem estado (!) – depois da qual teria que ser feito um balanço e mandar para o Ministério Público as violações de direitos fundamentais que foram feitas nesse período sem cabimento legal. As decisões políticas resolvem-se politicamente, mas as decisões criminais resolvem-se nos tribunais.
Por outras palavras, podemos compreender, e apoiar, decisões e situações de exceção. Elas não estão em causa. O que está em causa são ilusionismos, isto é, excessos, quer nas decisões executivas, quer na implementação dessas decisões, que não podem passar sem serem vistas agora com todo o conhecimento presente, embora sabendo que depois do jogo todos os prognósticos são fáceis. Porque se todas as decisões podem ser tomadas, se todos os atos estão a coberto de uma situação de exceção, então o que impede que sejamos sujeitos a arbitrariedades semelhantes por uma epidemia de piolhos?
Nesse sentido, os 400 mil devem ser o desígnio nacional, sim. Não para que se monte um sistema de financiamento qualquer para os livrar do seu infortúnio, porque isso não será possível. Senão já teria sido feito para os 1.800.000 existentes previamente. Mas porque precisamos de saber se o seu sofrimento valeu a pena. E quem fala dos 400 mil pobres, pode também falar do milhão e qualquer coisa de alunos de todos os graus de ensino que perderam dois anos de escola e de juventude, dos milhares de idosos que perderam dois anos de convívio com os seus familiares – talvez os últimos –, dos milhões de pessoas que foram limitadas nos seus direitos, como as idosas que foram impedidas de fazer o seu exercício matinal pela PSP, ou os surfistas que foram impedidos de entrar no domínio público marítimo por um presidente da câmara armado em especialista de saúde pública, ou ainda os automobilistas que viram as suas viaturas revistadas numa marginal Lisboa – Cascais cortada ao trânsito porque a polícia entendeu que o devia fazer em dia de eleições presidenciais, só porque havia uma situação de exceção em vigor. Isto são apenas exemplos de situações que eu testemunhei, imagine-se o que se terá passado por esse país fora…
Afinal, estava toda a gente focada naquilo que parecia ser o que interessava e não naquilo que, se calhar, era importante. Mas as contas finais terão que ser feitas, até porque precisamos rapidamente de voltar ao normal e é preciso que o normal não tenha nada disto, nem produção adicional de pobres, nem exceções à defesa dos direitos fundamentais das pessoas. Infelizmente, e como seria de esperar na República Portuguesa, parece haver muita gente interessada em que o normal seja aquilo que fomos assumindo como exceção e eu detesto que os meus amigos me digam “eu não disse?”.